Mostrar mensagens com a etiqueta Psicanálise. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Psicanálise. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, janeiro 14, 2016

Teste da Realidade, Psicose e Psicopatia


Este artigo prende-se com uma reflexão clínica, psicanalítica, sobre a psicopatia, a perda do teste da realidade que habitualmente acompanha os quadros psicóticos, e pontos de interseção entre ambas as realidades clínicas.

Sobre o teste da realidade

O teste da realidade é tradicionalmente um indicador da presença de aspetos ligados ao funcionamento psicótico da personalidade. Contudo, mesmo um indivíduo com organização neurótica de personalidade (com um self coeso e bem adaptado à realidade, por exemplo) pode, sob condições de stress invulgar, resvalar, ainda que temporariamente, para um funcionamento mais do âmbito da psicose, cingido provavelmente a um contexto específico, e falhar o teste da realidade nesse contexto ou ligado a essa situação (por exemplo, situações traumáticas). Uma personalidade neurótica não está imune de conter núcleos psicóticos, e tal tende a ser muitas vezes onde se encontra a raiz do maior sofrimento e das maiores incapacidades na vida de uma pessoa.

Falamos aqui sobretudo em organização de personalidade – psicossomática, psicótica, borderline, neurótica e normal. A psicopatia está mais ligada à estrutura da personalidade (depressiva, narcísica, psicopata, etc.), ainda que se possa pensar em articulação com a organização de personalidade.

Alguns autores inclusive removem a categoria da psicose e chamam-lhe esquizofrenia borderline (ver o PDM - Psychodynamic Diagnostic Manual), referindo-se a perturbações graves do teste da realidade, por exemplo.

O teste da realidade também está relacionado com o quão compensado está ou não determinado indivíduo. Alguém que sofra de uma patologia mental relativamente grave pode não apresentar falhas no teste da realidade, desde que se encontre em estado compensado. Contudo o equilíbrio psicológico será frágil, a vulnerabilidade ao stress será maior e a propensão à descompensação e à perda do contacto com a realidade (por exemplo, a criação de uma realidade interna, fantasiada, mais tolerável e menos ameaçadora, ainda que diferente e incompatível com a realidade externa) é grande.

Quanto maior a predominância, numa dada personalidade, de uma parte psicótica, maior a probabilidade de perda do teste da realidade aquando do stress. Outras vezes essa perda do teste da realidade está ligada a situações/conflitos específicos, aos tais núcleos mais frágeis/traumatizados/psicóticos da personalidade.

Sobre a psicopatia e o teste da realidade

A maioria de nós têm traços de uma ou outra perturbação de personalidade (entidades clínicas nosologicamente definidas). Alguns autores consideram que a estrutura psicopata pertence ao âmbito da organização psicótica da personalidade.

Todavia é possível que traços psicopatas existam noutros níveis superiores de organização da personalidade, pelo que nesses casos não falaríamos de psicopatia, mas de tendências psicopatas em quadros de maior salvaguarda do teste da realidade.

Portanto, tanto pessoas com quadros psicopatas como pessoas com quadros psicóticos podem manter o teste da realidade, desde que compensadas. Ou pelo menos manter o teste da realidade na maioria das áreas do funcionamento profissional, interpessoal e das tarefas do quotidiano.

Relação entre psicose e a psicopatia

Se considerarmos o exemplo de patologia psicótica pura e da patologia psicopata pura, então provávelmente estamos a falar de problemas diferentes, ainda que se possam relacionar entre si ou sobrepor em alguns aspetos. Na psicose predominam, por exemplo, os mecanismos da clivagem do self e projeção de partes do self para fora do self, para o mundo exterior e para outros exteriores (mas também para dentro do próprio self, como são o caso dos delírios de ruína e hipocondria). Um outro marco da psicose são as transferências psicóticas (transferem-se partes do self e do mundo interno do self para outras pessoas, sem qualquer sentido de juízo crítico sobre a veracidade das imagens distorcidas dos outros criadas pelo efeito da projeção). Isto pressupões que no interior da pessoa psicótica exista algo de bom, que o aparelho psíquico tenta a todo o custo salvar no intuito da sobrevivência psicológica. Na psicose, o ódio (a agressividade destrutiva) predomina sobre a líbido (o amor), conflito fundamental que da azo aos processos psicóticos, de acordo com algumas perspetivas psicodinâmicas. Essa luta é tal forma feroz que o próprio self se pode mesmo fragmentar - medo de enloquecer - no sentido de salvar a (escassa) benevolência interna ameaçada.

Já na psicopatia (pura), que implica a deterioração grave ou ausência dessa benevolência interior de modo a garantir a sobrevivência psicológica, dá-se a total identificação com o mau (a agressividade, o ódio). Não há processos psicóticos de clivagem e projeção, pois estes apenas existem para a preservação das partes boas da personalidade. Não há transferência psicótica, mas sim transferência psicopata, anterior (mais primitiva) à transferência psicótica. A transferência psicopata prende-se com a manipulação da outra pessoa (ou pior), no sentido deliberado de prejudica-la ou levar a melhor sobre ela, com completa ausência de remorso. Há a preservação do teste da realidade – o psicopata está particularmente bem sintonizado com o funcionamento prático da realidade, interessam-lhe os fins práticos de conseguir poder, no geral ou sobre os outros, e a fuga à responsabilidade.

No psicopata não há bússola moral ou empatia, estes são aspetos marcantes da realidade das relações humanas que os psicopatas não conseguem processar. Se incluirmos estes conceitos no âmbito de “teste da realidade” (ainda que o teste da realidade se refira mais a fenómenos de delírios, alucinações, pensamento mágico, crenças bizarras e ideias de referência) então os psicopatas falham nesse teste, ainda que se mantenham particularmente astutos para a componente prática do funcionamento da realidade. Os três traços psicopatas de uma forma geral são a manipulação, a mentira e os fins egoístas, e também a incapacidade para a honestidade, a não ser que essa honestidade se ligue de alguma forma a algum destes fins ou à necessidade de manutenção de um sentido de omnipotência, de manipulação ou obtenção de poder, mas tal é pouco provável.

Por sua vez podemos considerar a convicção do psicopata de que pode fazer com que tudo aconteça, uma convicção próxima da perda do contacto com a realidade, no sentido de uma imagem omnipotente e logo, psicótica, de si mesmo, se bem que o psicopata não se fica pela convicção, mas busca ativamente o poder. Sabe-se até que a busca pelo poder é um traço de deterioração grave de personalidade e o psicopata procura-o ativamente, quer o poder sobre os outros, ou outro tipo ou forma de poder. Daí que na verdade, e muitas vezes, o poder que os psicopatas detêm é real e dá sustento a uma imagem omnipotente, toda poderosa, de si mesmos. Para um psicopata não há pior que ser diminuído ou de alguma forma ser atacado na sua convicção de omnipotência. Em contexto forense, uma das técnicas para levar um psicopata a confessar um crime é precisamente confronta-lo com descrença sobre a sua capacidade para elaborar e levar a cabo o dito crime. Muitas vezes o psicopata acaba por confessar por uma questão de orgulho, ou necessidade de proteção desse eu mais omnipotente (aqui sim, um delíro de grandiosidade, uma perda do teste da realidade relacionada com a imagem de si mesmo, algumas vezes dificil de perceber pois está misturada com poder real). Na política, por exemplo, alguém com tendências psicopatas poderá por exemplo ser sentido enquanto alguém que projeta força e confiança, no entanto esses aspetos tendem a ser acompanhados por frieza, ausência de remorso e ausência de vulnerabilidades, que suscita nas outras pessoas por vezes um sentimento de se estar na presença de alguém como que todo-poderoso. Os psicopatas são também muito frequentemente encontrados em altos cargos nas chefias de algumas empresas, como nas grandes empresas e grupos financeiros. Estes são os psicopatas passivos, menos agressivos, mas muitas vezes muito mais destrutivos.

Psicopatas mais inteligentes (mais adaptados socialmente) podem efetivamente conseguir altos cargos no poder, a todos os níveis. Neste caso não só mantêm o teste da realidade (pelos menos na área profissional, por exemplo) como podem mesmo ser bastante bem sucedidos.

Em psicoterapia um ganho terapêutico no trabalho com perturbações psicopatas acontece por exemplo quando estas pessoas se tornam um pouco mais psicóticas, ou seja, quando conseguem começar a desconfiar do terapeuta – passam de uma transferência psicopata para uma transferência psicótica paranoide. Tal já denota a existência de algo de bom dentro da pessoa, que para ser preservado, leva com que a pessoa expulse (projete) as partes más. 

Mais grave que a psicopatia é ainda a perturbação sádica da personalidade, onde a experiência subjetiva da pessoa é a de morte interna e subsequente necessidade de dominar, controlar absolutamente, atormentar e destruir os outros. Não existem até à data psicoterapias de sucesso com pacientes com perturbações sádicas de personalidade. Todas as psicoterapias conduzidas a estes pacientes são conduzidas já em contexto prisional.

Em suma, a psicopatia ou aspetos da psicologia psicopata podem ser pensados como patologia isolada e em estado puro (raramente assim surge em consultório), como podem surgir, em maior ou menor grau, misturados com sintomatologia psicótica, borderline ou até com níveis de funcionameto mental mais evoluídos. 



sábado, outubro 17, 2015

Amor romântico e amor genuíno (Budismo, Psicanálise, Narcisismo e Amor)





Enquanto alguém que pratica e estuda filosofia budista e psicanálise, acho que ambas as disciplinas se debruçam bastante sobre este tema. Gosto particularmente de como a psicanálise organiza estas ideias.

"Amor (love)" e "Apego(attachment)" para a psicanálise não são contraditórios de facto. Outro termo para "attachment é "vínculo". No principio um bebé é amado (o banho de sedução mútua que o bebé interioriza pelo olhar de amor e fascínio da mãe, por exemplo). Depois passa a amar-se. Finalmente, ama. No fundo falamos de narcisismo, da evolução do narcisismo, do amor narcísico, interesseiro, para o amor oblativo, generoso. 

Freud falava deste mistério em como nas relações amorosas investir no outro levaria a um empobrecimento do Eu, porque a nossa energia deixava em grande medida de estar em nós e passava para o outro. Depois constatou que para não nos esvaziarmos, o investimento amoroso no outro tem de ser recíproco. É o amor do outro que nos alimenta numa relação amorosa. 

Contudo, o amor maduro implica sempre um investimento em nós (narcísico-normativo) e no outro em simultâneo. Pelo que para um amor maduro, há que ter um narcisismo saudável (um amor próprio ou auto-consideração maduros e auto-reguláveis, entre outras coisas). Nas relações em que um dá muito e o outro dá muito pouco, temos uma economia depressígena - aquele que recebe pouco ir-se-á esvaziando e tal conduz à depressão (ou o reavivar da depressão latente). 

Amor sem interesse é generosidade, base da capacidade de amar, e requer um bom desenvolvimento do narcisismo com acesso à capacidade de gratidão. 

Todavia os vínculos amorosos saudáveis implicam a entrega, e por tal, isso implica que ao nos entregarmos, também estamos a abrir-nos a receber do outro. Não vivemos ou podemos sobreviver isolados dos afetos dos outros, sobrevivemos disso, e a falta de tal marca a psicopatologia. Aqui sim, quando o narcisismo é deficitário, quando o bebé e a criança não recebem na medida daquilo que necessitam, o amor narcísico, interesseiro, pode ser a única modalidade de amor que fica acessível na idade adulta, enquanto expressão de problemas oriundos de uma época de vida em que se precisou de algo mais, mas não se consegui receber o suficientemente, por algum motivo. Aqui o "attachment" é "grasp" (apego), é dependência porque se procura no outro algo que outrora não se recebeu. Nem se pode receber deste outro (quando a falta/falha é significativa e persistente), pois tal a carência remete para questões ligadas ao desenvolvimento psicológico e da personalidade, e tal dimensão da experiência humana não pertence às relações amorosas, mas às relações parentais ou às relações psicoterapêuticas. 

Estas faltas são dos maiores contribuintes para o medo acentuado da perda. Ama-se interesseiramente, ama-se para se ser amado ou admirado, ou para estar associado àqueles que são alvo de admiração e prestígio. Ama-se para se ser amado ou para não se ser abandonado. Ou ama-se meramente enquanto reforço para a identidade (o outro tem características que nos conferem um sentido de identidade reforçada quando nos associamos a ele). Procuramos então encher-nos tornando os outros apêndices de nós mesmos. Muitas vezes o orgulho ou a vergonha no companheiro atestam bem esta realidade. O outro serve (ainda que por vezes não exclusivamente, e apenas em parte) uma função de restaurar e repor a autoestima. 

Neste terreno do amor narcísico é também onde surgem as idealizações mais patológicas. O amor implica uma certa idealização inicial, contudo no amor narcísico a idealização é forte e não tolera nada bem a realidade do outro, que não pode ser amado tal como é mas apenas ou sobretudo pela função que desempenha. Tal é o caso, por exemplo, das mães e pais que desaprovam dos filhos toda a vez que estes não correspondem às suas expetativas, ou se desiludem constantemente com eles. Filhos que acabam por não poder ser muitas vezes eles próprios (aceites, validados e amados enquanto tal), herdando uma ferida narcísica profunda. 

No caso dos filhos há sempre um amor narcísico à mistura, ainda que possa predominar o amor oblativo, pois na prática os filhos são mesmo extensão dos pais, partilham o mesmo ADN! É uma realidade normativa ainda que implique, de forma a que mantenha os contornos saudáveis desejados, uma capacidade de diferenciação dos desejos dos pais e da autonomia, identidada e desejos dos filhos. Tal como também são normativas certas necessidades narcísicas humanas, que perduram ao longo da vida - pertencer a grupos com os mesmos interesses e valores, sermos validados no trabalho, sermos compreendidos pelos amigos. 

Amar oblativamente sem exigir nada em troca é o ideal, contudo apenas é possível se em troca recebermos o mesmo tipo de amor. Parece contraditório pois há uma expetativa de retorno, que poderíamos apelidar de narcísica, ainda que, mais uma vez, nós de facto vivemos de afetos e sem eles afundamos na depressão, ou pior. O amor sem exigir - "amo-te e por tal quero que sejas feliz"- para se manter subentende a entrega genuína e o encontro com um outro que também esteja disposto a amar sem exigir. Mas também podemos pensar que no ideal maduro de alguém que ama genuinamente está gravado o valor de fazer o companheiro feliz, e desta forma, dar felicidade ao outro também nos dá felicidade, de um modo narcísico, mas saudável, pois é a realização de um ideal nosso, um valor nosso ideossincrático. Ao mesmo tempo vamos também captando o amor que o outro nos dá. Por sua vez quando recebemos sentimos gratidão e tal dá azo à generosidade, ou seja à vontade de dar mais amor ainda! É uma espiral de amor que se gera, sem exigência, baseada num bom desenvolvimento do narcisismo de parte a parte e no crescente desejo de dar que advém da experiência do receber.

sexta-feira, maio 22, 2015

O que é a Psicoterapia (II) - A Atitude de um Psicoterapeuta em Sessão


Um psicoterapeuta não emite julgamentos, e muitas pessoas evitam mesmo recorrer a um psicoterapeuta por receio de serem julgadas. É um medo que está sobretudo ligado à experiência de sermos ou termos sido julgados(ou pior...) por aqueles que são ou outrora foram as pessoas mais próximas ou mais marcantes das nossas vidas. Está também relacionado com a tendência a nos julgarmos a nós mesmos (e por vezes aos outros), pois essas pessoas outrora mais críticas, mais irritáveis, mais culpabilizantes ou mais inferiorizantes vão ficando gravadas dentro de nós e contra nós. São como uma herança emocional nociva e sempre presente, tornada inevitável pelos próprios processos psíquicos de internalização e identificação que fazem parte e moldam o desenvolvimento da personalidade de qualquer ser humano logo desde muito cedo.

Por vezes também nos julgamos dessa forma não tanto (ou não só) pela exposição prolongada e internalização dessas figuras mais nocivas, mas por falta do seu exato oposto. Falta de pessoas importantes para nós (e nós para elas!) que se mostram ou mostravam (e mais importante de tudo, que se faziam sentir como) tolerantes, atentas, preocupadas, interessadas e compreensívas para connosco nas mais variadas circunstâncias.

Da mesma forma com que nos julgamos a nós mesmos, que somos serveros connosco próprios ou que não nos aceitamos, naturalmente iremos achar que os outros também não nos irão aceitar e compreender. Por vezes fica mesmo a faltar ao longo de toda a vida a experiência sanígena, fundamental e reparadora de podermos ser verdadeiramente compreendidos, de termos alguém que lá esteja para nós, capaz de uma sintonia empática e de um interesse compreensivo sobre nós, sobre as nossas preocupações e angústias, sobre as nossas alegrias e tristezas. Alguém que nos deixa a sentir compreendidos, sem crítica ou juizo de valor. Por vezes esse trauma por falta de empatia e o medo da crítica que ele gera transformam-se em desagradáveis companheiros de vida que lançam rédea curta ao sentimento de liberdade e restringem o sentido da mesma. Um encarceramento que vem de dentro e que ataca o próprio direito a podermos ser livremente aquilo que somos, quem verdadeiramente somos, e de podermos existir livres do preconceito, da critica e da restrição. Muitas pessoas nascem, vivem e morrem sem nunca saberem o que isso é... Sem saber o que é viver sem o medo e incómodo persistente ou intermitente do que os outros poderão pensar ou vir a pensar, sobre a própria pessoa, sobre a sua família, sobre a sua situação financeira, sobre as suas associações, etc..

A psicoterapia é um lugar e um encontro que consegue de facto, ao longo do tempo, transformar e remover estas restrições internas. Por vezes elas podem à partida nem ser percebidas enquanto sintomas ou aspetos passíveis de serem mudados, mas sim como a forma normal de sermos, de sentirmos e vivermos a vida. É a nossa personalidade ou feitio, quem nós somos. Ao ajudar a dar nome aos fenómenos da vida interior, áquilo que é num primeiro momento desconhecido ou nunca pôde ser pensado, o psicoterapeuta cataliza um "separar de águas" onde se tornam distintos dois lados da realidade: aquilo que pode e aquilo que não pode ser mudado. Assim se desvela paulatinamente uma nova realidade que transcende quem somos e quem sempre fomos: quem poderemos vir a ser.

Uma outra atitude que o psicoterapeuta deverá procurar manter, e que está de alguma forma subentendida nos parágrafos anteriores, é sem dúvida a de preocupação, ou bem-querer, e de interesse genuíno para com quem procura ajudar. Enquanto pessoas, e de uma forma geral, é muito dificil conseguirmos sentir que estamos a ser ajudados ou a retirar proveito de uma relação psicoterapêutica quando estamos com alguém que nos parece distante, pouco interessado em nós e naquilo que temos para dizer, ou que nos diz coisas que parecem ficar muito ao lado das nossas preocupações ou que não conseguimos entender.

Esta preocupação e interesse compreensivo fazem-se ainda acompanhar por uma atitude a partir da qual o psicoterapeuta se abstem de oferecer conselhos, indicações ou direções a seguir, ainda que por vezes, quando se justifica, poderá oferecer algumas sugestões. Tal prende-se com um importante principio ético (e psicoterapêutico) de uma qualquer psicoterapia, a defesa e promoção da autonomia individual, do direito de uma qualquer pessoa à liberdade de pensar, de agir, de escolher e de tomar decisões sobre a própria vida. Quando essa autonomia está por algum motivo comprometida, então o primeiro passo poderá mesmo ser o fundar de uma relação terapêutica que servirá de alicerçe para a construção, reconstrução ou para o desbloquear do “Eu” autónomo e diferenciado.

É ainda de realçar a posição moral da psicologia psicanalítica enquadrada num panorama político e social. São três os pontos centrais a realçar: A necessidade de considerar e enfrentar a realidade por mais dolorosa que seja, em detrimento do ignorar da verdade e da realidade; a ligação íntima entre os cuidados básicos e a construção de uma sociedade saudável, na medida em que a negligência social pela infância conduz inexoravelmente ao sofrimento da sociedade; e a autonomia enquanto direito próprio, originária a partir de um cuidado parental sensível, cuja falta pode, com sorte, ser remediada pela psicoterapia.

sexta-feira, abril 17, 2015

Depressividade e Psicoterapia (II)

Olá, o meu nome é Patrícia e eu tenho 27anos...

Eu sei que o que vou perguntar talvez nem vá obter resposta por vossa parte mas eu sinto-me com a autoestima demasiado em baixo e não me sinto bem comigo mesma porque eu não sei se preciso de apoio psicológico, de apenas medicação, ou ate mesmo outra alternativa.

A minha dúvida é esta: eu sempre que gosto de alguém amorosamente, eu deixo de gostar de mim e passo a viver em função daquela pessoa, faço tudo para a agradar e depois sempre que o amor por parte da outra pessoa acaba, eu sofro pois não sei lidar com a perda dela de tal modo que chego a humilhar-me e sentir que culpa é sempre minha por não ter resultado mais uma vez.

Este sentimento leva-me a tal sofrimento que eu tenho dias que choro consecutivamente durante dias seguidos sendo que posso depois andar sem chorar uma semana mas depois esse pesadelo volta, não tenho vontade de fazer nada, refugiu-me, rebaixo-me a essa pessoa mesmo sabendo que o melhor para mim é não dizer nada e me afastar, mesmo sabendo que corro risco de ela me tratar mal e mesmo que ela o faça, eu perdoo pois sinto que a falta que ela me faz é maior que o sofrimento que ela me causou por momentos... 

Eu sinto que não estou bem mas não sei bem que tipo de tratamento devo procurar para que seja mais eficaz, porque chego a ter dias que penso que se morresse não fazia falta a ninguém... 

Basicamente não tenho amigos porque "abdico" deles quando estou em um relacionamento o que torna as coisas mais complicadas para mim. Eu sinto-me "perdida" sem saber o que fazer ou pensar... 

Ajudem-me por favor com uma opinião. Obrigada

-- A nossa resposta --

Olá Patrícia, muito obrigado pelo seu contacto.

Li atentamente tudo o que escreveu e penso compreender um pouco o que está a passar e o que se passa dentro de si. 

Na sua mensagem há muitos pontos que remetem para uma mesma angústia. Quando diz "se morresse não fazia falta a ninguém" é como se de facto estivesse a tocar no âmago do problema. Não é à toa que no início da sua mensagem diz sentir que provavelmente até nem iria receber resposta à sua mensagem...

Na sua mensagem descreve um sentimento profundamente angustiante, o sentimento de não ser importante para ninguém. Fico a pensar que talvez em determinados momentos nas suas relações também acabe por sentir-se mais insegura em relação ao afeto que a outra pessoa tem por si, ou dê consigo a preocupar-se com persistência sobre a possibilidade de deixar de ser importante para a outra pessoa (deixar de ser amada) e a relação poder terminar... 
 
De algum modo esse medo/angústia tende a estar particularmente relacionado com a tendência à auto-anulação (por assim dizer) nas relações, com o tentar "com unhas e dentes" garantir o interesse e o amor da outra pessoa. Os sentimentos que descreve e a descrição que faz de como vive as suas relações, ainda que sejam descrições sucintas, são de facto aspetos clinicamente característicos da depressão. Ou mais concretamente da depressividade, já que pelo que consigo apurar, a Patrícia parece descrever um pouco sentimentos persistentes e um padrão de funcionamento mais geral nas suas relações onde surge um anulamento de si perante o outro, uma tendência a afastar todas as outras relações menos aquela específica e parece reagir às perdas pela auto-culpabilização e auto-inferiorização, portanto, pela depressão.

Na nossa vida, quando perdemos pessoas importantes para nós (por rejeição amorosa por exemplo), isso coloca em marcha um processo interno de luto. Contudo quando esse luto é substituído por uma auto-culpabilização e auto-inferiorização então estamos no território da depressão, ou luto patológico. No luto a pessoa culpa o outro, na depressão culpa-se a si mesma.

A depressividade é também um problema relacionado com a dificuldade em expressar e defletir a agressividade... 

Na depressividade a luta interna trava-se contra o medo da perda do amor da outra pessoa, uma angústia que é trazida para as relações ou ativada na relação após o seu início (imediatamente ou passado algum tempo). Ou seja, é uma angústia que existe já na própria pessoa, e que pré-existe à relação, mas que se ativa nela e quando isso acontece acaba muitas vezes (de forma intermitente ou contínua) por tomar as rédeas da relação, de forma mais intensa ou mais subtil. Os ciúmes intensos são marca deste medo quando adota proporções intoleráveis.
 
A auto-anulação nas relações (que se liga à baixa autoestima) no interesse de por vezes proteger e garantir o amor da outra pessoa pode muitas vezes ter o efeito exatamente oposto, de levar a outra pessoa a perder o apreço por quem por ela se anula. Imagine-se por exemplo que alguém gosta tanto de outra pessoa que se sacrifica sistematicamente por ela, que durante as discussões cede aos argumentos e em certas alturas até se deixa de alguma forma abusar (não se conseguindo zangar, por medo de que isso resulte na perda da pessoa amada). A dada altura a outra pessoa poderá começar a sentir que aquela pessoa que diz e reivindica que a ama e faria tudo por ela parece ter de facto muito pouca consideração por si mesma, deixando-se abusar, não se dando ao respeito ou se valorizando. Gradualmente o apreço ou estima por essa pessoa (pela pessoa que se anula) pode começar a diminuir, podendo até o amor transformar-se em pena (ou num amor mais materno, cuidador, próprio de uma mãe que cuida de uma criança mais desamparada ou incapaz de se proteger ou defender). 

Não é por acaso que se diz "se eu não gostar de mim, quem gostará?". Nós, seres humanos, amamos/estimamos quem se ama/estima, quem se dá ao respeito e quem não se deixa abusar. Nas relações amorosas gostamos de estar associados a quem se estima (q.b.), a quem se respeita e isso tem um papel importante em atrair e manter o nosso amor por essa pessoa. Assim, pode acontecer que na tentativa de lutar contra o medo da perda do amor da outra pessoa pela auto-anulação, inconscientemente isso acabe por ter um efeito contrário, de afastar a pessoa. Posteriormente isso pode mesmo reforçar o medo e tal pode levar a uma ainda maior anulação, e assim sucessivamente. 
Todos nós temos períodos ao longo da vida em que nos vamos a baixo, precisamos de maior apoio, sentimo-nos mais inseguros em algum momento das nossas vidas, deprimimos, e isso é normal ao longo da vida. No entanto a persistência sentimentos negativos e certos funcionamentos nas relações que as levam sempre ao mesmos desfechos já será algo mais desadaptativo, que diminui as hipóteses de as coisas poderem resultar positivamente no futuro.

Algumas vezes (ou em simultâneo) estas dinâmicas na depressividade estão relacionadas com sentimentos e padrões de relação que pertencem a um passado precoce, que mesmo que não seja recordado por memória tradicional (imagens mentais), é recordado pela memória afetiva (repetição ao longo da vida - sem ligação aparente ou consciente com situações passadas - de certos sentimentos e padrões nas relações). O intuito inconsciente no presente é o de corrigir o padrão da relação gravada internamente e os sentimentos mais dolorosos (e carências), mas quando tudo isto emerge na relação, resulta sempre na repetição de mais do mesmo e aos habituais desfechos.

A partir das poucas informações que a Patrícia partilhou esta é apenas uma resposta muito geral, que aborda aspetos típicos do funcionamento psíquico e relacional na depressividade. Mas o importante é mesmo que a Patrícia possa falar com um psicólogo clínico (de preferência pós-graduado e com especialização em psicoterapia por alguma sociedade científica) e fazer uma entrevista de avaliação e diagnóstico. A psicoterapia pode ajuda-la a entender-se melhor a si mesma e às suas relações, bem como a resolver e/ou diminuir a angústia e tristeza, o sentimento de ser pouco interessante/importante para os outros, o medo da perda do amor dos namorados, a tendência em anular-se nas relações, a dificuldade em lidar com as perdas efetivas, a dificuldade em poder zangar-se (em lidar com a agressividade), os sentimentos de culpabilidade e inferiorização excessivos (agressividade dirigida para dentro de si) e a sua autoestima. 

Espero de alguma forma ter conseguido dar-lhe alguma orientação... 
Os dados pessoais dos envolvidos foram alterados de modo a proteger a privacidade dos mesmos.

sexta-feira, março 27, 2015

VII Encontro da AP – Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica



A Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica organiza no Centro Cultural Casapiano de Lisboa, no dia 18 de Abril, o  VII Encontro AP: “Terror sem nome. Psicanálise e a urgência de sonhar”.

Este Encontro pretende ser um espaço de reflexão e debate sobre saúde mental, a partir dos vértices teórico-clínicos e sócio-culturais, relacionados com os aspetos da vida mental inibidores da criatividade e da capacidade de sonhar.

A Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica organiza no Centro Cultural Casapiano de Lisboa, no dia 18 de Abril, o  VII Encontro AP: “Terror sem nome. Psicanálise e a urgência de sonhar”.

Neste contexto, contamos com a participação de um convidado internacional, Maurizio Peciccia (psiquiatra, psicanalista e presidente honorário da APIART - Arte-terapia Italiana), bem como com a presença de vários especialistas nacionais, tais como António Coimbra de Matos (psiquiatra e psicanalista, presidente da Direção da AP), Carlos Amaral Dias (psiquiatra e psicanalista, presidente da Comissão de Ensino da AP), José Barata (psiquiatra e psicanalista, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática), Henrique Monteiro (escritor, jornalista e comentador político), Joana Amaral Dias (psicóloga e política, psicodramatista didata da Sociedade Portuguesa de Psicodrama), Carlos Paulo (actor e encenador, fundador e dirigente do grupo de teatro da Comuna), entre outros.

 

As inscrições poderão ser realizadas através do site www.apppp.pt ou do link http://inscricoes.apppp.pt/

Local do evento:
Casa Pia Lisboa-Pina Manique
Rua do Jeronimos, N. 5, 1400-210 Lisboa


Outros links do evento:
https://www.facebook.com/events/804064616330473/
http://apppp.pt/vii-encontro-ap-terror-sem-nome-psicanalise-e-a-urgencia-de-sonhar/
http://apppp.pt/iii-jornadas-clinicas-ap-transformar-o-terror-sem-nome/

quarta-feira, março 04, 2015

Psicoterapia Breve vs. Psicoterapia Longa: Considerações


As terapias breves são muito eficaz na resolução de diversos problemas ou sintomas, dependendo da psicoterapia em questão. É também verdade que para determinados problemas - nomeadamente perturbações de trauma e dissociação - existem tratamentos de rapidez dramática como o EMDR. Há no entanto problemas mais complexos que não são passíveis de serem resolvidos com meras sessões de psicoterapia, pois requerem um duro trabalho de reestruturação de personalidade em profundidade.

As psicoterapias breves em geral visam o alívio rápido de sintomas - aqueles que cedem à intervenção breve - e não um trabalho profundo e abrangente, que lide não só com aquilo de que a pessoa se queixa mas com tudo o que existe em torno de tal e aquilo que vai surgindo à medida que se trabalha a queixa/pedido inicial, e assim sucessivamente. As psicoterapias breves, no geral pouco conseguem fazer face às perturbações de personalidade, por exemplo, porque não se trata daquilo que a pessoa "têm", mas daquilo que a pessoa "é". São padrões muito próprios e automáticos de sentir, de pensar, de agir, de perceber o mundo em redor, de perceber os outros e as relações, pdrões únicos de acomodação às exigências da realidade, de lidar com o stress, de lidar com as perdas, de lidar com as ameaças à autoestima. São padrões de funcionamento e de "ser" que estão enraizados no íntimo da pessoa tal como ela é.

Mais de 100 anos de investigação clínica têm mostrado sistematicamente que a maturidade e a capacidade de vivermos uma vida satisfatória está ligada ao desenvolvimento psicológico (maturação) durante a infância (sobretudo), base da nossa personalidade. Em cada fase específica do desenvolvimento psicológico desenvolvem-se (ou não) certas capacidades que são fundamentais para a vida adulta. Por vezes o trabalho clínico implica o retomar do desenvolvimento psicológico que foi interrompido, ou que não se conseguiu completar satisfatoriamente em determinadas áreas ao longo do crescimento. Só um psicólogo com conhecimentos aprofundados nos modelos da psicologia do desenvolvimento (e quantos mais conhecer, melhor) consegue fazer essa avaliação, bem como a avaliação das capacidades que a pessoa foi conseguindo desenvolver ao longo da vida, e aquelas cuja falta ou escacez estão na base e por de trás dos problemas que trazem a pessoa à consulta. Por vezes este apuramento clínico ou avaliação rigorosa da psicologia em profundidade de uma dada pessoa requer várias consultas de avaliação e acompanhamento. Sendo inerente e parte da natureza das consultas de psicologia clínica e psicoterapia que ao longo do processo, quanto mais se aprofunda, mais se desvenda.

Trabalhar áreas como a identidade, orientação sexual, autonomia, dependências, instabilidade e conflitos persistentes nas relações amorosas, problemas complexos na vida de um casal, depressões profundas, quadros psicóticos, narcísicos, perversões sexuais ou morais, capacidade de iniciativa, produtividade no trabalho, criatividade, ou perturbações de personalidade (esquizoide, narcísica, psicopata, paranoide, borderline, dependente, masoquista, sado-masoquista, histérica, somática, depressiva-anaclítica, depressiva-introjetiva, maníaca, bipolar, perturbações mistas, etc.) não são trabalhos rápidos, nem simples.

Alguém que foi cuidado por um progenitor controlador durante a infância e adolescência, que criava lutas de poder em torno da alimentação, sexualidade ou em torno da obediência geral, poderá mais tarde ser alguém particularmente preocupado com temas de controlo e medo da perda de controlo. Poderá ter uma psicologia muito rígida e autopunitiva, podendo tornar-se alguém também muito severo com os demais. Poderá desenvolver tendência forte para a racionalização (ou um caráter excessivamente "prático", centrado no fazer e no desfazer), com pouco contacto com as próprias emoções e pouca tolerância às suas partes da personalidade mais imaturas. Ainda que aqui possamos falar de uma perturbação obsessiva, compulsiva ou obsessivo-compulsiva de personalidade (diferente de sintomas obsessivos, compulsivos ou obsessivo-compulsivos), isto é o que a pessoa é, e não o que a pessoa têm.

O trabalho psicoterapêutico nestes casos assenta na própria personalidade, nas dinâmicas familiares do passado (agora internalizadas), na identidade e identificações, no desenvolvimento psicológico da pessoa (e a eventual necessidade de retoma de certas etapas do desenvolvimento durante a psicoterapia), etc.. É também um trabalho de expansão da mente, de ajudar a pessoa a aumentar o conhecimento sobre si própria de modo a que consiga ter em conta quais os seus pontos fortes e suas limitações, e assim consiga melhor adaptar-se ás exigências da realidade e a conseguir a autorealização. O objetivo é reduzir a dificuldade em viver e na relação com os demais, reduzir a angústia existencial e os obstáculos na vida (transformando os obstáculos internos e aprendendo a melhor contornar e lidar com os obstáculos externos, o que é muitas vezes consequência da transformação interna). Isto naturalmente não é algo que se consiga fazer em meia dúzia de sessões. È um trabalho duro, que implica compromisso, todo um encadeamento de mudanças subtís na personalidade e respetiva consolidação, mas que ao longo do tempo aproximam a pessoa mais e mais daquilo que verdadeiramente é (deseja ser ou sente que é mas não o consegue atingir sozinha).

Mas, claro, há mesmo quem só queira resolver um ou outro problema isolado e nesses casos, dependendo sempre do problema e do grau de enraizamento do mesmo, é possível fazer uma psicoterapia mais breve e focal, ignorando outras áreas da personalidade.