sexta-feira, janeiro 30, 2015

Trair sem Culpa? (II) - A Culpa que Fortalece o Casal


O sentimento de culpa e a capacidade para tolerar a culpa são marcos desenvolvimentais cruciais para o desenvolvimento das relações. Não são inconvenientes cuja falta nas relações (quando se trata de uma resposta adequada e ajustada a um dado contexto) por vezes parece surgir como motivo de orgulho ligado a uma percebida vantagem ou independência emocional. São em grande medida negações e intelectualizações defensivas contra por exemplo, uma dificuldade de tolerar e reconhecer o sentimento.

A culpa aparece logo no inicio de vida. Com o amadurecimento fisiológico do sistema nervoso, um bebé que no início de vida percebe uma mãe boa (que gratifica e protege) e uma outra mãe má (que priva e detém os preciosos recursos de que o bebé precisa) vai percebendo que mãe boa e mãe má são uma só. Percebe que o bom e o mau estão numa mesma pessoa, e fica então com muito medo que toda a zanga sobre a figura má tenha acabado por destruir também a figura boa! Surge aqui pela primeira vez a culpa - o medo de se ter destruído a figura amada e necessária. É uma culpa primitiva e intensa, mas atenuada ou regulada mediante um bom desenvolvimento do bebé - tradicionalmente pela presença de uma mãe disponível, atenta, tranquila, que não castiga ou o priva o bebé da sua presença por períodos de tempo que ultrapassam a pouca capacidade do bebé para tolerar as ausências da mãe. É uma culpa regulada ainda, e mais tarde no desenvolvimento, por uma figura paterna presente e envolvida - que não funcione ou se confunda como uma segunda mãe que maioritariamente repete as ordens da mãe e reivindica as atitudes da mesma. A culpa amadurece, tornando-se menos intensa, mais tolerável e logo, mais adaptativa.

A empatia (percebermos que tal como nós os outros também têm partes boas e sentimentos bons) liga-se bastante à capacidade de sentir culpa, que é a base psicológica humana para a reparação nas relações. Por exemplo, conseguirmos reconhecer que alguma atitude, ação ou comportamento que adotámos acabou por magoar o outro. Isto leva-nos a adotar uma atitude de reparação que garante a continuidade e o crescimento da relação. Não ficam mágoas acumuladas, mas sim um clima de entendimento e reajuste na relação que lhe imprime a possibilidade de mudança e crescimento. A tolerância à culpa - ou capacidade indivídual de reconciliação com a responsabilidade dos danos causados ao outro), sem nos defendermos desadequadamente dela, oferece o potencial para o crescimento e amadurecimento das relações.

A culpa é uma angústia derivada do sentimento de responsabilidade por danos cometidos contra alguém, um alguém que também é percebido realisticamente como igual nós mesmos, benevolente, que têm (ou apesar de tudo também têm) partes boas. Nas relações íntimas a culpabilidade implica o medo (mais ou menos intenso) de se perder o amor da pessoa amada. Tanto a consideração pelo outro, como o medo de se perder o apreço desse outro levam à reparação, desde que a culpa seja tolerada.

É um marco desenvolvimental pois implica que o bebé (e mais tarde o adulto) consiga manter dentro de si uma imagem integrada daqueles à sua volta ("outros também  são iguais a mim, têm partes boas, como eu"). Não se perde o contacto interno com a benevolência ou partes boas dos outros, ou seja, internamente a representação que criámos e detemos dos outros permanece integrada, mesmo quando se está debaixo de stress ou frustração moderada. É o bom e o menos bom do outro em simultâneo, sempre presente dentro de nós. O contrário são estados de perceção distorcida dos outros enquanto pessoas idealizadas ou irremediávelmente odiadas. Nesses estados de rotura ou fragilidade psicológica os outros passam a ser vistos como "todos bons", como figuras descritas e sentidas como quase perfeitas, que por vezes pouca semelhança têm com seres humanos. Ou então "todos maus", outros sentidos como profunda e irremediávelmente odiados. Por vezes a mesma pessoa oscila entre ser percebida como toda boa e toda má. É a intolerância à ambivalência, à presença interna simultânea do bom e do mau do outro. É fundamentalmente a psicologia das relações amor/ódio.

A tolerância à ambivalência permite que o bom e o mau dos outros sejam ponderados em simultâneo. Bom e mau nunca se tornam absolutos. Não há salvadores e demónios, mas pessoas reais, que fazem o melhor que conseguem dentro daquilo que foram as suas histórias de vida e dentro das suas limitações. O mau (na presença e permanência interna do bom) não leva ao ódio, mas à zanga temporária, à tristeza, à desilusão e ao abatimento, porque existe sempre um bom que não desaparece, e ligado a esse bom, os nossos sentimentos de amor, carinho e ternura. Por sua vez o bom (na presença e permanência interna do menos bom) não leva mais à idealização e à entrega absoluta e quase incondicional, mas à consideração realista do outro, à prudência e ponderação, porque existe sempre um menos bom presente - e ligado a isso, a apreciação realista de que as relações têm momentos menos bons ou mesmo verdadeiramente maus. E isto é válido desde que estejamos a falar e a tratar de seres humanos, e não de figuras míticas.

Quanto maior a preponderância de bom sobre mau, melhor a qualidade da relação. Todavia mesmo que o bom seja de facto muito bom e o menos bom pouco relevante, por vezes, podemos dar connosco a desejar outros tipos de "bom", nomeadamente outras relações tanto ou mais gratificantes, mas essencialmente relações diferentes.

Esta tolerância à ambivalência (sentimentos bons e maus em simultâneo e a culpabildiade a que dá acesso, por exemplo) é absolutamente fundamental para a capacidade de amarmos de forma madura. Nas relações permite que os conflitos sejam resolvidos a bem, porque dentro de nós o bom do outro permanece dentro de nós em cada conflito, isto é, permanece uma lembrança emocional (bem diferente da recordação pela memória intelectual e muito mais profunda) sobre o amor que o outro sente por nós, as coisas boas que o outro nos foi dando e que com ele fomos vivendo ao longo do tempo, bem como o amor que sentimos de volta. Esse contacto permanente com o bom do outro quando existe de parte a parte é a base da estabilidade de uma relação, pois é como que uma aliança que permite de parte a parte tolerar os momentos menos bons de uma relação. Permite assumir responsabilidades, pedir desculpa e fazer reparações junto do outro. Permite manter a calma durante os conflitos, resolve-los ponderadamente, e levar a relação a um amadurecimento.

Numa psicoterapia psicanalítica, por exemplo, toda esta intimidade psicológica (as emoções e a organização, estrutura e funcionamento da mente/personalidade individual) é trabalhada (reabilitada ou fortalecida) exaustivamente e em profundidade a partir da relação terapêutica transformadora. Ainda que, lógicamente, não seja um trabalho rápido, pois o que está em causa é a reestruturação em profundidade da própria personalidade. E nesse campo não há atalhos, palavras mágicas ou curas milagrosas.

No próximo artigo continuaremos a desenvolver este tema.

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