Li um artigo no website do JN que divulga um inquérito no qual 91% dos portugueses que procuram amantes através do website Ashley Madison - uma famosa rede social e serviço online de encontros amorosos/sexuais para quem já se encontra numa relação - não têm qualquer sentimento de culpa depois de terem um relacionamento extraconjugal. O slogan deste serviço/rede social é "A vida é curta. Tenha um caso.".
Já no Sapo Lifestyle e sobre o mesmo inquérito, a frase que destaco é a seguinte: "Os efeitos negativos que, segundo alguns investigadores, a traição provoca na saúde física e emocional, parecem não afetar os portugueses.".
Todas as pessoas são livres de fazer inquéritos para os mais diversos fins, e de difundir essas informações livremente. Contúdo, penso que este inquérito e nomeadamente os artigos publicados sobre o mesmo deixam patentes interpretações leigas, pouco precisas e pouco realistas do ponto de vista da psicologia humana e das relações.
Fico honestamente sem perceber como é que a partir da realidade de 91% de indivíduos (dentro de uma amostra de 3000) que num questionário afirmam não "sofrer" de culpabilidade, se chega à conclusão de que efetivamente não existe dentro destas pessoas qualquer sinal de culpabilidade, quer por via do reconhecimento consciente, quer por via inconsciente (a culpa inconsciente é bastante frequente), quer por via da defesa ou do sintoma, quer por via do conflito ou instabilidade nas relações, ou por outra via.
Em termos comerciais e em linha com o slogan da empresa, percebo a utilidade da realização e difusão deste inquérito (em detrimento de um estudo independente), colorido por uma interpretação (incorreta a meu ver) que dá a entender que a esmagadora maioria dos portugueses que procura e têm amantes não se atormenta por isso. No entanto desconhecem-se toda uma série de elementos fundamentais em torno deste inquérito: por quem foi concebido, sobre que princípios fundamentais da psicologia humana e das relações foi construido, qual a sua validade e fiabilidade, e qual o rigor na sua aplicação e avaliação. Também, quais foram os critérios de seleção da amostra dos 3000 inquiridos, quais (se algum) dos inquéritos foram excluídos destas estatísticas e porquê.
Não é possível afirmar a verdade que estes artigos apregoam sem se levar a cabo uma avaliação concreta de certos aspetos da psicologia individual de cada um destes inquiridos, quer por via da entrevista ou por questionários/instrumentos científicos rigorosos. Qual a capacidade de cada um destes inquiridos de tolerar internamente o sentimento de culpa (e outros sentimentos), capacidade precursora da possibilidade de identificar a culpa per se? ; Qual a capacidade de nomear e compreender internamente a experiência da culpa?; Que mecanismos de defesa surgem contra a experiência interna da culpa, que leva a própria pessoa tão frequentemente a não reconhecer tal sentimento, a racionaliza-lo defensivamente, a nega-lo afincadamente - e mesmo a reivindicar e justificar o direito de lesar ou ir contra os valores dos outros -, a projeta-lo delirantemente, a agredir o outro injustificadamente, ou a trai-lo indevidamente?; Como é que a culpabilidade foi tratada no contexto das relações familiares na história desssa pessoa?; Como foi o desenvolvimento do narcisismo e o amadurecimento da capacidade de amar da pessoa ao longo da sua história?; Como eram os seus pais quando ela era apenas uma criança pequena, que vestígios dessas relações ficaram gravados dentro dela e que identificações fez aos vários traços de personalidade, atitudes e comportamentos desses pais?; etc..
É preocupante que para temas tão sensíveis e ao nível da divulgação pelos órgãos de comunicação social não se procure (e se exponha ao público) a opinião concreta dos especialistas que se dedicam ao trabalho clínico, estudo e investigação permanente da constituição e funcionamento dinâmico do aparelho psíquico, da personalidade e das relações humanas!
Tenho de facto reservas sobre a interpretação e mensagem que é construida nestes artigos e sobre o que tal implica também em termos da forma como concebemos os casamentos e as relações amorosas enquanto unidade integrante e fundamental da nossa estrutura social. Esta unidade (a unidade casal) é alicerce fundamental do desenvolvimento psicológico dos nossos filhos. A natureza e complexidades da relação de casal afeta-os diretamente e é por eles assimilada logo quando são muito pequenos, com consequências concretas para as próprias relações de casal que eles irão mais tarde formar com os respetivos companheiros e companheiras.
No nosso dia a dia sabemos bem o que a infidelidade e a culpa fazem a uma pessoa e a uma relação ao longo do tempo. Inúmeros são os casais que procuram terapia de casal para ultrapassar situações de infidelidade. Isto não invalida que de facto existam casos em que por motivos específicos não há culpabilidade (e talvez nem mesmo amor ou vínculo). Outras vezes são relações "abertas", mas aí já não podemos falar em infidelidade pois parte-se do principio que ter outras relações faz parte da própria relação. A indicação nos artigos de que ainda assim existe o medo de se ser apanhado pode de facto ser também indicador de algo relacionado com culpa, vergonha ou medo de perder algo importante (comodidades, dinheiro, estilo de vida, etc.). No próximo artigo desenvolverei um pouco mais sobre culpa e infidelidade.
Atualmente são cerca de cem mil os portugueses inscritos na rede Ashley Madison (nem todos em relações). Ficam os links para os artigos originais:
http://www.jn.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.aspx?content_id=4350191&page=1
http://lifestyle.sapo.pt/amor-e-sexo/relacoes/artigos/traicao-nao-gera-sentimentos-de-culpa-nos-portugueses
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