O sentimento de culpa e a capacidade para tolerar a culpa são marcos
desenvolvimentais cruciais para o desenvolvimento das relações. Não são
inconvenientes cuja falta nas relações (quando se trata de uma resposta
adequada e ajustada a um dado contexto) por vezes parece surgir como motivo de
orgulho ligado a uma percebida vantagem ou independência emocional. São
em grande medida negações e intelectualizações defensivas contra por
exemplo, uma dificuldade de tolerar e reconhecer o sentimento.
A
culpa aparece logo no inicio de vida. Com o amadurecimento fisiológico
do sistema nervoso, um bebé que no início de vida percebe uma mãe boa
(que gratifica e protege) e uma outra mãe má (que priva e detém os preciosos
recursos de que o bebé precisa) vai
percebendo que mãe boa e mãe má são uma só. Percebe que o bom e o mau
estão numa mesma pessoa, e fica então com muito medo que toda a zanga sobre a
figura má tenha acabado por destruir também a figura boa! Surge aqui
pela primeira vez a culpa - o medo de se ter destruído a figura amada e
necessária. É uma culpa primitiva e intensa, mas atenuada ou regulada mediante um bom
desenvolvimento do bebé - tradicionalmente pela presença de uma mãe
disponível, atenta, tranquila, que não castiga ou o priva o bebé da sua
presença por períodos de tempo que ultrapassam a pouca capacidade do bebé para tolerar as ausências da mãe. É uma culpa regulada ainda, e mais tarde no desenvolvimento, por uma figura
paterna presente e envolvida - que não funcione ou se confunda como uma
segunda mãe que maioritariamente repete as ordens da mãe e reivindica as
atitudes da mesma. A culpa amadurece, tornando-se menos intensa, mais
tolerável e logo, mais adaptativa.
A empatia (percebermos que tal como nós os outros
também têm partes boas e sentimentos bons) liga-se bastante à capacidade de sentir culpa, que é a base psicológica
humana para a reparação nas relações. Por exemplo,
conseguirmos reconhecer que alguma atitude, ação ou comportamento que adotámos acabou por magoar o outro. Isto leva-nos a adotar
uma atitude de reparação que garante a continuidade e o crescimento da
relação. Não ficam mágoas acumuladas, mas sim um clima de entendimento e reajuste
na relação que lhe imprime a possibilidade de mudança e crescimento. A tolerância à culpa - ou capacidade indivídual de reconciliação com a
responsabilidade dos danos causados ao outro), sem nos defendermos desadequadamente dela, oferece o potencial para o crescimento e amadurecimento das relações.
A culpa é uma angústia derivada do sentimento de responsabilidade por danos cometidos contra alguém, um alguém
que também é percebido realisticamente como igual nós mesmos, benevolente, que têm (ou apesar de tudo também têm) partes boas. Nas
relações íntimas a culpabilidade implica o medo (mais ou menos intenso) de se perder o
amor da pessoa amada. Tanto a consideração pelo outro, como o medo de
se perder o apreço desse outro levam à reparação, desde que a culpa seja
tolerada.
É um marco desenvolvimental pois implica que o bebé (e
mais tarde o adulto) consiga manter dentro de si uma imagem integrada
daqueles à sua volta ("outros também são
iguais a mim, têm partes boas, como eu"). Não se perde o contacto
interno com a benevolência ou partes boas dos outros, ou seja, internamente a representação que criámos e detemos dos outros permanece integrada, mesmo quando se está
debaixo de stress ou frustração moderada. É o bom e o menos bom do outro em simultâneo, sempre presente dentro de nós. O contrário são estados de perceção distorcida dos outros enquanto pessoas idealizadas ou irremediávelmente odiadas. Nesses estados de rotura ou fragilidade psicológica os outros passam a ser vistos como "todos bons", como figuras descritas e sentidas como quase perfeitas, que por vezes pouca semelhança têm com seres humanos. Ou então "todos maus", outros sentidos como profunda e irremediávelmente odiados. Por vezes a mesma pessoa oscila entre ser percebida como toda boa e toda má. É a intolerância à ambivalência, à presença interna simultânea do bom e do mau do outro. É fundamentalmente a psicologia das relações amor/ódio.
A tolerância à ambivalência permite que o bom e o mau dos outros sejam ponderados em simultâneo. Bom e mau nunca se tornam absolutos. Não há salvadores e demónios, mas pessoas reais, que fazem o melhor que conseguem dentro daquilo que foram as suas histórias de vida e dentro das suas limitações. O mau (na presença e permanência interna do bom) não leva ao ódio, mas à zanga temporária, à tristeza, à desilusão e ao abatimento, porque existe sempre um bom que não desaparece, e ligado a esse bom, os nossos sentimentos de amor, carinho e ternura. Por sua vez o bom (na presença e permanência interna do menos bom) não leva mais à idealização e à entrega absoluta e quase incondicional, mas à consideração realista do outro, à prudência e ponderação, porque existe sempre um menos bom presente - e ligado a isso, a apreciação realista de que as relações têm momentos menos bons ou mesmo verdadeiramente maus. E isto é válido desde que estejamos a falar e a tratar de seres humanos, e não de figuras míticas.
Quanto maior a preponderância de bom sobre mau, melhor a qualidade da relação. Todavia mesmo que o bom seja de facto muito bom e o menos bom pouco relevante, por vezes, podemos dar connosco a desejar outros tipos de "bom", nomeadamente outras relações tanto ou mais gratificantes, mas essencialmente relações diferentes.
Esta tolerância à ambivalência (sentimentos bons e maus em simultâneo e a culpabildiade a que dá acesso, por exemplo) é absolutamente fundamental para a capacidade de amarmos de forma madura. Nas relações permite que os conflitos sejam resolvidos a bem, porque dentro de nós o bom do outro permanece dentro de nós em cada conflito, isto é, permanece uma lembrança emocional (bem diferente da recordação pela memória intelectual e muito mais profunda) sobre o amor que o outro sente por nós, as coisas boas que o outro nos foi dando e que com ele fomos vivendo ao longo do tempo, bem como o amor que sentimos de volta. Esse contacto permanente com o bom do outro quando existe de parte a parte é a base da estabilidade de uma relação, pois é como que uma aliança que permite de parte a parte tolerar os momentos menos bons de uma relação. Permite assumir responsabilidades, pedir desculpa e fazer reparações junto do outro. Permite manter a calma durante os conflitos, resolve-los ponderadamente, e levar a relação a um amadurecimento.
Numa psicoterapia psicanalítica, por exemplo, toda esta intimidade psicológica (as emoções e a organização, estrutura e funcionamento da mente/personalidade individual) é trabalhada (reabilitada ou fortalecida) exaustivamente e em profundidade a partir da relação terapêutica transformadora. Ainda que, lógicamente, não seja um trabalho rápido, pois o que está em causa é a reestruturação em profundidade da própria personalidade. E nesse campo não há atalhos, palavras mágicas ou curas milagrosas.
No próximo artigo continuaremos a desenvolver este tema.
A tolerância à ambivalência permite que o bom e o mau dos outros sejam ponderados em simultâneo. Bom e mau nunca se tornam absolutos. Não há salvadores e demónios, mas pessoas reais, que fazem o melhor que conseguem dentro daquilo que foram as suas histórias de vida e dentro das suas limitações. O mau (na presença e permanência interna do bom) não leva ao ódio, mas à zanga temporária, à tristeza, à desilusão e ao abatimento, porque existe sempre um bom que não desaparece, e ligado a esse bom, os nossos sentimentos de amor, carinho e ternura. Por sua vez o bom (na presença e permanência interna do menos bom) não leva mais à idealização e à entrega absoluta e quase incondicional, mas à consideração realista do outro, à prudência e ponderação, porque existe sempre um menos bom presente - e ligado a isso, a apreciação realista de que as relações têm momentos menos bons ou mesmo verdadeiramente maus. E isto é válido desde que estejamos a falar e a tratar de seres humanos, e não de figuras míticas.
Quanto maior a preponderância de bom sobre mau, melhor a qualidade da relação. Todavia mesmo que o bom seja de facto muito bom e o menos bom pouco relevante, por vezes, podemos dar connosco a desejar outros tipos de "bom", nomeadamente outras relações tanto ou mais gratificantes, mas essencialmente relações diferentes.
Esta tolerância à ambivalência (sentimentos bons e maus em simultâneo e a culpabildiade a que dá acesso, por exemplo) é absolutamente fundamental para a capacidade de amarmos de forma madura. Nas relações permite que os conflitos sejam resolvidos a bem, porque dentro de nós o bom do outro permanece dentro de nós em cada conflito, isto é, permanece uma lembrança emocional (bem diferente da recordação pela memória intelectual e muito mais profunda) sobre o amor que o outro sente por nós, as coisas boas que o outro nos foi dando e que com ele fomos vivendo ao longo do tempo, bem como o amor que sentimos de volta. Esse contacto permanente com o bom do outro quando existe de parte a parte é a base da estabilidade de uma relação, pois é como que uma aliança que permite de parte a parte tolerar os momentos menos bons de uma relação. Permite assumir responsabilidades, pedir desculpa e fazer reparações junto do outro. Permite manter a calma durante os conflitos, resolve-los ponderadamente, e levar a relação a um amadurecimento.
Numa psicoterapia psicanalítica, por exemplo, toda esta intimidade psicológica (as emoções e a organização, estrutura e funcionamento da mente/personalidade individual) é trabalhada (reabilitada ou fortalecida) exaustivamente e em profundidade a partir da relação terapêutica transformadora. Ainda que, lógicamente, não seja um trabalho rápido, pois o que está em causa é a reestruturação em profundidade da própria personalidade. E nesse campo não há atalhos, palavras mágicas ou curas milagrosas.
No próximo artigo continuaremos a desenvolver este tema.
Sem comentários:
Enviar um comentário