sexta-feira, janeiro 18, 2013

Entrevista online de António Coimbra de Matos (2010)


- António Coimbra de Matos, psicanalista:

"Na sociedade atual a vergonha substituiu a culpa"


Foi um dos primeiros terapeutas a fazer análise em Portugal. Aos 80 anos, continua a trabalhar dez horas por dia. António Coimbra de Matos, decano dos psicanalistas, é um otimista nato.

Entrevista de Ana Soromenho (www.expresso.pt)

8:33 Terça feira, 3 de agosto de 2010


O ponto de partida da conversa era o prazer. E o nosso interlocutor um homem experiente, doutorado nos mistérios do inconsciente, nas emoções e nas contradições de que é composta a fibra humana. Mas António Coimbra de Matos, consagrado decano dos psicanalistas portugueses, não gosta de respostas taxativas: "Isto é assim, aquilo é assado...". Deixa sempre uma margem para a dúvida, desvaloriza: estamos melhor numa sociedade que celebra o prazer do que naquela que vivia na culpa. Diz-se um pragmático. Mas é sobretudo um otimista. Um psicanalista generoso que acredita nas pessoas e no que elas sabem sobre si.
Aos 80 anos continua a formar e a ouvir. No seu amplo consultório - um terceiro andar de um prédio em Lisboa - em frente à secretaria atafulhada de papéis há um cadeirão desenhado por Charles Eames. É aqui que se senta. Ao lado, a célebre chaise longue de Le Corbusier. É aqui que deita os seus pacientes. "O colchão vermelho fui eu que o mandei fazer", diz, apontando para o divã. "Tive um paciente bastante largo que não ficava nada confortável aqui deitado. Agora, ficou melhor. Quer experimentar?"

Nas sociedades atuais vivemos obcecados pela ideia do prazer? Penso que não. É uma ideia que se vende muito mas que não corresponde à realidade.

Quando iniciou a sua vida profissional, nos anos 60, a palavra prazer não fazia parte do nosso léxico como hoje faz. Deste então ganhou uma imensa proporção. Nessa altura, associava-se quase exclusivamente ao prazer sexual. Hoje o prazer de que as pessoas tanto falam tem sobretudo que ver com usufruto.

O que a revolução sexual veio reivindicar foi precisamente o prazer no sexo. Passou a ser um tema. As pessoas passaram a falar e a viver a sexualidade com maior à vontade. Isto é real. Hoje, mesmo nas patologias, raramente aparecem doentes por causa de problemas relacionados com sexualidade - e antigamente não era assim. Mas devo dizer que, apesar de haver um certo exagero nessa necessidade de procura de prazer, acho que em relação ao tempo em que comecei a exercer é uma reação bastante benéfica.

Porquê? Era bem pior quando procurávamos o sacrifício e tudo girava em torno da culpa. A grande transformação nas sociedades ocidentais foi a de termos passado de uma sociedade dominada pela culpa para uma sociedade baseada no sucesso.

E como é que isso se traduz nas nossas vidas? Temos três emoções inibitórias: medo, culpa e vergonha. Sou ainda do tempo em que as depressões na adolescência tinham, quase sempre, origem na culpabilidade. Hoje as depressões estão associadas a questões que se relacionam com sucesso e competência. O que nos move agora é o êxito e o medo de falhar. Nas sociedades de sucesso, a vergonha substituiu a culpa.

Pode-se então dizer que o prazer também se associa ao êxito na medida em que é uma recompensa? É um pouco diferente. Na realização do êxito há uma determinada fasquia que obriga a sermos bons. Neste sentido há uma grande desvalorização do prazer. Quando dou uma conferência não me perguntam se tive prazer em realizá-la. Perguntam-me se tive êxito. Mas ainda a propósito destas questões relacionadas com as sociedades de consumo e do prazer: penso que hoje há uma tendência para a procura dos prazeres imediatos e uma certa dificuldade em acertar com o tempo de espera.

Tudo tem de ser 'aqui e agora'? A tal incapacidade de aguentar a frustração? Dificuldade de tolerar a frustração, talvez. Mas neste ponto, tenho uma opinião um pouco diferente da maior parte dos autores.

Qual é? Há toda uma teoria muito aceite que defende que é preciso introduzir no universo infantil a frustração, para que as crianças se habituem a tolerá-la. Não concordo. A frustração é sempre negativa, não se deve procurá-la. O que se deve introduzir é a capacidade de aumentar o tempo de espera. É uma nuance em relação à ideia de frustração, mas é uma nuance importante.

O que é a frustração? A maior parte das vezes confunde-se frustração com privação. Privação é ter sede e não ter água para 
beber, frustração é ter uma garrafa com água e não poder bebê-la. A frustração é muito mais traumática.

Mas quem nos diz que é preciso ter tolerância à frustração são os terapeutas. E a maioria pensa mesmo assim. Também dizem que é preciso estabelecer limites - e também não concordo. O necessário é ensinar que a realidade tem limites, o que é uma coisa diferente. Há um autor americano, que conheço pessoalmente e que aprecio, o Brazelton, que diz que o bebé precisa de amor e disciplina. Não estou nada de acordo com isso da disciplina. As crianças precisam de ter um ambiente disciplinado e organizado, o que não é exatamente o mesmo.

Quando se entra num processo de análise procuramos saber o que sentimos ou quem somos? A maioria das vezes o que aparece à superfície é o que se sente. Mas depois começam a surgir os problemas relacionados com as questões identitárias. Muitas vezes as coisas acontecem ao contrário. Há muitíssimos doentes com fortes sintomas de inferioridade que aparecem com supercompensações de superioridade. De uma maneira geral as pessoas exibem o que não têm ou pelo menos julgam que não têm.

Do ponto de vista da psicanálise o que é inato em nós? Há coisas genéticas e determinantes. Por exemplo, as questões do bem-estar e do prazer têm uma tradução neurológica no sistema cerebral. As pessoas mais ligadas ao prazer imediato funcionam mais no sistema límbico, que é uma parte do córtex mais antigo. As mais focadas na ideia do bem-estar e capacidade de espera, funcionam sobretudo no córtex frontal. A maioria dos nossos genes determina tendências que se desenvolvem, ou não, de acordo com o que se encontra no meio ambiente

O que é físico e emocional vai-se desenhando no nosso cérebro, estamos sempre em rede? Tudo está ligado e desenvolve-se nesta articulação. As hormonas determinam o nosso comportamento, mas o nosso comportamento também determina a taxa hormonal que vamos acumulando. Por exemplo, por volta do terceiro mês de uma criança do sexo masculino processa-se um aumento grande de testosterona que determina aquilo a que chamamos o cérebro sexual. Se nesta fase, o bebé macho for tratado como uma rapariga, a taxa de testosterona baixa.

Um século depois de Freud, qual é o modelo de psicanálise que hoje se pratica? Varia muito. A maioria dos psicanalistas continua a praticar o modelo clássico, são bastante ortodoxos. Mas há um grupo mais contemporâneo, e bastante mais pequeno, que pensa a psicanálise de outra maneira e ao qual eu pertenço.

E como a pensa? Como em qualquer ciência, tudo deve ser baseado em provas. Portanto as teorias que existem são provisórias ou falsas. Como em qualquer mistério científico, o que procuramos são as causas e encontrar solução para essas causas. A base clínica é a observação.

Mas a matéria que compõe o nosso sentir e o nosso pensar não pode ser observada em laboratório. Pois não.
Com que ferramentas trabalha? A realidade é o próprio doente, trabalho com aquilo que sente. Na psicanálise clássica, avançava-se com toda uma teoria que comprovasse os sintomas. Agora, há um novo paradigma, em que se entende que o processo de psicanálise é um processo que induz mudança. Este movimento tem origem num grupo de psicanalistas de Boston, com o qual eu me identifico. Baseia-se na ideia de que um indivíduo, perante as vivências que teve - não só na infância, mas também na adolescência -, adquiriu uma determinada personalidade ou um determinado estilo de relação menos saudável e menos produtivo para si. O processo de análise consiste em ir interpretando este estilo no sentido de resolver e de estabelecer uma relação mais saudável, de forma a que possa traduzir o que se passa no consultório para a sua vida real.

Como é que decorre o processo terapêutico? É o mesmo de sempre. Decorre a partir da conversa entre analista e paciente. A forma de conduzir é que é diferente. Em vez de termos na cabeça uma teoria que aplicamos, procuramos observar o que se passa com aquele paciente, vamos interpretando e construindo hipóteses em conjunto. Para mim, a questão fundamental é que uma pessoa seja capaz de se autoanalisar e que acabe a análise com uma capacidade de reflexão sobre si próprio maior do que a tinha.

Conseguir devolver essas ferramentas é o maior sucesso de uma terapia. E se há um fracasso? Como lida com os seus insucessos? Mal, como todos nós...
Com culpa? (Risos) É sempre desagradável. O pior que pode acontecer, e aconteceu-me um pouco marginalmente, é haver um paciente que se suicida. Tive um paciente com um diagnóstico de esquizofrenia. Tratei este homem durante 15 anos. Ao princípio uma vez por semana, no final já só o via de seis em seis meses. Dei-lhe alta. Precocemente. Passado um ano suicidou-se.

Esquizofrenia e bipolaridade não são doenças irreversíveis? Podem-se curar sem medicar? Depende. São doenças mais graves. Mas a esquizofrenia é um espectro. Há casos mais simples e capazes de ser tratados com relativo sucesso. É preciso que se apanhem muito cedo. Cerca de 75% dos sintomas de esquizofrenia começam na adolescência.

Como se revelam? Num diagnóstico de esgotamento. O indivíduo que deixou de estudar porque a namorada o deixou... Mas se for tratado nessa altura a maior parte das vezes passa a sua vida sem ter nada.

E a bipolaridade, de que agora tanto se fala? É um exagero de diagnóstico. Há naturezas mais alegres ou mais tristes e agora qualquer pessoa é logo considerada bipolar. Aqui há tempos estava numa reunião de apresentação de médicos e estava a contar umas histórias e umas anedotas e alguém me dizia que eu estava sempre bem disposto. Respondi: "Olhe, tive muita sorte porque na minha infância não havia pedopsiquiatras. Senão teriam diagnosticado uma síndroma de deficiência de atenção ou hiperatividade. Em adulto jovem, já fui eu que não deixei o psiquiatra ver-me. Senão ter-me-ia diagnosticado uma coisa bipolar e hoje estava completamente lixado". (Risos). Estava a caricaturar, mas é mais ou menos assim.

Acontece-lhe não ter respostas? Há tempos, num congresso, perguntavam-me se tinha dúvidas. Respondi que quando percebo cinco por cento do que se passa já fico muito contente. Há uns anos um paciente, que por acaso era psicólogo, numa sessão em que estive particularmente calado disse-me: "Hoje está muito calado, deve ter pensado uma série de coisas sobre mim e não disse nada. Porque o doutor sabe mais de mim do que eu". Respondi-lhe: "Tem a certeza de que é psicólogo? Acha que alguém pode saber mais sobre si do que você próprio?". Chegou-se a este absurdo.

Recorre-se em excesso às terapias? E aos médicos também.

É um pânico com a ideia do sofrimento? Muitas vezes é. Somos o país da União Europeia que mais consome psicotrópicos. Os médicos e os psiquiatras receitam a torto e a direito.

Receita? Raramente.

Os dados que temos sobre a depressão são alarmantes. Revelam-nos que será a grande doença do século XXI. É mesmo assim? É.

O que é que isto nos diz sobre a forma como vivemos? Várias coisas. Mas também é preciso dizer que esses dados aparecem porque hoje fazemos diagnósticos mais corretos e mais precisos. É verdade que muitas vezes também se abusa, há um excesso de diagnóstico e um excesso de tratamento. Em relação à sua pergunta, posso dizer que nas sociedades atuais - isto é duvidoso mas mais consensual - um dos fatores de depressão tem que ver com o facto de as relações entre pais e filhos se terem tornado mais frágeis, devido ao modo como vivemos. Outro aspeto é o isolamento. Ao nível dos laços sociais, e talvez esses sejam os mais importantes, as pessoas são menos solidárias e vivem em excessiva competição. Não mata mas mói. As pessoas sentem-se menos amadas e mais desamparadas.

Desamparo, outra expressão muito usada pelos terapeutas. Em que difere de abandono? Desamparo é abandono físico. O mais grave é o abandono afetivo. "A minha mãe está presente, mas está a fazer o doutoramento, tem um novo amigo, etc., e não me liga a ponta de um corno...". O abandono é a grande causa de depressão, e morde muito mais do que o desamparo.

Do ponto de vista da psicologia, a infância continua a ser o território onde tudo acontece? A saúde mental constrói-se na infância. Os fatores posteriores são menos importantes. Uma criança teve perdas de afetos na infância, fez uma depressão infantil que pode ter passado despercebida, estará mais fragilizada na idade adulta e poderá deprimir facilmente. Se teve uma infância sólida aguentará bem as perdas afetivas.

Há qualquer coisa de assustador nessa ideia de que os alicerces se constroem todos ali e se corre mal é irremediável. Não é irremediável. Há um outro período importante, ao qual durante muito tempo não se deu grande significado, mas ao qual hoje já damos, que é a adolescência. Costumo dizer que na adolescência tudo se pode perder, mas tudo se pode ganhar. A maior parte das vezes, com tratamentos curtos, ou mesmo sem tratamento, consegue-se dar um salto.

Quando começou a interessar-se pela psicanálise? É difícil responder-lhe. Quando fiz o curso de medicina todos os professores achavam que tinha muito jeito manual, o que é verdade, e encaminharam-me para a cirurgia. Ainda fiz cirurgia geral, depois cardíaca, mas não me interessou muito. Eu tinha outras coisas. Durante o liceu comecei a escrever, gostava muito de filosofia, lia muito... Tudo isto levou-me para a psiquiatra. Mas a minha escolha também teve que ver com outro fator. Na altura abriu um lugar para psiquiatria no hospital do Porto e eu queria ganhar um salário para poder casar.

Uma opção pragmática? Exatamente. Nesse lado saio ao meu pai.

A imagem inicial que tinha sobre a sua família alterou-se muito depois do seu processo de análise? Tornou-se mais clara. Sobretudo em relação à minha mãe, que era a personalidade mais complicada. Com ela, tinha uma certa raiva. Era profundamente beata, e tivemos grandes conflitos por causa disso. Mas, simultaneamente, também era muito histérica e portanto havia uma sexualidade sempre presente. Quando fiz a minha análise percebi que a história de infância dela tinha sido complicada e que naquela cabeça havia uma grande dose de loucura. Isso levou-me a compreendê-la melhor. É muito importante saber aceitar. Digo muitas vezes aos analistas que formo que o pior defeito que podem ter é personalidades narcísicas e estar mais concentrados em si do que nos outros.

É fundamental haver generosidade sobre o outro? É o mais importante.

A si nada o choca? Aparentemente não. Mas há coisas que tenho muita dificuldade em perceber. Uma das dificuldades de tratar psicóticos é essa. Um esquizofrénico tem uma perturbação do pensamento bastante diferente da comum das pessoas.

O que aprendeu sobre a condição humana? Da minha experiência podia dizer que há uma coisa muito desagradável sobre a condição humana: somos uns animais muito agressivos. Mas também penso que somos animais extremamente solidários. Se formos capazes de fazer sobressair essa parte nas pessoas, conseguimos fazer coisas úteis uns pelos outros. A maior parte das vezes essa agressividade não é nem inata nem espontânea. É reativa e revela muita dor e sofrimento. Todas as pessoas têm lados positivos e muitas vezes não o sabem encontrar e nós também temos dificuldade em os desenvolver. É disso que temos de ir à procura. Na técnica psicanalítica que pratico e que ensino é que nunca ando atrás do que as pessoas têm de negativo. Procuro o que as pessoas têm de mais saudável.

Qual é a palavra mais adequada para aquilo que faz? Os médicos costumam dizer que não tratam doenças, tratam doentes. Digo que nós, os psicanalistas, vamos mais longe, conversamos com as pessoas. Ajudamo-las a conhecerem-se um pouco melhor para encontrarem o seu caminho.

Publicado na Revista Única do Expresso de 31 de Julho de 2010

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