quinta-feira, janeiro 14, 2016

Teste da Realidade, Psicose e Psicopatia


Este artigo prende-se com uma reflexão clínica, psicanalítica, sobre a psicopatia, a perda do teste da realidade que habitualmente acompanha os quadros psicóticos, e pontos de interseção entre ambas as realidades clínicas.

Sobre o teste da realidade

O teste da realidade é tradicionalmente um indicador da presença de aspetos ligados ao funcionamento psicótico da personalidade. Contudo, mesmo um indivíduo com organização neurótica de personalidade (com um self coeso e bem adaptado à realidade, por exemplo) pode, sob condições de stress invulgar, resvalar, ainda que temporariamente, para um funcionamento mais do âmbito da psicose, cingido provavelmente a um contexto específico, e falhar o teste da realidade nesse contexto ou ligado a essa situação (por exemplo, situações traumáticas). Uma personalidade neurótica não está imune de conter núcleos psicóticos, e tal tende a ser muitas vezes onde se encontra a raiz do maior sofrimento e das maiores incapacidades na vida de uma pessoa.

Falamos aqui sobretudo em organização de personalidade – psicossomática, psicótica, borderline, neurótica e normal. A psicopatia está mais ligada à estrutura da personalidade (depressiva, narcísica, psicopata, etc.), ainda que se possa pensar em articulação com a organização de personalidade.

Alguns autores inclusive removem a categoria da psicose e chamam-lhe esquizofrenia borderline (ver o PDM - Psychodynamic Diagnostic Manual), referindo-se a perturbações graves do teste da realidade, por exemplo.

O teste da realidade também está relacionado com o quão compensado está ou não determinado indivíduo. Alguém que sofra de uma patologia mental relativamente grave pode não apresentar falhas no teste da realidade, desde que se encontre em estado compensado. Contudo o equilíbrio psicológico será frágil, a vulnerabilidade ao stress será maior e a propensão à descompensação e à perda do contacto com a realidade (por exemplo, a criação de uma realidade interna, fantasiada, mais tolerável e menos ameaçadora, ainda que diferente e incompatível com a realidade externa) é grande.

Quanto maior a predominância, numa dada personalidade, de uma parte psicótica, maior a probabilidade de perda do teste da realidade aquando do stress. Outras vezes essa perda do teste da realidade está ligada a situações/conflitos específicos, aos tais núcleos mais frágeis/traumatizados/psicóticos da personalidade.

Sobre a psicopatia e o teste da realidade

A maioria de nós têm traços de uma ou outra perturbação de personalidade (entidades clínicas nosologicamente definidas). Alguns autores consideram que a estrutura psicopata pertence ao âmbito da organização psicótica da personalidade.

Todavia é possível que traços psicopatas existam noutros níveis superiores de organização da personalidade, pelo que nesses casos não falaríamos de psicopatia, mas de tendências psicopatas em quadros de maior salvaguarda do teste da realidade.

Portanto, tanto pessoas com quadros psicopatas como pessoas com quadros psicóticos podem manter o teste da realidade, desde que compensadas. Ou pelo menos manter o teste da realidade na maioria das áreas do funcionamento profissional, interpessoal e das tarefas do quotidiano.

Relação entre psicose e a psicopatia

Se considerarmos o exemplo de patologia psicótica pura e da patologia psicopata pura, então provávelmente estamos a falar de problemas diferentes, ainda que se possam relacionar entre si ou sobrepor em alguns aspetos. Na psicose predominam, por exemplo, os mecanismos da clivagem do self e projeção de partes do self para fora do self, para o mundo exterior e para outros exteriores (mas também para dentro do próprio self, como são o caso dos delírios de ruína e hipocondria). Um outro marco da psicose são as transferências psicóticas (transferem-se partes do self e do mundo interno do self para outras pessoas, sem qualquer sentido de juízo crítico sobre a veracidade das imagens distorcidas dos outros criadas pelo efeito da projeção). Isto pressupões que no interior da pessoa psicótica exista algo de bom, que o aparelho psíquico tenta a todo o custo salvar no intuito da sobrevivência psicológica. Na psicose, o ódio (a agressividade destrutiva) predomina sobre a líbido (o amor), conflito fundamental que da azo aos processos psicóticos, de acordo com algumas perspetivas psicodinâmicas. Essa luta é tal forma feroz que o próprio self se pode mesmo fragmentar - medo de enloquecer - no sentido de salvar a (escassa) benevolência interna ameaçada.

Já na psicopatia (pura), que implica a deterioração grave ou ausência dessa benevolência interior de modo a garantir a sobrevivência psicológica, dá-se a total identificação com o mau (a agressividade, o ódio). Não há processos psicóticos de clivagem e projeção, pois estes apenas existem para a preservação das partes boas da personalidade. Não há transferência psicótica, mas sim transferência psicopata, anterior (mais primitiva) à transferência psicótica. A transferência psicopata prende-se com a manipulação da outra pessoa (ou pior), no sentido deliberado de prejudica-la ou levar a melhor sobre ela, com completa ausência de remorso. Há a preservação do teste da realidade – o psicopata está particularmente bem sintonizado com o funcionamento prático da realidade, interessam-lhe os fins práticos de conseguir poder, no geral ou sobre os outros, e a fuga à responsabilidade.

No psicopata não há bússola moral ou empatia, estes são aspetos marcantes da realidade das relações humanas que os psicopatas não conseguem processar. Se incluirmos estes conceitos no âmbito de “teste da realidade” (ainda que o teste da realidade se refira mais a fenómenos de delírios, alucinações, pensamento mágico, crenças bizarras e ideias de referência) então os psicopatas falham nesse teste, ainda que se mantenham particularmente astutos para a componente prática do funcionamento da realidade. Os três traços psicopatas de uma forma geral são a manipulação, a mentira e os fins egoístas, e também a incapacidade para a honestidade, a não ser que essa honestidade se ligue de alguma forma a algum destes fins ou à necessidade de manutenção de um sentido de omnipotência, de manipulação ou obtenção de poder, mas tal é pouco provável.

Por sua vez podemos considerar a convicção do psicopata de que pode fazer com que tudo aconteça, uma convicção próxima da perda do contacto com a realidade, no sentido de uma imagem omnipotente e logo, psicótica, de si mesmo, se bem que o psicopata não se fica pela convicção, mas busca ativamente o poder. Sabe-se até que a busca pelo poder é um traço de deterioração grave de personalidade e o psicopata procura-o ativamente, quer o poder sobre os outros, ou outro tipo ou forma de poder. Daí que na verdade, e muitas vezes, o poder que os psicopatas detêm é real e dá sustento a uma imagem omnipotente, toda poderosa, de si mesmos. Para um psicopata não há pior que ser diminuído ou de alguma forma ser atacado na sua convicção de omnipotência. Em contexto forense, uma das técnicas para levar um psicopata a confessar um crime é precisamente confronta-lo com descrença sobre a sua capacidade para elaborar e levar a cabo o dito crime. Muitas vezes o psicopata acaba por confessar por uma questão de orgulho, ou necessidade de proteção desse eu mais omnipotente (aqui sim, um delíro de grandiosidade, uma perda do teste da realidade relacionada com a imagem de si mesmo, algumas vezes dificil de perceber pois está misturada com poder real). Na política, por exemplo, alguém com tendências psicopatas poderá por exemplo ser sentido enquanto alguém que projeta força e confiança, no entanto esses aspetos tendem a ser acompanhados por frieza, ausência de remorso e ausência de vulnerabilidades, que suscita nas outras pessoas por vezes um sentimento de se estar na presença de alguém como que todo-poderoso. Os psicopatas são também muito frequentemente encontrados em altos cargos nas chefias de algumas empresas, como nas grandes empresas e grupos financeiros. Estes são os psicopatas passivos, menos agressivos, mas muitas vezes muito mais destrutivos.

Psicopatas mais inteligentes (mais adaptados socialmente) podem efetivamente conseguir altos cargos no poder, a todos os níveis. Neste caso não só mantêm o teste da realidade (pelos menos na área profissional, por exemplo) como podem mesmo ser bastante bem sucedidos.

Em psicoterapia um ganho terapêutico no trabalho com perturbações psicopatas acontece por exemplo quando estas pessoas se tornam um pouco mais psicóticas, ou seja, quando conseguem começar a desconfiar do terapeuta – passam de uma transferência psicopata para uma transferência psicótica paranoide. Tal já denota a existência de algo de bom dentro da pessoa, que para ser preservado, leva com que a pessoa expulse (projete) as partes más. 

Mais grave que a psicopatia é ainda a perturbação sádica da personalidade, onde a experiência subjetiva da pessoa é a de morte interna e subsequente necessidade de dominar, controlar absolutamente, atormentar e destruir os outros. Não existem até à data psicoterapias de sucesso com pacientes com perturbações sádicas de personalidade. Todas as psicoterapias conduzidas a estes pacientes são conduzidas já em contexto prisional.

Em suma, a psicopatia ou aspetos da psicologia psicopata podem ser pensados como patologia isolada e em estado puro (raramente assim surge em consultório), como podem surgir, em maior ou menor grau, misturados com sintomatologia psicótica, borderline ou até com níveis de funcionameto mental mais evoluídos. 



segunda-feira, janeiro 04, 2016

Experiências Adversas na Infância: Alterações cerebrais críticas ao longo da vida


Em continuidade com o artigo anterior enunciamos algumas das mais importantes alterações cerebrais ligadas às experiências adversas de infância (EAI), das quais resultam quase sempre o trauma, a psicopatologia e as perturbações de personalidade, mas mais concretamente, a dificuldade crónica em lidar com o presente e com o futuro ao longo da vida.


1. Alterações Epigenéticas

Quando somos sistematicamente empurrados para situações indutoras de stress durante a infância ou a adolescência, a nossa resposta fisiológica ao stress muda para um estado exacerbado, e perdemos a capacidade de responder apropriadamente e eficazmente a futuros stressores – 10, 20, e até 30 anos depois. Isto acontece devido a um processo conhecido como metilação de genes, no qual pequenos marcadores químicos, ou grupos de metilo, aderem aos genes envolvidos na regulação da resposta ao stress, e previnem esses genes de desempenharem as suas funções. À medida que a função destes genes é alterada, a resposta ao stress torna-se reconfigurada para “alta” para a vida, promovendo inflamação e doença.
Isto pode tornar-nos mais propensos a reagir exageradamente aos stressores da vida diária que encontramos na vida adulta – uma conta inesperada para pagar, um desacato com o companheiro, ou um carro que se coloca à nossa frente na auto-estrada, gerando mais inflamação. Isto, por sua vez, predispõe-nos a um corpo de doenças crónicas, incluindo as doenças auto-imunes, doença cardíaca, cancro e depressão.

Os investigadores de Yale descobriram recentemente que as crianças que sofreram stress crónico e tóxico demonstravam alterações “ao longo de todo o genoma”, em genes não apenas responsáveis pela regulação da resposta ao stress, mas também em genes implicados num vasto leque de doenças do adulto. Esta nova pesquisa sobre trauma emocional precoce, alterações epigenéticas, e doenças físicas do adulto quebra demarcações duradouras entre aquilo que a comunidade médica tem sempre considerado ser a doenças “física” em contraposição com aquilo que é “mental” ou “emocional”.

2. Tamanho e Forma do Cérebro

Os cientistas descobriam que quando o cérebro em desenvolvimento é cronicamente sujeito a stress, liberta uma hormona que na verdade reduz o tamanho do hipocampo, uma área do cérebro responsável pelo processamento da emoção, da memória e da gestão do stress. Estudos recentes a partir de técnicas de ressonância magnética sugerem que quanto mais alto o indicador de experiências adversas de infância (EAI), menor a quantidade de matéria cinzenta ele ou ela apresentam noutras áreas-chave do cérebro, incluindo o córtex pré-frontal, uma área relacionada com a capacidade de tomada de decisão e capacidades de auto-regulação, e a amígdala, ou centro de processamento do medo. As crianças cujos cérebros foram alterado pelas EAIs são mais propensas a tornarem-se adultos que reagem excessivamente a stresses menores.

3. Poda Neural

As crianças têm uma sobreabundância de neurónios e ligações sinápticas; os seus cérebros estão fortemente a trabalhar, a procurar fazer sentido do mundo à volta delas. Até à bem pouco, os cientistas acreditavam que a perda de neurónios em excesso e ligações resultava somente da não utilização dos mesmos, mas um novo advento surgiu, relacionado com o desenvolvimento do cérebro: as células não-neuronais do cérebro, conhecidas como microgliócitos, que constituem um décimo de todas as células do cérebro, e são de facto parte do sistema imunitário – participam no processo de poda neural. Estas células também engolfam e digerem celular inteiras e detritos celulares, desempenhando portanto um papel fundamental de “limpeza da casa”.

Todavia, quando uma criança enfrenta stress crónico inesperado, ou EAIs, os microgliócitos podem passar a funcionar mal e expelir neuroquímicos que resultam em neuroinflamações. Esta neuroinflamação crónica que passa facilmente despercebida pode conduzir a alterações que reconfiguram o tom do cérebro para toda a vida.

Isto significa que as crianças que chegam à adolescência com um historial de adversidade e lhes falta a presença de um adulto consistente e cuidador que os ajude na adversidade, podem tornar-se mais propensos a desenvolver perturbações do humor ou sofrerem comprometimentos nas capacidades de funcionamento executivo e de decisão.

4. Telomeres

O trauma precoce pode dar aparência mais “velha” a uma criança, em termos emocionais, relativamente aos seus colegas da mesma idade. Neste momento, cientistas da Universidade de Duke; Universidade da Califórnia em São Francisco; e da Universidade de Brown descobriram que as EAIs podem envelhecer prematuramente as crianças igualmente a um nível celular. Adultos que enfrentaram traumas precoces demonstram uma maior erosão naquilo que se chamam os telomeres – os invólucros protetores que se encontram no final das cadeias de ADN, como os invólucros dos atacadores de sapatos, para manter o genoma saudável e intacto. À medida que os nossos telomeres se desgastam, ficamos mais propensos a desenvolver doenças, e as nossas células envelhecem mais rapidamente.

5. Rede neural em modo padrão (Default Mode Network)

Dentro de cada um dos nossos cérebros, uma rede de neurocircuitos, conhecida como o “rede neural em modo padrão”, ressoa silenciosamente, como um carro parado em frente a um semáforo. Une áreas do cérebro associadas com a memória e integração do pensamento, e está sempre em standby, preparada para nos ajudar a perceber o que fazer em seguida. “A conectividade densa nestas áreas do cérebro ajudam-nos a determinar aquilo que é e não é relevante, para que possamos estar preparados para o que quer que o nosso ambiente nos solicite”, explica a neurocientista Ruth Lanius.

Quando as crianças enfrentam adversidade precocemente e são rotineiramente impulsionadas a um estado de luta ou fuga, a rede neural em modo padrão começa a desligar; não ajuda mais a criança a perceber o que é relevante, ou o que precisam fazer em seguida. De acordo com Lanius, as crianças que enfrentaram traumas precoces apresentam menor condutividade na rede neural em modo padrão – mesmo décadas após a ocorrência do trauma. Os seus cérebros aparentam não entrar na posição saudável de prontidão – e por tal, elas podem ter problemas em reagir adequadamente ao mundo em redor.

6. Ligação Cérebro-Corpo

Até há bem pouco tempo, era cientificamente aceite que o cérebro estava separado do sistema imunitário do corpo. Mas parece que tal não é o caso, de acordo com um estudo revolucionário levado a cabo por investigadores da University of Virgina School of Medicine. Os investigadores descobriram que existe um caminho esquivo entre o cérebro e o sistema imunitário, via dos vasos do sistema linfático. O sistema linfático, que incorpora o sistema circulatório, transporta “a linfa” – um liquido que ajuda a eliminar toxinas, e move células imunitárias de um local do corpo para outro. Agora sabemos que o percurso do sistema imunitário inclui o cérebro.

Os resultados deste estudo têm profundas implicações para a pesquisa das EAI. Para uma criança que viveu adversidade, a relação entre o sofrimento mental e físico é forte: os químicos inflamatórios que inundam o corpo da criança quando ela é cronicamente exposta a stress não estão confinados somente ao corpo.

7. Conectividade Cerebral

Ryan Herringa, um neuropsiquiatra e professor assistente de psiquiatria da infância e adolescência, descobriu que as crianças e os adolescentes que vivenciaram adversidade crónica na infância demonstravam ligações neuronais mais fracas entre o córtex pré-frontal e o hipocampo. As raparigas demonstravam também ligações mais fracas entre o córtex pré-frontal e a amígdala. A relação córtex pré-frontal – amígdala desempenha um papel essencial em determinar o quão emocionalmente reativos tenderemos a ser face àquilo que sucede connosco no nosso dia-a-dia, e o quão provável será percebermos essas situações como ansiogénicas ou perigosas.

De acordo com Herringa:

“Se você é uma mulher que enquanto menina vivenciou EAIs, e tal enfraqueceu estas ligações cerebrais, poderá esperar vivenciar um maior nível de medo e ansiedade em quase todas as situações ansiogénicas que encontrar ao longo da vida.”

Estas ligações enfraquecidas relacionam-se com um maior risco de desenvolvimento de ansiedade e depressão durante a adolescência tardia. Isto explica, em parte, o porquê das raparigas apresentarem um risco em dobro de desenvolver perturbações de humor, quando comparadas com rapazes.

Esta ciência pode ser avassaladora, especialmente para aqueles de nós que são pais. Portanto, o que podemos fazer caso você ou um filho que ame foi afetado pela adversidade precoce? As boas notícias são que, à medida que o nosso conhecimento científico aumenta na área da afetação do desenvolvimento cerebral mediante a adversidade, também aumenta o nosso insight científico sobre como oferecer aos nossos filhos uma parentalidade resiliente, e como podemos todos tomar pequenos passos para curar o corpo e a mente. Tal como as feridas e as nódoas negras se curam, tal como podemos reabilitar a tonalidade muscular, também podemos recuperar a função em áreas do cérebro sub-conectadas. O cérebro e o corpo nunca são estáticos; eles encontram-se permanentemente num processo de tornar-se e mudar.

"Tradução livre da Psicronos"