sábado, outubro 17, 2015

Amor romântico e amor genuíno (Budismo, Psicanálise, Narcisismo e Amor)





Enquanto alguém que pratica e estuda filosofia budista e psicanálise, acho que ambas as disciplinas se debruçam bastante sobre este tema. Gosto particularmente de como a psicanálise organiza estas ideias.

"Amor (love)" e "Apego(attachment)" para a psicanálise não são contraditórios de facto. Outro termo para "attachment é "vínculo". No principio um bebé é amado (o banho de sedução mútua que o bebé interioriza pelo olhar de amor e fascínio da mãe, por exemplo). Depois passa a amar-se. Finalmente, ama. No fundo falamos de narcisismo, da evolução do narcisismo, do amor narcísico, interesseiro, para o amor oblativo, generoso. 

Freud falava deste mistério em como nas relações amorosas investir no outro levaria a um empobrecimento do Eu, porque a nossa energia deixava em grande medida de estar em nós e passava para o outro. Depois constatou que para não nos esvaziarmos, o investimento amoroso no outro tem de ser recíproco. É o amor do outro que nos alimenta numa relação amorosa. 

Contudo, o amor maduro implica sempre um investimento em nós (narcísico-normativo) e no outro em simultâneo. Pelo que para um amor maduro, há que ter um narcisismo saudável (um amor próprio ou auto-consideração maduros e auto-reguláveis, entre outras coisas). Nas relações em que um dá muito e o outro dá muito pouco, temos uma economia depressígena - aquele que recebe pouco ir-se-á esvaziando e tal conduz à depressão (ou o reavivar da depressão latente). 

Amor sem interesse é generosidade, base da capacidade de amar, e requer um bom desenvolvimento do narcisismo com acesso à capacidade de gratidão. 

Todavia os vínculos amorosos saudáveis implicam a entrega, e por tal, isso implica que ao nos entregarmos, também estamos a abrir-nos a receber do outro. Não vivemos ou podemos sobreviver isolados dos afetos dos outros, sobrevivemos disso, e a falta de tal marca a psicopatologia. Aqui sim, quando o narcisismo é deficitário, quando o bebé e a criança não recebem na medida daquilo que necessitam, o amor narcísico, interesseiro, pode ser a única modalidade de amor que fica acessível na idade adulta, enquanto expressão de problemas oriundos de uma época de vida em que se precisou de algo mais, mas não se consegui receber o suficientemente, por algum motivo. Aqui o "attachment" é "grasp" (apego), é dependência porque se procura no outro algo que outrora não se recebeu. Nem se pode receber deste outro (quando a falta/falha é significativa e persistente), pois tal a carência remete para questões ligadas ao desenvolvimento psicológico e da personalidade, e tal dimensão da experiência humana não pertence às relações amorosas, mas às relações parentais ou às relações psicoterapêuticas. 

Estas faltas são dos maiores contribuintes para o medo acentuado da perda. Ama-se interesseiramente, ama-se para se ser amado ou admirado, ou para estar associado àqueles que são alvo de admiração e prestígio. Ama-se para se ser amado ou para não se ser abandonado. Ou ama-se meramente enquanto reforço para a identidade (o outro tem características que nos conferem um sentido de identidade reforçada quando nos associamos a ele). Procuramos então encher-nos tornando os outros apêndices de nós mesmos. Muitas vezes o orgulho ou a vergonha no companheiro atestam bem esta realidade. O outro serve (ainda que por vezes não exclusivamente, e apenas em parte) uma função de restaurar e repor a autoestima. 

Neste terreno do amor narcísico é também onde surgem as idealizações mais patológicas. O amor implica uma certa idealização inicial, contudo no amor narcísico a idealização é forte e não tolera nada bem a realidade do outro, que não pode ser amado tal como é mas apenas ou sobretudo pela função que desempenha. Tal é o caso, por exemplo, das mães e pais que desaprovam dos filhos toda a vez que estes não correspondem às suas expetativas, ou se desiludem constantemente com eles. Filhos que acabam por não poder ser muitas vezes eles próprios (aceites, validados e amados enquanto tal), herdando uma ferida narcísica profunda. 

No caso dos filhos há sempre um amor narcísico à mistura, ainda que possa predominar o amor oblativo, pois na prática os filhos são mesmo extensão dos pais, partilham o mesmo ADN! É uma realidade normativa ainda que implique, de forma a que mantenha os contornos saudáveis desejados, uma capacidade de diferenciação dos desejos dos pais e da autonomia, identidada e desejos dos filhos. Tal como também são normativas certas necessidades narcísicas humanas, que perduram ao longo da vida - pertencer a grupos com os mesmos interesses e valores, sermos validados no trabalho, sermos compreendidos pelos amigos. 

Amar oblativamente sem exigir nada em troca é o ideal, contudo apenas é possível se em troca recebermos o mesmo tipo de amor. Parece contraditório pois há uma expetativa de retorno, que poderíamos apelidar de narcísica, ainda que, mais uma vez, nós de facto vivemos de afetos e sem eles afundamos na depressão, ou pior. O amor sem exigir - "amo-te e por tal quero que sejas feliz"- para se manter subentende a entrega genuína e o encontro com um outro que também esteja disposto a amar sem exigir. Mas também podemos pensar que no ideal maduro de alguém que ama genuinamente está gravado o valor de fazer o companheiro feliz, e desta forma, dar felicidade ao outro também nos dá felicidade, de um modo narcísico, mas saudável, pois é a realização de um ideal nosso, um valor nosso ideossincrático. Ao mesmo tempo vamos também captando o amor que o outro nos dá. Por sua vez quando recebemos sentimos gratidão e tal dá azo à generosidade, ou seja à vontade de dar mais amor ainda! É uma espiral de amor que se gera, sem exigência, baseada num bom desenvolvimento do narcisismo de parte a parte e no crescente desejo de dar que advém da experiência do receber.

quinta-feira, setembro 03, 2015

Resolver a Dependência nas Relações Amorosas (II) - Aquando e Para Além da Dependência


Contudo, muitas vezes não basta o percurso que conduz à redução da dependência. Por entre os meandros desse percurso há também que trabalhar traumas e fantasmas que habitam dentro de nós, involuntariamente estimulados e acordados quanto nos vinculamos (ou intencionamos vincular-nos) mais íntima e intensamente a alguém. Falamos das influências oriundas das nossas primeiras e mais marcantes relações com as nossas figuras principais de vinculação durante a infância e adolescência. Como estes são os vínculos mais fortes que construímos logo no início de vida, assim que nos vinculamos ou tencionamos vincular-nos mais intensamente com alguém, naturalmente toda a nossa história emocional vivida nesse registo de vinculação vem ao de cima. Quanto mais negativa for essa história, mais conflitual tendem a ser as relações íntimas na vida adulta - e mais inescapáveis tendem a ser.

São frequentes as exigências de comportamentos e atitudes nos companheiros do presente, que acabaram por faltar (ou foram insuficientes) nos cuidadores do passado. Como que num intuito (por vezes mais inconsciente) de reparação do passado através do presente, que mais não serve enquanto defesa à religação emocional com o passado. Assim, impossibilita o processamento emocional e o luto de um passado que ficou aquém do desejo, do amor e dos cuidados que nessa altura se precisou, mas não foram recebidos (ou que se tiveram, insuficientemente) nessa altura. O que ainda pode ser realisticamente vivido no presente torna-se então relativamente inacessível. Fica-se fechado ao amor que é realisticamente possível ser vivido - o amor maduro, paciente, compreensivo e não exigente das relações adultas - com quem realisticamente está ao nosso lado - e não com os fantasmas do passado que distorcem a realidade da outra pessoa, que lhe incutem características irrealistas e desadequadas e que resultam em expetativas também elas pouco adequadas às relações íntimas maduras, ainda que adequadas a outras épocas de vida e em outras relações. No presente há apenas uma repetição interminável de mais do mesmo, ainda que sempre no intuito de se conseguirem "aquelas" respostas, "aquele" amor.

Também no psicoterapeuta são frequentemente colocadas estas exigências concretas, inicialmente, ou muitas vezes durante e após um período de queixume sobre as mais diversas atitudes, comportamentos e traços de personalidade do companheiro ou companheiros. Queixas de como estes não conseguem/podem ser como a figura (idealizada) que ainda se precisa e ainda se procura. Cabe ao psicoterapeuta a responsabilidade de criar uma relação de confiança que por um lado seja diferente daquelas que não conseguem dar as respostas e cuidados adequados. Mas também uma relação em que a dor e carências do passado possam finalmente ter expressão, e em que presente e passado possam ir sendo cada vez mais separáveis, até que o passado cicatrize e passe a ser verdadeiramente passado. Assim, abre-se a possibilidade de um presente que pode ser conhecido e vivido plenamente tal como é, e de nele poderem ser encontradas e criadas novas fontes de prazer e de alegria que gratificam e preenchem plenamente. Enquanto seres humanos a verdade infeliz é que nós não precisamos relembrar o passado, porque todos nós vivemos o passado no nosso presente de uma ou de outra forma. Algumas pessoas inclusive não têm possibilidade ao longo de toda a vida de conseguirem viver verdadeira e plenamente o presente, sem as faltas, exigências ou deturpações do passado.

Para finalizar, fica a nota de que a dependência e o que fica dentro de nós enquanto precipitado de outros tempos de vida têm uma ligação íntima com a nossa autoestima (e com a nossa identidade). Este é mais um dos eixos extensivamente trabalhado durante uma psicoterapia aquando do trabalho sobre a capacidade de cuidarmos de nós mesmos, a autonomização emocional (e não só) e a identidade, entre outras áreas da personalidade.

segunda-feira, agosto 31, 2015

Resolver a Dependência nas Relações Amorosas (I) - Da Dependência à Possibilidade do Amor Maduro


"Como é que eu deixo de abdicar de mim nas minhas relações, de me submeter à vontade dele/dela e de me humilhar perante ele/ela?"

"Como é que eu consigo o amor que procuro sem ficar tão dependente?"

"Como faço para que deixem de haver tantas discussões?" 

Tudo o que mais queremos e almejamos nas nossas relações íntimas amorosas é ser amados. É poder sentir o quão importantes e interessantes somos para a outra parte e a sua vontade de estar e conviver connosco. E, a partir daí, é podermos construir uma verdadeira, sólida e profunda intimidade e cumplicidade a dois. Mas... nem sempre conseguimos isto. Por vezes não o conseguimos por mais relações que tenhamos. E assim, a vida vai passando por nós.

As relações amorosas caracterizam-se por uma interdependência normativa entre ambos os
companheiros. São duas pessoas que se interessam uma pela outra, que investem uma na outra, e cuja economia emocional de cada pessoa passa a depender em grande parte do retorno afetivo do outro amado. Nesta medida, permanecer em relações onde não há esse retorno ou ele é insuficiente, pode resultar num desequilíbrio emocional relacionado com o abaixamento contínuo da autoestima e com a depressão. Quando existem problemas emocionais de fundo (como alguma forma de depressão), com repercussão na autoestima, então as relações amorosas tendem a ser bastante procuradas no intuito de servirem como que de plataformas de salvação. Tornam-se vitais e a sua perda é de tal forma perigosa que mais vale permanecer numa má relação que sem nenhuma relação. Claro que, permanecer numa relação sem o retorno afetivo necessário é também o caminho para o agravamento da dor emocional e da depressão, e logo, da dependência. Fica-se num beco sem saída.

A dependência original remete para o período da infância. Podemos dizer que toda a infância é uma longa fase de dependência que, quando tudo correr relativamente bem, termina no acesso à autonomia ou à dependência madura nas relações com as outras pessoas. De facto, a dependência, ou necessidade de sermos cuidados, está imbuída no nosso ADN. Logo desde bebés essas necessidades requerem respostas concretas pelas principais figuras de cuidados e vinculação da infância. As consequências de tal não acontecer são, particularmente no início de vida, muito graves para o desenvolvimento psicológico.

É imprescindível, por exemplo, que no inicio de vida haja a presença de um cuidador tranquilo, disponível, consistente e sintónico com as necessidades do bebé de dormir, de ser alimentado, de que lhe mudem a fralda quando está molhada, quando tem frio ou quando está a ser hiperestimulado (muitos sons, muitas solicitações ou muitas pessoas presentes, que acabam por saturar o aparelho psíquico ainda demasiado imaturo para conseguir filtrar sozinho tantos estímulos). Do encontro entre estas necessidades e estes cuidados nasce o sentimento de existência e o prazer de existir.

As crianças pequenas sozinhas não têm a capacidade de discriminar emoções nem de entende-las e dar-lhes os devidos significados para que a partir daí possam organizar o pensamento. Ou seja, dependem dos cuidadores para que estes as ajudem a digerir (processar/elaborar) e integrar (interiorizar) as emoções e as experiências de vida ligadas a estas. Um pai ou uma mãe atentos a um filho pequeno que parece mais abatido ou demasiado irrequieto irão procurar sentar-se junto dele e, através de uma atitude tranquila e paciente, sintónica, empática e ás vezes um pouco intuitiva, irão procurar compreender o que se passa. Neste diálogo a criança, que não tem nome para o que sente, nem sabe porque o sente, irá dispor do próprio aparelho de pensar as emoções dos adultos que cuidam dela. Assim, os pais vão procurando perceber, dar nome e pensar sobre as emoções/situações que a criança está a tentar perceber e organizar dentro de si. Subitamente percebe-se que a criança não está mais abatida! As emoções difíceis foram nomeadas, pensadas e transformadas pela disponibilidade tranquila e paciente, e pela compreensão empática dos pais ou outros cuidadores.

Gradualmente uma criança vai ganhando confiança de que existem outras pessoas à volta dela junto das quais ela consegue alívio das suas angústias. Para além disso ela consegue também, através da relação e do diálogo com essas figuras, organizar o pensamento e obter novas perspetivas que lhe vão dar respostas e soluções para problemas com os quais não consegue lidar sozinha. É também esta a relação que o psicoterapeuta psicanalítico oferece e das funções mais importantes que desempenha ao longo de uma psicoterapia.

A capacidade de gerir e digerir as próprias emoções mais difíceis e conteúdos internos vai por consequência aumentando, e com isso a capacidade de fazer face a situações difíceis sem uma necessidade tão grande de depender de ajuda exterior. Ou seja, a dependência começa a enfraquecer e a autonomia a formar a sua sólida raiz com base neste incremento de robustez da personalidade e das partes saudáveis da mesma (que conferem a capacidade de lidar com emoções mais difíceis); na interiorização da função pensante e transformadora das emoções daqueles que apoiam a criança desta forma sempre que ela precisa; e na expansão da capacidade de pensar. Sendo também estes os objetivos e ganhos da psicoterapia.

Simultaneamente a confiança para viver, explorar e fazer novas experiências é reforçada pela possibilidade sempre presente do regresso para junto daqueles que oferecem o seu apoio (disponibilidade e compreensão empática) no sentido do alívio das angústias e da organização da experiência interna da criança quando ela mais precise. Reforça-se o prazer de funcionar autonomamente, com base na interiorização da disponibilidade das figuras reais de apoio. Tal como é o efeito da disponibilidade do psicoterapeuta e do espaço da psicoterapia, sempre ao dispor para regresso ao mesmo àquela(s) hora(s) específica(s) da semana.

Finalmente surge a capacidade da criança, e mais tarde do adolescente e do adulto, de construir outras relações à sua volta, com base nestas relações sanígenas capazes de apoiar e de oferecer lucidez, bem como de ajudar a organizar o pensamento sempre que necessário. Assim como também a psicoterapia procura ajudar a trabalhar as dificuldades pessoais à possibilidade de serem procuradas, criadas e geridas relações sanígenas ao longo da vida.

Assim, a dependência infantil não existe mais. Estão organizadas internamente as bases da autonomia ou da dependência madura, que nas relações amorosas permitem a liberdade para sair ou abandonar relações menos gratificantes. Isto porque no passado lá estiveram relações melhores e mais gratificantes, porque esse é o mundo interno relacional com o qual a pessoa está sintonizada dentro dela, porque existem outras relações no presente (pais, amigos, ou outros) que oferecem maior bem-estar e satisfação que a própria relação amorosa (que deve ser das mais gratificantes de todas). Por tudo isto, a esperança ou sentimento de possibilidade viável e real de serem encontradas e construídas outras relações mais em sintonia com as necessidades e desejos pessoais é também grande. A relação terapêutica é também uma nova relação que se oferece enquanto nova experiência, reparadora, sanígena e unidade de referência para a procura, refinamento e construção de outras relações ao longo da vida.

quarta-feira, agosto 05, 2015

Como Apaziguar uma Zanga de Casal (II)


Contenção da ansiedade, transformação e devolução sob forma de cuidados e afeto
Estados emocionais/mentais de propensão ao conflito destrutivo em casal

- Perda interna do contacto com o bem-querer e com o amor da outra pessoa em relação a nós
- Perda interna do contacto com as boas coisas que recebemos e vivemos com a outra pessoa
- Perda interna do contacto com o nosso bem-querer e amor pela outra pessoa
- Precipitação ao encontro confrontativo com a outra pessoa (no real ou na fantasia)
- Estado de grande excitabilidade e/ou zanga interior
- Propensão forte para culpar, criticar ou "sentenciar"
- Perda interna do contacto com a própria quota parte de responsabilidade
- Impermeabilidade aos argumentos da outra pessoa, por vezes sentidos como fuga à responsabilidade ("saltitar" de tema em tema sem serem aceitas argumentos ou resoluções válidas, trazer outros assuntos ao de cima não relacionados diretamente com o assunto atual)
- Ausência de culpabilidade ou remorso pelos ataques inflingidos

O que nunca fazer durante uma zanga de casal

Culpabilizar ou criticar

Todo o cerne da discussão que se transforma em zanga acesa está alicerçado num estado emocional em que a ansiedade não pode ser tolerada naquele momento, por uma ou ambas as partes. Culpabilizar, responsabilizar ou sentenciar é o equivalente a atirar gasolina para a fogueira.

Antes, cada um dos parceiros deve expor os seus sentimentos, de modo a deixar que a outra parte possa perceber por si mesma o efeito das suas atitudes e comportamentos sobre a relação ou sobre o outro, sem que isso seja atirado violentamente. Caso contrário tal irá resultar numa rejeição imediata e num atirar as culpas de volta, mesmo que os argumentos sejam totalmente válidos. O que está em causa não é a veracidade de argumentos, mas a própria capacidade da mente de tolerar, processar e integrar essas responsabilidades, que por vezes fica comprometida e necessita ser recuperada antes que se possa chegar a um qualquer entendimento entre duas pessoas.

Procurar resolver por SMS

Toda a dinâmica da contenção assenta na necessidade de existir alguém que possa permanecer relativamente tranquilo (mas não necessariamente indiferente) face à ansiedade e conteúdos de outra pessoa, que naquele momento não consegue conter ou transformar internamente essas ansiedades. O tom de voz tranquilo que veicula a paciência compreensiva é a base desta contenção. O SMS é o seu antípoda. Ou seja, a pessoa zangada pode projetar facilmente a ansiedade e zanga no SMS (que representa a outra pessoa, mas não é a pessoa). Assim, salvo exceções, o SMS tenderá a ser percebido e recebido de acordo com os mesmos tons emocionais negativos em que a pessoa ansiosa e zangada se encontra. Novamente, gasolina para a fogueira.

Descurar a responsabilidade pessoal sobre o assunto ou assuntos entre mãos

Um casal é uma união entre duas pessoas. Um problema de casal é um problema de duas partes e se há conflitos então há responsabilidades partilhadas e/ou assuntos que necessitam ser melhor esclarecidos.

Sair abruptamente da presença da outra pessoa

Algumas pessoas evitam o confronto sistematicamente enquanto forma padrão de resolver problemas, pelo que na verdade nada se resolve, antes pelo contrário, os problemas acumulam e levam inevitavelmente a novas situações de confronto.

Adiar o conflito é por vezes uma importante atitude de auto-preservação quando somos apanhados de surpresa, quando a outra pessoa se mostra inflexível, demasiado agressiva, ou não está de modo nenhum recetiva à resolução do problema. É também importante procurar transmitir à outra pessoa quando percebemos que não estamos em condições de abordar determinados assuntos em determinados momentos,  o que se prende com o conhecimento e respeito pelos nossos limites e está em linha com o nosso intuito de abordarmos assuntos mais sensíveis num momento mais propício a que se possam resolver da melhor forma possível. 

Acontece também algumas vezes que a primeira pessoa tenha mais dificuldade em adiar o confronto para um momento mais propício, pela zanga e pela dificuldade na contenção naquele momento. Ainda assim, assuntos sensíveis devem sempre ser abordados de forma assertiva e sempre no momento em que ambas os companheiros se sintam mais capazes para lidar com eles. Caso contrário o potencial para a destrutividade é muito elevado.

Em suma, quando duas pessoas numa relação íntima iniciam uma discussão que aumenta gradualmente de intensidade, então das duas, uma: ou há um "time-out", fundamental para que ambos se tranquilizem e consigam regressar a um estado de maior integração, ou então pelo menos uma das pessoas deve conseguir manter alguma calma, recetividade e paciência compreensiva, de modo a conter a ansiedade e os conteúdos da outra pessoa e ajuda-la a acalmar-se, sem responsabilizar, culpar, retaliar ou abandonar.

No caso do time-out, os amigos e familiares são fundamentais para nos ajudarem a desintoxicar estados pesados de ansiedade, quando não conseguimos faze-lo sozinhos, ou quando por algum motivo a comunicação imediata com o companheiro não é possível ou não é prudente.

Quando as relações são marcadas pelas discussões persistentes, pela incapacidade de um ou ambos os companheiros se acalmarem mutuamente e sobretudo a si próprios, então a psicoterapia (individual ou de casal) deve ser considerada.

segunda-feira, agosto 03, 2015

Como Apaziguar uma Zanga de Casal (I)



Projeção mútua de ansiedade e falha da contenção
Todos nós já vivemos ou presenciámos em algum momento das nossas vidas episódios em que a dado momento duas pessoas numa relação de casal não só deixam de se entender como parecem enveredar num "jogo" de acusações lesivas de parte a parte. Estes momentos são muitas vezes intensos, difíceis de quebrar, pouco propensos a serem encontradas soluções e resoluções satisfatórias, e tendem muitas vezes a caracterizar-se por um gradual escalar de intensidade.

Em termos "psicoanatómicos" (funcionamento psíquico subjacente aos conteúdos verbalizados durante a discussão) há um estado intenso de ansiedade que a própria pessoa não está a ser capaz de conter dentro dela e de transformar sozinha. Ou seja, o aparelho psíquico naquele momento (ou em relação a determinado assunto) está fragilizado e não está a ser capaz de tolerar a ansiedade, de pensar ponderadamente e de criar um discurso assertivo. O resultado é a expulsão (dissociação interna e projeção) da ansiedade para cima da outra pessoa, sob forma de acusações, responsabilizações críticas, culpabilizações ou outro tipo de ataques. Quando o outro lado se encontra no mesmo mental, ou este estado mental é induzido via das projeções/ataques contínuos, instala-se então a discussão zangada, em que muito dificilmente se conseguem fazer reparações genuínas e se atingirem resoluções satisfatórias.

Uma das correntes teóricas da psicanálise procura reconstruir o mundo interno do bebé, nomeadamente ao nível da fantasia. Este trabalho foi conseguido com base no trabalho clínico com pacientes muito perturbados (que se diziam e dizem ter um funcionamento mental equiparado ao do bebé de poucos meses) e com crianças muito pequenas. Nesta corrente psicanalítica o bebé concebe inicialmente duas mães (tanto quanto é possível a um bebé perceber a mãe, ou partes da mãe), a mãe boa, que gratifica, onde é projetado tudo de bom que o bebé tem, e a mãe má, que privava cruelmente de cuidados, na qual é projetada sobretudo a agressividade do bebé. Uma é amada e procurada, a outra é temida e odiada. Mais tarde o bebé amadurece psicofisiologicamente e percebe que ambas são uma e a mesma pessoa. Passa a recear ter destruído a mãe boa mediante ataques (na fantasia) outrora contra a parte má. Surge uma culpabilidade aflitiva, um medo de ter destruído a mãe de que tanto precisa e uma tendência à reparação. Nos primeiros meses o bebé oscila entre movimentos de clivagem e de integração da representação interna da mãe. Diríamos, entre por um lado, um sentimento de vitimização e ataque ao agressor, e, por outro lado, uma culpa por ter danificado a figura principal de vinculação, que se faz acompanhar por esforços de reparação (reais ou na fantasia).
Enquanto nota, tudo o que projetamos (dissociamos de nós mesmos e expulsamos para o exterior) adquire um efeito persecutório contra nós - as angústias persecutórias. Como se o movimento de expulsão psicológica (da ilusão da expulsão, pois o aparelho psíquico cria apenas a ilusão da expulsão, e por vezes uma ilusão realmente poderosa) imbuísse os conteúdos expulsos de uma espécie de intencionalidade de retorno vingativo sobre nós mesmos pelo facto de os termos tentado atirar para fora de nós. Aquilo que alguns de nós sentimos por vezes quando de noite, ao tentar adormecer, sentimos "presenças" persecutórias perto de nós ou na nossa casa. Tratam-se de conteúdos e ansiedades muito difíceis que não conseguimos integrar ou pensar, que procuramos expulsar para fora de nós.

De qualquer dos modos, no trabalho com os nossos pacientes e nas relações de casal, nomeadamente nos momentos mais intensos dos conflitos e discussões, vamos observando estas mesmas oscilações. Ainda que enquanto adultos o ideal se prenda com sentirmo-nos culpados quando cometemos alguma transgressão contra aqueles que amamos e procuremos fazer reparações, por vezes acabamos por estar debaixo de tal carga de stress que resvalamos temporariamente para um estado mental em que acabamos por perceber aqueles mais próximos de nós enquanto perpetradores cruéis (coloridos muitas vezes pela própria projeção da nossa agressividade) que são posteriormente alvos dos nossos ataques mais cruéis (a nossa agressividade), isentos de remorso.

Eis alguns quadros psicológicos ligados com a propensão à perda de contacto com a benevolência da outra pessoa, com a realidade de quem ela é (e também com o nosso sentido de responsabilidade adulta perante as nossas atitudes e ações):

- Fragilidade da estrutura de personalidade, forte vulnerabilidade à frustração e às separações; Relações de amor/ódio (próprio da patologia borderline)
- Relações passadas traumáticas transferidas inconscientemente para o companheiro em certas situações ou quando debaixo de stress (por ex. figuras rejeitantes e desconsiderativas)
- Atribuição ao companheiro de aspetos intolerados da própria personalidade (por ex. impulso à infidelidade; a agressividade)
- Situações pontuais de grande stress que provocam clivagens temporárias na nossa representação interna da outra pessoa

Existem outras situações também importantes, mas que se afastam do âmbito desta exposição, nomeadamente quando um companheiro tem uma personalidade expulsiva (sem muita capacidade para a tolerância à ansiedade e para a responsabilização) e o outro apresenta uma personalidade que tende a receber essas ansiedades projetadas e a interioriza-las (culpabiliza-se), desculpando a primeira. Não existe uma verdadeira comunicação de casal, mas antes uma dinâmica de imposição-submissão (ou autoanulação), ou sadomasoquista, onde os conflitos são persistentes e o amor, o entendimento e a cumplicidade não têm espaço para desabrochar.

Na segunda parte deste artigo abordaremos alguns sinais internos de entrada em estados emocionais/mentais de propensão ao conflito destrutivo e o que nunca fazer durante uma zanga de casal.