Este artigo prende-se com uma reflexão clínica, psicanalítica, sobre a psicopatia, a perda do teste da realidade que habitualmente acompanha os quadros psicóticos, e pontos de interseção entre ambas as realidades clínicas.
O teste da realidade é tradicionalmente um indicador da presença de
aspetos ligados ao funcionamento psicótico da personalidade. Contudo,
mesmo um indivíduo com organização neurótica de personalidade (com um self
coeso e bem adaptado à realidade, por exemplo) pode, sob condições de stress invulgar,
resvalar, ainda que temporariamente, para um funcionamento mais do âmbito da
psicose, cingido provavelmente a um contexto específico, e falhar o teste da realidade nesse contexto ou ligado a essa situação (por exemplo, situações traumáticas). Uma personalidade neurótica não está
imune de conter núcleos psicóticos, e tal tende a ser muitas vezes onde se
encontra a raiz do maior sofrimento e das maiores incapacidades na vida de uma pessoa.
Falamos aqui sobretudo em organização de personalidade – psicossomática,
psicótica, borderline, neurótica e normal. A psicopatia está mais ligada à estrutura da personalidade (depressiva, narcísica, psicopata,
etc.), ainda que se possa pensar em articulação com a organização de
personalidade.
Alguns autores inclusive removem a categoria da psicose e chamam-lhe
esquizofrenia borderline (ver o PDM - Psychodynamic Diagnostic Manual), referindo-se a perturbações graves do teste
da realidade, por exemplo.
O teste da realidade também está relacionado com o quão compensado está
ou não determinado indivíduo. Alguém que sofra de uma patologia mental
relativamente grave pode não apresentar falhas no teste da realidade, desde que
se encontre em estado compensado. Contudo o equilíbrio psicológico será frágil, a
vulnerabilidade ao stress será maior e a propensão à descompensação e à perda
do contacto com a realidade (por exemplo, a criação de uma realidade interna, fantasiada,
mais tolerável e menos ameaçadora, ainda que diferente e incompatível com a
realidade externa) é grande.
Quanto maior a predominância, numa dada personalidade, de uma parte psicótica, maior
a probabilidade de perda do teste da realidade aquando do stress. Outras vezes
essa perda do teste da realidade está ligada a situações/conflitos específicos, aos tais núcleos mais frágeis/traumatizados/psicóticos da personalidade.
Sobre a psicopatia e o teste da realidade
A maioria de nós têm traços de uma ou outra perturbação de
personalidade (entidades clínicas nosologicamente definidas). Alguns autores
consideram que a estrutura psicopata pertence ao âmbito da organização
psicótica da personalidade.
Todavia é possível que traços psicopatas existam noutros níveis superiores
de organização da personalidade, pelo que nesses casos não falaríamos de
psicopatia, mas de tendências psicopatas em quadros de maior salvaguarda do
teste da realidade.
Portanto, tanto pessoas com quadros psicopatas como pessoas com quadros
psicóticos podem manter o teste da realidade, desde que compensadas. Ou pelo
menos manter o teste da realidade na maioria das áreas do funcionamento
profissional, interpessoal e das tarefas do quotidiano.
Relação entre psicose e a psicopatia
Se considerarmos o exemplo de patologia psicótica pura e da patologia
psicopata pura, então provávelmente estamos a falar de problemas diferentes,
ainda que se possam relacionar entre si ou sobrepor em alguns aspetos. Na
psicose predominam, por exemplo, os mecanismos da clivagem do self e projeção de partes do self
para fora do self, para o mundo exterior e para outros exteriores (mas também para dentro do próprio self, como são o caso dos delírios de ruína e hipocondria). Um outro marco da psicose são as transferências psicóticas
(transferem-se partes do self e do mundo interno do self para outras pessoas,
sem qualquer sentido de juízo crítico sobre a veracidade das imagens distorcidas dos
outros criadas pelo efeito da projeção). Isto pressupões que no interior da
pessoa psicótica exista algo de bom, que o aparelho psíquico tenta a todo o
custo salvar no intuito da sobrevivência psicológica. Na psicose, o ódio (a
agressividade destrutiva) predomina sobre a líbido (o amor), conflito fundamental que da
azo aos processos psicóticos, de acordo com algumas perspetivas psicodinâmicas. Essa luta é tal forma feroz que o próprio
self se pode mesmo fragmentar - medo de enloquecer - no sentido de salvar a (escassa) benevolência interna ameaçada.
Já na psicopatia (pura), que implica a deterioração grave ou ausência dessa
benevolência interior de modo a garantir a sobrevivência psicológica, dá-se a total
identificação com o mau (a agressividade, o ódio). Não há processos psicóticos
de clivagem e projeção, pois estes apenas existem para a preservação das partes
boas da personalidade. Não há transferência psicótica, mas sim transferência
psicopata, anterior (mais primitiva) à transferência psicótica. A
transferência psicopata prende-se com a manipulação da outra pessoa (ou pior),
no sentido deliberado de prejudica-la ou levar a melhor sobre ela, com completa
ausência de remorso. Há a preservação do teste da realidade – o psicopata está
particularmente bem sintonizado com o funcionamento prático da realidade,
interessam-lhe os fins práticos de conseguir poder, no geral ou sobre os
outros, e a fuga à responsabilidade.
No psicopata não há bússola moral ou empatia, estes são aspetos
marcantes da realidade das relações humanas que os psicopatas não conseguem processar.
Se incluirmos estes conceitos no âmbito de “teste da realidade” (ainda que o
teste da realidade se refira mais a fenómenos de delírios, alucinações,
pensamento mágico, crenças bizarras e ideias de referência) então os psicopatas
falham nesse teste, ainda que se mantenham particularmente astutos para a
componente prática do funcionamento da realidade. Os três traços psicopatas de
uma forma geral são a manipulação, a mentira e os fins egoístas, e também a incapacidade para a honestidade, a não ser que essa honestidade se ligue de alguma forma
a algum destes fins ou à necessidade de manutenção de um sentido de omnipotência, de manipulação ou obtenção de poder, mas tal é pouco provável.
Por sua vez podemos considerar a convicção do psicopata de que pode
fazer com que tudo aconteça, uma convicção próxima da perda do contacto com a realidade, no
sentido de uma imagem omnipotente e logo, psicótica, de si mesmo, se bem que o
psicopata não se fica pela convicção, mas busca ativamente o poder. Sabe-se até que
a busca pelo poder é um traço de deterioração grave de personalidade e o
psicopata procura-o ativamente, quer o poder sobre os outros, ou outro tipo ou
forma de poder. Daí que na verdade, e muitas vezes, o poder que os psicopatas
detêm é real e dá sustento a uma imagem omnipotente, toda poderosa, de si mesmos.
Para um psicopata não há pior que ser diminuído ou de alguma forma ser atacado
na sua convicção de omnipotência. Em contexto forense, uma das técnicas para
levar um psicopata a confessar um crime é precisamente confronta-lo com
descrença sobre a sua capacidade para elaborar e levar a cabo o dito crime.
Muitas vezes o psicopata acaba por confessar por uma questão de orgulho, ou
necessidade de proteção desse eu mais omnipotente (aqui sim, um delíro de grandiosidade, uma perda do teste da realidade relacionada com a imagem de si mesmo, algumas vezes dificil de perceber pois está misturada com poder real). Na política, por exemplo,
alguém com tendências psicopatas poderá por exemplo ser sentido enquanto alguém
que projeta força e confiança, no entanto esses aspetos tendem a ser
acompanhados por frieza, ausência de remorso e ausência de vulnerabilidades, que suscita nas outras pessoas por vezes um sentimento de se estar na presença de alguém como que
todo-poderoso. Os psicopatas são também muito frequentemente encontrados em
altos cargos nas chefias de algumas empresas, como nas grandes empresas e
grupos financeiros. Estes são os psicopatas passivos, menos agressivos, mas
muitas vezes muito mais destrutivos.
Psicopatas mais inteligentes (mais adaptados socialmente) podem
efetivamente conseguir altos cargos no poder, a todos os níveis. Neste caso não
só mantêm o teste da realidade (pelos menos na área profissional, por exemplo)
como podem mesmo ser bastante bem sucedidos.
Em psicoterapia um ganho terapêutico no trabalho com perturbações
psicopatas acontece por exemplo quando estas pessoas se tornam um pouco mais psicóticas, ou seja, quando conseguem começar a desconfiar do terapeuta –
passam de uma transferência psicopata para uma transferência psicótica
paranoide. Tal já denota a existência de algo de bom dentro da pessoa, que para ser preservado, leva com que a pessoa expulse (projete) as partes más.
Mais grave que a psicopatia é ainda a perturbação sádica da
personalidade, onde a experiência subjetiva da pessoa é a de morte interna e
subsequente necessidade de dominar, controlar absolutamente, atormentar e
destruir os outros. Não existem até à data psicoterapias de sucesso com
pacientes com perturbações sádicas de personalidade. Todas as psicoterapias
conduzidas a estes pacientes são conduzidas já em contexto prisional.
Em suma, a psicopatia ou aspetos da psicologia psicopata podem ser pensados como patologia isolada e em
estado puro (raramente assim surge em consultório), como podem surgir, em
maior ou menor grau, misturados com sintomatologia psicótica, borderline ou até com níveis de funcionameto mental mais evoluídos.