A vulnerabilidade acentuada à vergonha e o medo persistente da exposição ou da denúncia pública são vivências emocionais sintomáticas. Estes sentimentos são muitas vezes indicadores de falhas ou de insuficiências, na história individual, de relações empáticas, ricas em profundidade emocional, genuínas, nas quais a própria pessoa se tenha sentido com frequência verdadeiramente compreendida na sua natural complexidade e contradição emocional, moral e comportamental. Esta experiência relacional com uma figuras preocupadas, envolvidas e compreensivas, permite, por via da confiança e da identificação, a aquisição interna gradual da capacidade e da propensão para a autocompreensão em profundidade, bem como a capacidade de compreensão em profundidade dos outros. Em acréscimo, estas capacidades internas adquiridas por via das boas relações, são a via privilegiada para a serenidade e maturidade psicológica.
A falta da experiência de uma relação que nos devolve compreensão em profundidade relaciona-se com frequência à internalização de cuidadores severos, críticos, que humilham e/ou instigam sentimentos de medo da rejeição por parte do grupo social (amigos, vizinhos, colegas, etc.). Gradualmente isto pode conduzir a um esvaziamento interno e/ou desorganização psicológica, já que a indisponibilidade de uma relação de compreensão em profundidade no início das nossas vidas potencia a intolerância interna a todo um leque de vivências e partes da personalidade que vão então sendo expulsas da consciência por ação de mecanismos de defesa destinados a "evacuar" a angústia/ansiedade ligadas a essas vivências e partes da personalidade. Forma-se um conflito entre, por um lado, uma parte intolerante (crítica, rejeitante, não aceitante e/ou cruel) da personalidade, e, por outro lado, a experiência emocional interna e outras partes da personalidade, que, sendo então sentidas como indignas do amor ou apreço dos demais, são expulsas da consciência, dissociadas e muitas vezes projetadas sobre os demais, sobre a visão do mundo e das relações.
Estes mecanismos de defesa de "evacuação" dos conteúdos mentais tendem a criar problemas adicionais nas nossas vidas pois a sua natureza é frequentemente projetiva. As nossas partes intoleradas são expulsas para o exterior, expulsão algumas vezes acompanhada por ações e atitudes que visam reforçar a ilusão de que o interior intolerável pertence realmente ao exterior (desprezado). A projeção faz-se acompanhar comummente da necessidade adicional da certeza de que há de facto um exterior repudiável (projetado nos demais, ou no mundo), mas que não é, ou faz parte do próprio sujeito e/ou das suas associações. Não sou eu, mas sim tu, quem tem agora as partes de mim que eu não suporto nem consigo enfrentar.”
O resultado são distorções da perceção dos outros e da realidade, lado a lado com um esvaziamento progressivo do Eu, consoante a frequência e intensidade da expulsão de partes do Eu para o exterior. A atitude crítica ou julgamental, e sobretudo a atitude de desprezo denuncia todo este enredo interno. A crítica ou julgamento surge neste contexto como expressão da tentativa de lidar com um conflito interno ligado a vivências internas dificilmente toleráveis.
Num segundo ponto, não são apenas as partes não compreendidas e intoleradas da personalidade que são projetadas sobre os demais, mas também a própria instância interna crítica, severa, cruel e intolerante o pode ser. Desta forma, quando na história pessoal faltam outros significativos capazes de preocupação e sintonia-empática, envolvimento e interesse genuínos, não só surge aqui o terreno fértil para o desenvolvimento da atitude critica, despreziva e intolerante perante o outro (perante partes da própria pessoa projetadas subsequentemente sobre o outro), como se instala o pavor da critica e do julgamento dos demais – a vergonha patológica, intensa e muitas vezes negada e inconsciente. A vergonha consciente já denota um certo grau de tolerância a aspetos menos aceites (ou percebidos como menos aceitáveis) da personalidade, ou seja, denota um grau menos severo e até mesmo normativo de uma apreciação interna de nós mesmos face à diversidade da nossa experiência emocional e das diferentes partes da nossa personalidade.
Quando nos livrarmos de emoções e partes da personalidade em conflito (com a parte severa e intolerante, tiranizante) tudo isso permanece dissociado e/ou inconsciente. Isto por sua vez faz com que parte da nossa história e quem nós somos permaneça fora da nossa consciência e compreensão. Quanto menor a compreensão em profundidade de nós mesmos e da nossa vida, menos autonomia e liberdade teremos na própria vida, relativamente às escolhas que fazemos.
A projeção de uma instância interna severa, crítica, intolerante e não compreensiva, aliada à pouca tolerância e compreensão de partes importantes da nossa experiência, personalidade e emoções, encontra-se muitas vezes ligada à atitude de mentir, por exemplo nas relações íntimas. Isto porque a outra pessoa é sentida como alguém incapaz de nos poder compreender verdadeiramente, pois sentimos que esses aspetos estão para além da possibilidade de serem aceites e compreendidos (amados).
Ainda que o outro seja sentido como alguém intolerante em relação a algo, que nós sejamos intolerantes com o outro em relação a esse algo, muitas vezes acabamos mesmos por ser indulgentes connosco mesmos na relação com esse algo que fortemente criticamos no outro e que receamos suscitar a crítica do outro. Isto apenas revela a nossa parte intolerante, que nestes momentos é colocada em "standby" face à força desse algo que na maior parte do tempo é repudiável e jamais reconhecido como tendo qualquer associação connosco e com as nossas vidas. Fica claro aqui que "algo" necessita efetivamente poder ser melhor compreendido em nós e sobre nós, para que possa passar a ser tolerado e aceite, em vez de expulso e criticado nos demais.
É uma boa forma de nos conhecermos um pouco melhor, precisamente procurando aqueles aspetos do(s) outro(s) que mais desgostamos e mais facilmente nos metem os cabelos em pé. Fica o desafio.