terça-feira, abril 22, 2014

Vergonha, Medo da Crítica e Julgar os Demais


Ao passo que o sentimento de culpa implica um sentimento de transgressão (física, emocional, moral,

A vulnerabilidade acentuada à vergonha e o medo persistente da exposição ou da denúncia pública são vivências emocionais sintomáticas. Estes sentimentos são muitas vezes indicadores de falhas ou de insuficiências, na história individual, de relações empáticas, ricas em profundidade emocional, genuínas, nas quais a própria pessoa se tenha sentido com frequência  verdadeiramente compreendida na sua natural complexidade e contradição emocional, moral e comportamental. Esta experiência relacional com uma figuras preocupadas, envolvidas e compreensivas, permite, por via da confiança e da identificação, a aquisição interna gradual da capacidade e da propensão para a autocompreensão em profundidade, bem como a capacidade de compreensão em profundidade dos outros. Em acréscimo, estas capacidades internas adquiridas por via das boas relações, são a via privilegiada para a serenidade e maturidade psicológica.

A falta da experiência de uma relação que nos devolve compreensão em profundidade relaciona-se com frequência à internalização de cuidadores severos, críticos, que humilham e/ou instigam sentimentos de medo da rejeição por parte do grupo social (amigos, vizinhos, colegas, etc.). Gradualmente isto pode conduzir a um esvaziamento interno e/ou desorganização psicológica, já que a indisponibilidade de uma relação de compreensão em profundidade no início das nossas vidas potencia a intolerância interna a todo um leque de vivências e partes da personalidade que vão então sendo expulsas da consciência por ação de mecanismos de defesa destinados a "evacuar" a angústia/ansiedade ligadas a essas vivências e partes da personalidade. Forma-se um conflito entre, por um lado, uma parte intolerante (crítica, rejeitante, não aceitante e/ou cruel) da personalidade, e, por outro lado, a experiência emocional interna e outras partes da personalidade, que, sendo então sentidas como indignas do amor ou apreço dos demais, são expulsas da consciência, dissociadas e muitas vezes projetadas sobre os demais, sobre a visão do mundo e das relações.

Estes mecanismos de defesa de "evacuação" dos conteúdos mentais tendem a criar problemas adicionais nas nossas vidas pois a sua natureza é frequentemente projetiva. As nossas partes intoleradas são expulsas para o exterior, expulsão algumas vezes acompanhada por ações e atitudes que visam reforçar a ilusão de que o interior intolerável pertence realmente ao exterior (desprezado). A projeção faz-se acompanhar comummente da necessidade adicional da certeza de que há de facto um exterior repudiável (projetado nos demais, ou no mundo), mas que não é, ou faz parte do próprio sujeito e/ou das suas associações. Não sou eu, mas sim tu, quem tem agora as partes de mim que eu não suporto nem consigo enfrentar.”

O resultado são distorções da perceção dos outros e da realidade, lado a lado com um esvaziamento progressivo do Eu, consoante a frequência e intensidade da expulsão de partes do Eu para o exterior. A atitude crítica ou julgamental, e sobretudo a atitude de desprezo denuncia todo este enredo interno. A crítica ou julgamento surge neste contexto como expressão da tentativa de lidar com um conflito interno ligado a vivências internas dificilmente toleráveis.

Num segundo ponto, não são apenas as partes não compreendidas e intoleradas da personalidade que são projetadas sobre os demais, mas também a própria instância interna crítica, severa, cruel e intolerante o pode ser. Desta forma, quando na história pessoal faltam outros significativos capazes de preocupação e sintonia-empática, envolvimento e interesse genuínos, não só surge aqui o terreno fértil para o desenvolvimento da atitude critica, despreziva e intolerante perante o outro (perante partes da própria pessoa projetadas subsequentemente sobre o outro), como se instala o pavor da critica e do julgamento dos demais – a vergonha patológica, intensa e muitas vezes negada e inconsciente. A vergonha consciente já denota um certo grau de tolerância a aspetos menos aceites (ou percebidos como menos aceitáveis) da personalidade, ou seja, denota um grau menos severo e até mesmo normativo de uma apreciação interna de nós mesmos face à diversidade da nossa experiência emocional e  das diferentes partes da nossa personalidade.

Quando nos livrarmos de emoções e partes da personalidade em conflito (com a parte severa e intolerante, tiranizante) tudo isso permanece dissociado e/ou inconsciente. Isto por sua vez faz com que parte da nossa história e quem nós somos permaneça fora da nossa consciência e compreensão. Quanto menor a compreensão em profundidade de nós mesmos e da nossa vida, menos autonomia e liberdade teremos na própria vida, relativamente às escolhas que fazemos.

A projeção de uma instância interna severa, crítica, intolerante e não compreensiva, aliada à pouca tolerância e compreensão de partes importantes da nossa experiência, personalidade e emoções, encontra-se muitas vezes ligada à atitude de mentir, por exemplo nas relações íntimas. Isto porque a outra pessoa é sentida como alguém incapaz de nos poder compreender verdadeiramente, pois sentimos que esses aspetos estão para além da possibilidade de serem aceites e compreendidos (amados).

Ainda que o outro seja sentido como alguém intolerante em relação a algo, que nós sejamos intolerantes com o outro em relação a esse algo, muitas vezes acabamos mesmos por ser indulgentes connosco mesmos na relação com esse algo que fortemente criticamos no outro e que receamos suscitar a crítica do outro. Isto apenas revela a nossa parte intolerante, que nestes momentos é colocada em "standby" face à força desse algo que na maior parte do tempo é repudiável e jamais reconhecido como tendo qualquer associação connosco e com as nossas vidas. Fica claro aqui que "algo" necessita efetivamente poder ser melhor compreendido em nós e sobre nós, para que possa passar a ser tolerado e aceite, em vez de expulso e criticado nos demais.

É uma boa forma de nos conhecermos um pouco melhor, precisamente procurando aqueles aspetos do(s) outro(s) que mais desgostamos e mais facilmente nos metem os cabelos em pé. Fica o desafio.
etc.) em relação a alguém, a vergonha representa o medo de rejeição pelo grupo social. A tolerância, compreensão e capacidade de cuidarmos das nossas partes que porventura (consciente ou inconscientemente) sentimos menos dignas de serem amadas/apreciadas pelos demais está associada à saúde mental. Este é também todo um trabalho que se agrupa no conjunto dos objetivos centrais de uma psicoterapia psicodinâmica.

quinta-feira, abril 17, 2014

O cancro

Os terapeutas que escrevem neste blog não têm por hábito falar da sua vida pessoal. No entanto, vou abrir uma excepção, porque me parece que a experiência que estou a viver poderá ser útil para outras pessoas.

(Foto de células cancerigenas)

 

Foi diagnosticado ao meu marido um cancro raro, mais comuns em homens do que mulheres, e muito agressivo. É o terceiro cancro que tem em seis anos. Dadas as circunstâncias, decidimos recorrer a um centro especializado nesse tipo de cancro, nos Estados Unidos. Mas o que aqui estamos a passar poderia passar-se em qualquer parte do mundo, não é essa a questão que importa. O que importa é a experiência que se vive e como lidar com ela.

Quem está na posição em que me encontro, de acompanhante e suporte, depara-se com uma enorme impotência. Temos de assistir, acompanhar, ajudar, lembrar os remédios, falar com os médicos, marcar consultas, tratar das questões administrativas e logísticas, verificar horários, ir comprar medicamentos e suplementos alimentares. Tudo isto, estando atentos, com boa disposição e animo para puxar pelo outro. Por outro lado, sentimos que pouco podemos fazer em relação à própria doença. Este sentimento de impotência é muito frustrante.

Estamos aqui quase há dois meses e os dias passam-se entre a radiação (diária), a quimioterapia (semanal) e inúmeras consultas e exames. Mas a quimioterapia é uma coisa muito violenta, que mexe com o corpo todo. A rádio, mais localizada, tem tido efeitos secundários mais restritos, embora muito condicionantes no que respeita à ingestão de alimentos.

Que posso eu dizer-vos do que é o dia a dia passado neste ambiente? Como as coisas aqui são organizadas e não há grande acumulação de pacientes, não encontrei aqui aquilo que muitas vezes ouvi descrito por amigos que tiveram experiências semelhantes. Mas sim, vêem-se mulheres com lenços ou chapéus, muito pálidas. Homens curvados, sem força. Não sei se por uma questão cultural, as pessoas aqui queixam-se pouco e parecem apostadas em se mostrarem bem dispostas. Isso deve ajudar, porque o ambiente não é, surpreendentemente, deprimente. Quando calhamos com outras pessoas na sala de espera, verificamos que quase toda a gente está acompanhada, seja por um cônjuge ou companheiro, um filho, uma amiga. O pessoal técnico é aliás extremamente simpático com os acompanhantes, talvez por estarem convencidos da sua importância para a recuperação do doente.

O cancro é uma doença como outra qualquer, grave, sem dúvida, e que tem de ser tratada com conhecimentos científicos avançados, método e determinação. O estigma que durante tanto tempo lhe esteve associado parece estar, felizmente, a desaparecer. Estima-se que a meio deste século a maioria das pessoas tenha pelo menos um cancro, e muitas delas, vários. Imagino que, nessa altura, os tratamentos não tenham os efeitos secundários que ainda hoje têm. No caso da quimio, sobretudo, tenho constatado que provoca grande fadiga e problemas intestinais. As náuseas, de que tanto tinha ouvido falar, previnem-se com anti-eméticos, muito eficazes. A enorme falta de apetite, mesmo aversão à comida, é mais difícil de vencer. Tudo isto é reversível com os fim dos tratamentos, pelo que me dizem.

No meu caso, o que mais me tem custado foi ver uma pessoa que é por natureza voluntariosa, independente e impaciente, ficar mais para o apático e passar a maior parte dos dias na cama, sem forças para nada. Uma pessoa que adorava comer e agora não aguenta o cheiro da comida. Mas, como digo, julgo que estes sintomas desaparecerão dentro de duas semanas.

O pouco tempo que tenho para arejar um pouco, e sempre que posso deixá-lo sozinho por umas horas, tenho aproveitado para ver a cidade e tirar fotografias. Quando chegámos havia imensa neve, agora as árvores estão a rebentar e surgem flores de todas as cores. A natureza aqui é mais contrastada e como os espaços são imensos, tem-se a impressão de uma enorme força à nossa volta. O vento, por exemplo, pode ser fortíssimo. Os nevões, idem. O sol, estranhamente, é quentíssimo, e no tempo em que havia neve (até há três semanas) faziam um contraste lindo, entre o azul e o branco. E há os braços de mar, uma coisa que não temos em Portugal. Aqui o mar penetra pela terra dentro mas muito calmo, porque há uma infinita sucessão de enseadas e baías. Não foi por acaso que este foi dos primeiros locais a ser colonizado pelos Ingleses. Sei que chegaram aqui em Outubro e aportaram com medo do frio. E com razão.

Será que ajudou a esta acompanhante estar num sítio bonito e com boas condições? É provável. E oxalá toda a gente tivesse a minha sorte. Certo é que dei comigo há dias a procurar na internet o nome de umas árvores que vi numa rua. Eu, que não percebo nada de botânica. E nesse mesmo dia, por coincidência, recebi um email em que uma pessoa que tinha conhecido aqui semanas atrás e me recomendava que estivesse atenta aos "daffodils" and "crocuses"! É verdade, as flores estão a rebentar e são lindas! Parece-me que aí em Portugal muitos de nós damos pouca atenção a estes pormenores que alegram a vida. Mesmo nas alturas mais difíceis, temos de estar de olhos bem abertos.

(Foto de crocus)

 

In the shadow of Freud's couch - No gabinete dos analistas

Veja mais fotos e o artigo completo em

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quarta-feira, abril 16, 2014

Provas científicas e validade do EMDR


Muitas pessoas já ouviram falar do EMDR como método ou abordagem integrativa psicoterapêutica que promete resultados, ou pelo menos uma maior eficácia, na ultrapassagem de uma variedade de situações traumáticas. Nestas se incluem as experiências relacionadas com a guerra, as situações de abuso sexual e/ou físico ou de negligência na infância, desastres naturais, assalto ou ataque, traumas cirúrgicos e de diagnóstico de doenças crónicas, acidentes de viação e de trabalho. Dos traumas grandes aos traumas pequenos, ou vice-versa, abrangendo as situações cuja perturbadora vivência deixou na nossa mente/corpo uma espécie de caixa de ressonância (aglomerado de memórias, imagens, emoções e sensações) muito sensível a tudo aquilo que consciente ou inconscientemente toca nos seus gatilhos.

Assim, pode acontecer que uma experiência negativa intensa vivida há muitos anos, por vezes está recalcada e foi esquecida, possa continuar a produzir efeitos que abalam a qualidade de vida e o bem estar de uma pessoa, sem que esta consiga conscientemente produzir uma ligação entre a situação original e a situação desencadeante, que justifique as suas reações - por exemplo, impulsividade exagerada ou intempestividade, perda de auto-controlo, ataque de ansiedade, stress, fuga e medo irracionais. Muito se tem avançado nas últimas décadas no campo das neurociências mas ainda nos é algo difícil compreender como se estabelecem no cérebro estes processos, e como se desencadeiam reações desproporcionadas e desadaptadas  que podem, entre muitos outros efeitos,  limitar a qualidade das interacções com os outros e afectar a auto-estima.

O EMDR, enquadrado e aplicado por psicoterapeutas, não é uma moda, é um tratamento psicológico que apesar da sua recência já possui um corpo teórico e prático bastante consistente e um conjunto de evidências científicas que o validam, reflexo da investigação acumulada, que fazem com que esta abordagem psicoterapêutica seja considerada um tratamento eficaz e internacionalmente recomendado para as perturbações de stress pós-traumático(PSPT).  Um já vasto conjunto de organizações recomendam o EMDR nas suas  orientações práticas de métodos de tratamento para o PSPT, onde se incluem a Organização Mundial de Saúde (2013), a Associação Psiquiátrica Americana (em 2004 e 2010), o Departmento dos Assuntos de Veteranos e pelo Departamento de Defesa dos EUA (em 2010), a Sociedade Internacional de Estudos de Stress Traumático  (em 2009), o National Institute for Clinical Excellence do Reino Unido (em 2005) e outras organizações pelo mundo fora, incluindo a maioria das Associações de Psicólogos e de Psiquiatras.

Com um nome pouco apelativo, a meu ver, o EMDR é todavia uma terapia poderosa que produz resultados surpreendentes e que vale a pena conhecer.

Abaixo seguem os links para uma entrevista dada pela Dr. Francine Shapiro (criadora do EMDR, e fundadora do EMDR INSTITUTE) ao New York Times (2012):



e para um outro artigo (Dr. James Alexander) que documenta a perspectiva neurológica do EMDR:



Isabel Botelho
Psicóloga-Psicoterapeuta-Executive Coach

segunda-feira, abril 14, 2014

Emoções - grandes e pequenas (parte I)

  Este artigo que abaixo partilho remete, de forma clara e simples, para o complexo processo da maternidade e turbilhão de emoções. Em consultório tenho lidado de perto com estas emoções, que ora evocam o que de mais doce e terno existe numa mulher, ora remetem para o seu lado mais "malvado" e "maléfico", desabafou uma mãe.

Mas efetivamente existe uma barreira muito téneu entre o bem e o mal e rapidamente se resvala (quase sem saber porquê...) para o outro lado, e se por vezes algumas mães aprendem a lidar com as suas emoções, outras escondem e reprimem um pequeno fantasma que se torna um monstro imenso.


"Há mamãs loucas. Literalmente tan-tans da cabeça. Calha a quase todas este estado temporário de insanidade e que se lê nos olhos dos maridos, amigos e família. Quando? Logo ali, nos meses após terem dado à luz. Quando dar vida à vida é uma loucura.
Há quem tenha recebido a visita dos Reis Magos para celebrar o nascimento do seu filho. Mas a maioria das mamãs é visitada pelos parentes mais antigos e estimados: os seus fantasmas. De branquinho como manda a tradição, os fantasmas aparecem todos juntos para conhecer o novo bebé. E alucinar a mamã. Começam por apoderar-se do seu corpo que fica aterrador no pós-parto. Depois espicaçam-lhe as hormonas, deixando-a bolsar sentimentos ridículos. Como quando uma pobre mosca entra em casa, feliz da vida, à procura de alimento para as suas mosquinhas; e a mãe, louca e tísica, pum! Mosca esborrachada. Depois, chora como se tivesse assassinado um elefante voador. “Mas quem é que deixou o Dumbo entrar?!”
É um estado de nervoso miudinho intervalado com risadas histéricas. O divertido é que a recém-mamã tanto pode estar a amamentar o bebé com todo o seu amor a transbordar, na mais terna das felicidades; como horas mais tarde, no trabalho, pode estar prestes a pegar na caçadeira para disparar uns tirinhos aos colegas. Ou estar a preparar uma papinha na mais santa das paciências até não sobrar um grumo para o bebé não se engasgar e, de seguida, ir a correr riscar o carro do vizinho, estacionado em cima do passeio, porque “Não me deixou passar com o carrinho do bebé! Seu labrego!”
E só de olhar para estas tresloucadas mães mudamos de passeio, fingimos não ter ouvido a campainha, damos passagem imediata na fila do supermercado. Receamos aquela figura de carrapito descaído e roupas largas, maquilhada com olheiras até ao queixo, e que tanto pode apertar-nos as bochechas e espetar-nos um beijo como aterrar um estalo que nos faz lembrar a louca da nossa mãe, claro.
A loucura não é mais do que uma violenta emoção. E a vida, quando explode, é a maior das emoções. Por isso, é tão fácil entender a loucura maternal: porque a mamã continua a parir todos os dias após o parto. A parir a sua identidade, a parir leite, a parir uma frase a seguir à outra, a parir um sorrisinho, a parir medos e coragens, a parir uma imagem a projectar. Vira alienada. Vira desmemoriada. E uma mamã em construção, enquanto não está pronta, não é bonito de ser ver e o contacto pode até ser perigoso.
Muitas recém-mamãs saem à rua de calças de pijama, verificam a cada cinco minutos se a criança respira, guardam as chaves do carro no congelador e garantem que com um mês a criança já diz "Mamã". E não, não são vozes na sua cabeça. O mundo, e em especial os maridos, é que não as entendem. Apesar de a loucura ser uma palavra feminina.
Mas eis que tudo o que é bom dura pouco. A loucura maternal é, infelizmente, temporária. Acaba por passar pois os fantasmas têm mais visitas a fazer e talvez, lá para o Natal, possam vir de novo dizer "olá". Ou "buuu"!
Eu podia ter-me ido abaixo, cantado o baby blues, dormido uma noite no Júlio de Matos. Mas isso não aconteceu comigo, apenas me visitaram um par de fantasmas tenrinhos. Mas sei que há muitas recém-mamãs assombradas que choram ao verem-se neste imenso palco de loucos sozinhas com os seus bebés. Calma, mamãs. Não se assustem, pois a loucura é um privilégio e uma felicidade imensa. E só quem tem fantasmas é que foi gente."

 http://lifestyle.publico.pt/maeshamuitas/332649_de-mae-e-de-louca-todas-temos-um-pouco

Tânia Paias
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta
Departamento da Infância (Faro)


quarta-feira, abril 09, 2014

SEXUALIDADE INFANTIL (III): HIPEREXCITAÇÃO E SINAIS DE ALERTA

Como vimos nas publicações anteriores, a masturbação tem início em idade bastante precoce e faz parte da exploração e descoberta normais da infância, tendo uma componente essencialmente sensorial associada à descarga de tensões. Não tem um caráter erótico, apesar da leitura que os adultos fazem do comportamento masturbatório estar muitas vezes centrada na erotização, que conduz à repreensão e à proibição. Esta atitude tende a acentuar a curiosidade, por um lado, e a tensão, por outro, reforçando a masturbação.

Mas há sinais que efetivamente podem revelar preocupações, sobretudo quando parece haver uma hiperexcitação. Como em quase todas as questões do desenvolvimento infantil, a intensidade, a frequência e a persistência indicam se existe ou não um problema.

Quando a masturbação não é sobrevalorizada pelos adultos e é abordada de forma tranquila e direcionada para um ambiente mais privado, mas a criança mantêm uma elevada frequência de comportamentos masturbatórios, parecendo absorta e alheada de tudo o resto, pode ser sinal de uma elevada carga ansiogénica que não está a ser capaz de aliviar de outra forma. Este funcionamento pode ser frequente em contextos familiares desorganizados, com elevados níveis de tensão, que levam a criança a refugiar-se no comportamento masturbatório, como se tentasse embalar-se para se tranquilizar. Crianças com dificuldades de expressão podem igualmente recorrer a esta forma de gratificação (em vez de, por exemplo, fazerem uma birra ou chorar quando não se sentem bem). Quando os adultos percebem que a masturbação é um refúgio, devem aproximar-se calmamente da criança, pegar-lhe, abraçá-la e até embalá-la e dizer “está tudo bem, estou aqui, estás segura/o”. Estas são crianças que habitualmente necessitam de uma contenção física por parte do adulto, às vezes bastando tocar-lhe com a mão para as tranquilizar.

Outras vezes existem explicações físicas para a manipulação excessiva dos genitais, especialmente nas meninas: infeções, alergias, dermatites, hipersensibilidade cutânea. Nestes casos, mais do que masturbação para obtenção daquele misterioso prazer, a criança toca, coça, esfrega para tentar aliviar o desconforto. Estas situações requerem observação médica.

Quando a masturbação assume um caráter sexual (erotizado) mais evidente (insistindo na penetração com objetos, simulando posições sexuais, contacto físico excessivo, repetição e insistência na masturbação após a adequada intervenção do adulto, envolvimento com crianças mais novas ou mais velhas), pode ser sinal de que a criança está a ser molestada ou, pelo menos, exposta a demasiada estimulação sexual.

Na minha anterior publicação, a propósito dos traumas da infância, referi que muitas vezes os pais acham que certas vivências não têm impacto na criança porque esta “ainda não tem idade para perceber”. Quanto menor a capacidade da criança compreender o que se passa à sua volta, maior a probabilidade de existir um impacto negativo.

Demasiada estimulação sexual não significa, necessariamente, abuso sexual (apesar de algumas vezes ter um impacto psicológico semelhante). Pode ser uma cena na TV ou em revistas ou partilhar o quarto com um irmão mais velho que poderá masturbar-se na presença da criança, achando que esta está a dormir. Dormir no quarto dos pais é, também, frequentemente uma fonte desta sobre-estimulação, e não é preciso que a criança seja muito crescida. Quando questiono sobre a sexualidade dos pais com o/a filho/a no quarto, a grande maioria responde “só fazemos quando está a dormir e não fazemos barulho” e não consideram qualquer hipótese da criança se aperceber. Pois a teoria e a prática comprovam que as crianças frequentemente assistem, pelo menos, a parte das relações sexuais dos pais: sons, nudez, movimentos e posições que podem ser vividas como uma experiência altamente violenta, que a criança não tem capacidade para compreender nem integrar. Esta experiência pode não só contribuir para uma grande inquietação e angústia, como ativar a masturbação e a sexualidade de uma forma pouco saudável.


É sempre difícil definir o que é um comportamento demasiado intenso, repetitivo e persistente. Na dúvida, procure o pediatra e solicite observação psicológica.

Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

terça-feira, abril 08, 2014


REVISTA PAIS & FILHOS
COMO O COACHING MELHOROU OS NOSSOS DIAS
Escrito por Teresa Diogo Segunda, 07 Abril 2014 | Visto - 312


Com pequenos ajustamentos, conseguimos transformar as alturas mais difíceis do dia em momentos menos frustrantes e mais prazerosos. À hora do banho e do jantar, acabaram-se as birras!

Primeiro foram os “terrible twos”, com toda a sua pujança em afirmação e vontades próprias, depois veio a desculpa do “feitio”. “Sai à mãe”, diziam os mais próximos, numa tentativa airosa de explicar por que motivo aos três anos já era tão determinado, cheio de opiniões, mandão e decidido. Tudo isto poderia até ser positivo se não se traduzisse, vezes de mais, em frustração, alguma desobediência, muito finca-pé e até uma ou outra berraria. Sobretudo na hora de ir para a mesa ou para o banho. Ou seja, na hora de interromper as brincadeiras, os jogos ou a televisão. “Não quero!”, “Não gosto!”, “Estás sempre a estragar-me o dia!”, atirava-me ele, revoltado.alt
Sempre fui apologista de que a nossa relação se deve basear mais no diálogo, na explicação das coisas e das situações, no entendimento e compromisso mútuo, e menos na imposição da minha vontade e autoridade excessiva. Mas, aos quatro anos do Tiago, percebi que nem sempre tenho a paciência necessária para lidar com as suas frustrações e continuar a explicar, vezes sem conta, por que motivo tem de tomar banho todos os dias e sentar-se à mesa quando o chamo para jantar, sem reclamar da comida, da cor do prato ou… do tempo. E antes que se tornasse um pequeno ditador, e a bem da harmonia familiar no final de cada dia, quando estamos todos cansados e menos tolerantes, aceitei o desafio da coach Magda Dias para experimentar algumas sessões de coaching e aconselhamento parental. “Pode ser o que necessita para ‘desbloquear’ e fazer fluir a relação familiar, eliminando aqueles ‘dilemas’ do dia-a-dia”, justificou. E se o objetivo é que possamos todos “saborear o que de melhor a vida tem”, então este só podia ser um desafio para levar muito a sério. E bastaram duas sessões para que os resultados se tornassem visíveis.
Quando iniciámos o processo, o Tiago acabara de chegar de férias em casa dos avós, no Algarve, onde passou 15 dias a fazer o que bem queria (dentro dos limites do razoável), ou não fosse essa a magia dos dias passados com os avós. Nada contra. Mas confesso que temi o pior: como é que o ponho “na ordem”, sem grandes dramas, logo agora que vem convencido que é o big boss? Partilhei com a Magda essa minha preocupação e ela sossegou-me: “Vem nutrido, vem cheio a nível emocional e isso é bom”.  Além disso, sublinhou, o Tiago está na idade de integrar conceitos e entender a autoridade, um aspeto que até aqui era menos vincado e que se traduzia numa maior contestação sempre que era contrariado. Ou seja, está na idade certa para, finalmente, compreender e aceitar que na educação nem sempre há lugar para a democracia e que, por vezes, é preciso respeitar um “acabou a conversa!”. Dito assim, pode parecer que, de um dia para o outro, se instalou lá em casa uma ditadura feroz e implacável. Nada disso.
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Um banho ao dinossauro
O objetivo definido na primeira sessão de coaching e aconselhamento parental com a Magda Dias foi, exatamente, melhorar a questão da obediência naqueles momentos chave do dia e, por consequência, aumentar a tolerância do Tiago à frustração. “Os limites e a autoridade são estruturantes e ele precisa disso para crescer bem”, assegurou-me.
Os momentos mais propícios a birras e desentendimentos lá em casa sempre foram a hora de ir para o banho e para a mesa. Para mudar esse comportamento, que já se tornara um hábito, Magda aconselhou-me a mudar de estratégia. Em vez de repetir exaustivamente o típico “Tiago, anda para a mesa” ou “Tiago, já te chamei três vezes para o banho”, que ele ignorava até ouvir um berro, comecei a ir ter com ele, sentar-me ao seu lado e a interessar-me genuinamente por aquilo que está a fazer no momento (uma brincadeira, um desenho, um episódio da Ovelha Choné…). Depois, “é preciso criar uma ligação através do toque” e, assim, o passo seguinte é tocar-lhe na mão ou no braço e dizer-lhe o que pretendo, olhos nos olhos, com determinação: “Agora vamos arrumar os brinquedos e vamos tomar banho”. Sempre que possível, faço uma ligação entre o que ele está a fazer e o que eu quero que ele faça: “Traz esse dinossauro que ele está mesmo a precisar de um banhito!”.
Posso dizer que tem resultado. Na primeira vez, achei que tinha sido apenas sorte de principiante, mas nos dias seguintes a “sorte” repetiu-se. É verdade que ainda me pergunta por que é que tem de tomar banho todos os dias, mas agora já o faz de forma resignada, sem espernear, a caminho da banheira. Esta pequena mudança no meu comportamento e, por consequência, no dele teve um impacto importante nas nossas rotinas: há menos tensão, menos confronto e menos berros e os finais de dia tornaram-se bastante mais fluidos e agradáveis. Para todos.
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Quantas colheres?
À mesa, a estratégia para acabar com o “Não gosto! Não quero!” passou, primeiro, por responsabilizá-lo e depois por recorrer a uma dose extra de brincadeira. A menos que o jantar fosse pizza, canja ou douradinhos, as reclamações começavam quando ainda nem estava sentado. E como pizza, canja ou douradinhos não são refeições assim tão frequentes lá em casa, é fácil deduzir que a hora do jantar era dominada pela sua habilidosa (e extenuante) arte da negociação: “Quantas colheres ainda tenho de comer? Só como três!”. Chegámos então a um acordo. “Eu comprometo-me a colocar-te (muito) menos comida no prato e tu comprometes-te a não reclamar nem a negociar. E se gostares do jantar pedes-me para te pôr mais”. O compromisso foi aceite, sem contrapropostas.
Durante a primeira semana do acordo, facilitei a situação e apresentei-lhe refeições que sabia serem (mais ou menos) do seu agrado. Depois comecei a introduzir os “maus da fita”: os legumes. Um feijão-verde aqui, um brócolo ali, e o acordo lá foi sendo cumprido, com uma ou outra tentativa de negociação pelo meio. “Negociar é importante, mas responsabilizar é muito mais”, disse-me Magda. De vez em quando, ainda começa a “espernear”, mas aí aplicamos a segunda técnica: a brincadeira. Nada como uma boa gargalhada ou um pouco de troça sobre a situação para desanuviar o ambiente. Depois desviamos a conversa para um assunto do seu agrado. E assim os jantares vão prosseguindo bastante mais tranquilos do que o habitual. Sem distrações (leia-se sem televisão), com mais conversa e menos tensão. E para “desbloquear” o diálogo, em vez do típico “Então como foi o teu dia na escola?”, passei a contar-lhe algumas situações sobre o meu dia e a pedir a sua opinião. Por conseguinte, passou a falar mais sobre a escola e os amigos.

“Vês? O prato está vazio!”
Quando as coisas correm menos bem e o Tiago não cumpre o acordo, sabe que há consequências: até pode não comer tudo, mas não sai da mesa enquanto nós não terminarmos. E quando correm mesmo, mesmo bem, Madga aconselhou-nos a fazer o chamado “reconhecimento factual”. Ou seja, nada de “Boa, Tiago!!!”, que não passa de uma expressão sem conteúdo. É sempre preferível reconhecer o que efetivamente acabou de fazer: “Vês? O prato está vazio!”. E este tipo de feedback factual deve aplicar-se a tudo: um desenho, uma construção de Lego ou uma outra qualquer habilidade. Acabar com o “Boa!” obrigou-me também a parar o que estou a fazer no momento e olhar com olhos de ver para aquilo que ele me quer mostrar. Se tenho que dizer qualquer coisa concreta sobre o desenho que fez, tenho que olhar, de facto, para ele, o que na correria do final de dia nem sempre acontecia. É sempre mais fácil atirar um “Boa, filho!” e continuar a descascar cenouras para a sopa…
Com tudo o que assimilei no decorrer deste processo, posso dizer que a nossa experiência com o coaching e aconselhamento parental foi bastante positiva. Aprendi que é melhor responsabilizar em vez de negociar, é imprescindível ter regras muito bem definidas e ajudá-lo a relembrá-las quando necessário, é preferível falar-lhe em consequências em detrimento de castigos ou chantagens e, muito importante, mais vale baixar as expectativas e aceitar que nem sempre as coisas correm como desejamos. E que é possível, com ligeiras mudanças, retirar a frustração da nossa relação.


O QUE É O COACHING PARENTAL?

É uma abordagem às questões da parentalidade, com recurso à implementação de estratégias que ajudam a resolver os desafios e dificuldades da relação entre pais e filhos no dia-a-dia. O objetivo é apetrechar os pais de ferramentas para lidar com esses atritos do quotidiano, guiá-los na descoberta do seu estilo parental em consonância com as necessidades da cada criança e ajudá-los a cultivar uma relação mais positiva com os filhos. O coaching parental ajuda a lidar com situações como a disciplina, a frustração, a raiva, as rotinas e transições, as “lutas de poder” e comportamentos desrespeitosos. O apoio dado pelo coach passa pela abordagem das necessidades e desafios particulares de cada família e a definição de uma estratégia para lidar com eles.

O coaching é diferente de uma consulta de psicologia?
No coaching não se faz terapia. “Uma sessão de coaching ‘pega’ na pessoa tal e qual ela está, nos recursos que tem e ajuda-a atingir as suas metas”, esclarece Madga Dias, coach, formadora e autora do blogue “Mum’s the boss” (www.mumstheboss.blogspot.pt), sublinhando que “numa sessão de coaching o passado não é ‘dissecado’”.



sábado, abril 05, 2014

ONU, para um mundo pior?!



Excelente documentário na sic notícias - um Toda a Verdade - sobre a Organização das Nações Unidas (ONU). Fiquei absolutamente perplexo e chocado. O título do documentário é: ONU - Abusos e Escândalos. O vídeo acima corresponde à emissão completa do programa. 

Na minha opinião é um documentário obrigatório sobre o que de mais relevante e grave se tem passado no nosso mundo nestas últimas décadas. Apesar do papel importante que a ONU tem tido a vários níveis, tem-se ultimamente tornado numa plataforma política escandalosamente subvertida aos interesses económicos e do poder no que respeita à forma como tem lidado com algumas das calamidades maiores das últimas décadas.

Este documentário choca e põe a nu as questões mais fundamentais sobre a natureza humana: com a sua capacidade única e misteriosa de amar, o ser humano tem também uma capacidade única de se perverter e cometer as maiores atrocidades com a maior ligeireza.

Como é que eu contribuo para tudo isto? Também eu prefiro fechar os olhos a estas coisas horríveis e continuar na "minha vidinha"? Também eu prefiro estar no meu canto, a tomar alguma respons-abilidade (habilidade de responder) pelo que se passa em meu redor? Também eu prefiro seguir o caminho "mais fácil" que a sociedade "main stream" me reserva? Quais são verdadeiramente os meus valores? Como os concretizo no dia a dia? Que posso eu fazer? Também eu preciso de continuar a acariciar os meus mecanismos de defesa para só ver a realidade que tolero ver (a minha e a dos outros)? ... Porque quem não assume a responsabilidade da sua vida deixar-se-á levar e corromper pelas pressões do mundo à sua volta. 

Este documentário põe o dedo na ferida e não é só na ferida da ONU, mas na ferida de todos porque todos nós somos co-responsáveis do mundo em que vivemos e todos nós temos as mesmas potencialidades: as de fazer o melhor e o pior. 

Se for ao fundo do que me faz humano, a pergunta mais imediata  e fácil "como é que alguém é capaz de ser assim tão "mau"?" pode ser substituída pela subtil e desconcertante pergunta: "como é que eu posso/poderei/poderia ser assim tão mau?". Porque o homem é o homem e as suas circunstâncias e o "outro", no limite, sou eu noutras circunstâncias.  

A Organização das Nações Unidas (ONU) é uma organização internacional cujo objetivo declarado é facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento económico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial. A ONU foi fundada em 1945 após a Segunda Guerra Mundial para substituir a Liga das Nações, com o objetivo de deter guerra entre países e para fornecer uma plataforma para o diálogo. Ela contém várias organizações subsidiárias para realizar suas missões.

quinta-feira, abril 03, 2014

Animais no útero

As imagens que se seguem, e que parecem ser de outro mundo, foram criadas por Peter Chinn, no âmbito do documentário da National Geographic, Extraordinary Animals in the Womb, ou em português, ‘Animais Extraordinários no Útero.’ 
Apesar de não poderem ser consideradas fotografias,  esta imagens são extraordinariamente próximas da realidade, pois foram produzidas com a ajuda de ecografias, pequenas câmaras e gráficos gerados por computador. 

ELEFANTE

URSO POLAR

COBRA NO OVO

GOLFINHO

LEOPARDO

PINGUIM NO OVO

CHIHUAHA


MORCEGOS

CAVALO






quarta-feira, abril 02, 2014

PEQUENOS GRANDES TRAUMAS DA INFÂNCIA

Quando se fala em EMDR, fala-se obrigatoriamente em trauma, o que pode levar a algum reducionismo de uma prática que se tem revelado abrangente, pois há tendência a associar o trauma a situações catastróficas. Se bem que o EMDR começou por ser essencialmente utilizado em pacientes com Perturbação de Stress Pós-Traumático (grande trauma), tem aplicação em quase todas as situações em que existe uma intensa experiencia emocional negativa associada a episódios “menores” (pequeno trauma). Se os grandes traumas são relativamente fáceis de identificar e mobilizar ajuda (acidentes, assaltos, mortes, bullying, abuso sexual, abandono), os pequenos traumas nem sempre são devidamente identificados e valorizados.

Na minha prática clínica com crianças, os pais perguntam frequentemente “qual é a causa?”, procurando identificar a origem da problemática dos filhos. Se muitas vezes a história individual e familiar ajuda a compreender, pelo menos, algumas das causas, outras vezes não conseguimos fazê-lo. Sabemos, sim, que aconteceu algo em determinada altura do desenvolvimento da criança que foi vivido com extrema intensidade. O que costumo explicar aos pais é que existem situações que são relativamente inócuas para os adultos e passam até despercebidas, mas que são vividas com grande angústia pela criança.

A infância é marcada por tentativas repetidas, fracassos e, finalmente, êxitos. Normalmente, as crianças têm o equipamento necessário para lidar com estes desafios. Para atingir estes feitos, a criança precisa de sentir que é amada, que tem valor, que é capaz e que está segura. Episódios de aparente pouca relevância, como uma queda no recreio do jardim-de-infância, engasgar-se com a comida, assistir a uma cena na TV, ouvir um estrondo repentino, ter um pesadelo, observar uma expressão facial de apreensão no pai ou na mãe, ter um mau resultado na escola, assistir a uma discussão, podem pôr em causa o sentimento de valentia e mestria que apoiam o percurso do desenvolvimento e o caminho para a independência. Frequentemente os adultos desvalorizam algumas destas situações porque as consideram normais ou pouco importantes. Por outro lado, poderão achar que a criança nem percebe o que se passa, por isso não vai ficar afetada. No entanto, a capacidade que as crianças têm para compreender a situação e expressar o que sentem é bastante inferior à intensidade com que a vivem.

Na infância as experiências são essencialmente sensoriais com emoções em bruto e, dada a dificuldade em elaborá-las, o reflexo surge sobretudo ao nível do comportamento. Dada a incapacidade em interpretar logica, racional e verbalmente os eventos, as crianças “gravam” na sua mente mensagens negativas que tendem a afetar o seu bem-estar e o seu funcionamento de forma prolongada, muitas vezes até à idade adulta. Alguns exemplos destas mensagens são: estou em perigo, não presto, não sou capaz de fazer nada, ninguém gosta de mim. Quantos de vós, adultos, se reconhecem nestas crenças negativas e como estas interferem na vossa vida pessoal, social e profissional? Imaginemos agora o que estas perceções de si próprias fazem a crianças com a vulnerabilidade típica da idade e sem a capacidade para as perceber, dizer e expressar.

Há tempos, um rapaz de 12 anos que apresentava “acessos de fúria” (entre aspas porque na verdade o que fazia era largar os livros e fechar-se no quarto) quando se confrontava com uma dificuldades escolar, tinha igualmente uma postura adultomorfa e erguia todas as suas defesas quando eu procurava chegar às suas emoções. Cerca de dois anos antes, houve um desacato à porta do prédio entre os pais e um vizinho, que acabou em agressões físicas. Este rapaz, na altura do conflito com 10 anos, ligou três vezes para o 112. Continuava, no entanto, a repetir “eu não fiz nada, devia ter feito alguma coisa para acabar com aquilo”, revelando um sentimento de impotência e uma crença de que devia ter feito mais do que fez. Três anos antes, a avó deste rapaz faleceu. Chegou a vê-la no hospital em fase terminal, mas não se despediu. Depois da morte da avó, começou a revelar grande agressividade na escola, batia nos colegas, atirava com as cadeiras. “Fui muito mau para a minha professora, sou mau quando sinto coisas”. O EMDR ajudou a perceber, mais uma vez, que o pensamento negativo era de que nada fez para salvar a avó. O processamento destas situações ajudou a desbloquear estas crenças negativas e irracionais (sou fraco, sou mau), permitindo a instalação de recursos e respostas mais adaptativos, associados a um pensamento mais positivo: este rapaz fez o que pôde e expressou-se como foi capaz, tendo em conta a sua idade. Passou a ser mais capaz de entrar em contacto com as suas vulnerabilidades, aceitando-as e reagindo de forma ajustada. As dificuldades escolares acentuavam esta perceção de que não era capaz porque era fraco, reagindo com “fúrias” que ao mesmo tempo que o faziam sentir-se mais forte, reforçavam igualmente a ideia de que era mau.

A psicoterapia EMDR foi bastante importante neste caso, tendo em conta que existiam vivências traumáticas que o colocavam numa posição muito defensiva e difícil de quebrar com outra abordagem terapêutica.

Termino com alguns exemplos de reações que as crianças podem apresentar depois de uma vivência traumática (imediatamente a seguir ou algum tempo depois), retirados do livro “Usando EMDR com ninõs”:

-Alterações do Sono: pesadelos, sono agitado, falar/gritar durante o sono, dificuldade em adormecer, medo de ir dormir, enurese noturna;
-Culpa: responsabilizar-se pelo acontecimento e por tudo o que acontece, comportamento excessivamente desajustado que implica castigos ou, pelo contrário, comportamento excessivamente adequado para a idade;
-Regressão: comportar-se como um bebé, dependência excessiva, dificuldade em ficar sozinho, procura excessiva de atenção);
-Medo: medo de aspetos diretamente relacionados com o evento, reação excessiva a ruídos fortes ou movimentos repentinos, reatividade excessiva ao toque, medos vários;


Muitas destas reações são normais e expectáveis em algumas fases do desenvolvimento. É a intensidade, a frequência e a persistência que traduzem que a criança não está a ser capaz de lidar sozinha com os acontecimentos.

Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta EMDR
Responsável pelo Departamento da Infância