segunda-feira, outubro 06, 2014

"Porque te amo demais!": Amor e Dependência (II)



Podemos pensar o amor maduro como implicando duas direções em equilíbrio dinâmico. Primeiro, é um amor autodirigido e, depois, dirigido ao outro. A auto-consideração, a capacidade de cuidarmos de nós próprios e de nos valorizarmos são expressão natural do amor-próprio, autoestima ou autoconsideração. Esse amor existe dentro de nós no presente porque foi continuamente e/ou suficientemente transmitido para nós no passado, durante os anos formativos da personalidade. O amor dos cuidadores transforma-se em amor próprio no presente.

O amor-próprio, como por exemplo uma boa autoestima, coexiste habitualmente com a capacidade saudável de amar. A pré-condição é a de que na base da autoestima esteja um desenvolvimento psicoafetivo saudável e que as necessidades de dependência tenham ficado adequadamente vividas e plenamente satisfeitas na história do desenvolvimento da personalidade de cada um de nós. Isto é, importante que uma criança, no seio da sua relação com os seus cuidadores, sinta que são adequadamente satisfeitas as suas necessidade afetivas, de atenção, de se sentir importante, de receber apoio, de sentir o envolvimento e a preocupação dos cuidadores.

O amor maduro é um amor generoso, que dá sem pedir em troca
-  claro que é necessário recebermos amor de volta, ainda que não necessariamente "em troca". Numa relação amorosa genuína, madura e saudável não deve existir medição de afetos ou de cuidados, registos do que se dá e do que se recebe, ou cobranças. Esta relação deve existir e decorrer enquanto um fluxo contínuo e livre de dar e receber. É um amor que surge mais pleno quando a robustez psicológica permite a autorregulação do amor-próprio (ou autoestima), sem obstáculos ou dificuldades internas acentuadas, e na maioria das situações da vida. O contrário é a dependência de algo ou outros exteriores para fins de regulação da autoestima.

O amor maduro é um amor que permite liberdade na relação. É maduro porque nasce dentro de nós, pode ser dado continuamente e repõem-se autonomamente. Não depende de terceiros. É um amor que amadureceu a esse ponto, porque quem o têm precisou primeiro de recebe-lo adequadamente durantes os anos formativos da personalidade. Este amor maduro protege-nos das relações insatisfatórias pela capacidade que nos confere de cuidarmos de nós mesmos e pela auto-preservação que daí resulta. Do outro lado temos o "aguentar" da insatisfação contínua e crescente nas relações, que conduz à deterioração emocional gradual e contínua, que muitas vezes tem por base um amar de dependência.

O "amor" dependente é diferente. Ele obscurece e ilude a insatisfação numa relação, procurando assim preserva-la a todo o custo. Aprisiona a pessoa à relação e à necessidade que essa relação seja e se torne naquilo que se precisa ou se idealizou - naquilo que outrora se precisou, noutras circunstâncias, noutros tempos e com outras figuras importantes, nomeadamente os cuidadores da infância precoce. Assume muitas vezes o rosto de um amor exigente, alicerçado na necessidade premente de se receber amor, atenção, valorização, cuidados e/ou recursos e outros "alimentos emocionais" que possam preencher a falta (muitas vezes crónica) de afeto, validação ou mesmo de vida interior.

O amar dependente é expressão de algo que outrora não se pôde viver e receber nas primeiras relações que a vida ofereceu, ou de algo que se recebeu insuficientemente, algo que se perdeu precocemente. Fica o sentimento de algo que está em falta, e se procura no contexto da intimidade com alguém. É uma falta emocional ligada à qualidade do desenvolvimento psicológico precoce e exerce constante pressão na psicologia da pessoa no sentido de ser colmatada. As relações amorosas são muitas vezes a preocupação central na vida da pessoa aquando de quadros de dependência. As relações amorosas são ansiosamente procuradas ou preservadas, mesmo quando se tornam insatisfatórias a curto ou a médio prazo. Transformam-se muitas vezes num reencenar contínuo de padrões relacionais conflituais, pois os mesmos problemas tendem a repetir-se sistematicamente, frequentemente enquanto expressão irónica da relação primária que originalmente gerou o(s) problema(s). Falta interna e padrões relacionais internalizados patológicos interligam-se entre si. Condensam-se e revivem-se no vínculo e no palco da vida amorosa.

Por via da dependência as relações amorosas passam a estar ao serviço de necessidades psicológicas e emocionais próprias de um período de vida anterior onde os vínculos eram de natureza essencialmente diferente daqueles que formam o amor adulto, próprio da vida adulta. Os vínculos de dependência, próprios do período da infância, implicam a necessidade de depender e de receber. Isto é, num primeiro período da formação da capacidade de amar madura, o dar (afeto, por exemplo) faz-se acompanhar necessariamente de um interesse em receber - atenção, disponibilidade, afeto, apoio, cuidados emocionais básicos. Tal forma de amar (de dar) é esperado no decurso dos primeiros anos de vida.

A dependência conduz muitas vezes ao "aguentar" de uma má relação, frequentemente em nome do "amor", em prol de um amanhã mais feliz - que nunca chega, ou quando chega sabe a pouco e não satisfaz realmente -, ou em prol de uma certa relação que só a própria pessoa consegue (pre)ver, contra tudo e contra todos (os aspetos da realidade). "Mais vale mal acompanhado(a) do que só" - realidade que em clinica é constatada vez após vez. É a expressão de algo que algo está mal. Expressão de que algo necessita ser reparado ou ultrapassado, e expressão do medo de tal não acontecer e do medo de se ficar sozinho(a), por exemplo. É também expressão de outras dinâmicas internas (paralelas) que funcionam como amarras a relações que não têm o potencial para reparar feridas, preencher vazios ou ajudar na emancipação dos obstáculos interiores, paredes e correntes que nos arrastam para longe da possibilidade de conseguirmos encontrar e manter relações íntimas, estáveis e verdadeiramente satisfatórias.


No próximo artigo discutiremos um pouco sobre como a psicoterapia psicanalítica lida e se dirige com eficácia à resolução da dependência afetiva e padrões de dependência nas várias relações.