No “meu tempo” já havia jogos de
computador. Tínhamos na altura o Spectrum, que exigia um leitor de cassetes e
alguns cabos ligados à televisão. Às vezes o jogo “não entrava” e lá era
preciso tentar outra vez, esperar e, por vezes, deixar de lado o jogo
pretendido e escolher outro. Jogava-se ao Pacman, que tinha de comer umas peças
de fruta enquanto fugia dos fantasmas. Jogava-se um outro, cujo nome já não me
recordo, que tinha de saltar patamar a patamar, na altura certa, para não bater
com a cabeça e voltar ao início! Depois a informática evoluiu e surgiu uma
maior diversidade de jogos, alguns um pouco mais violentos, mas que, ainda
assim, tinham como objetivo salvar os bons dos maus, em cenários que claramente
pertenciam ao mundo do imaginário. Também sou do tempo em que se jogava ao
elástico, aos pais e às mães, às escolas…. Os peluches serviam de alunos, as
mãos faziam de binóculos para ver as estrelas, pediam-se desejos com o “quantos-queres”,
as vassouras serviam de mota…
Pode parecer, mas não estou a ter
uma crise de nostalgia da infância. Estou antes cada vez mais preocupada com o
excesso de jogos eletrónicos e o seu impacto no desenvolvimento sócio-afetivo
da criança.
Antes de eu jogar Spectrum,
Winnicott já dizia “É no brincar, e apenas no brincar, que o indivíduo, criança
ou adulto, pode ser criativo e utilizar a sua personalidade integral; e é
somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu Eu”.
É através do brincar que a
criança experimenta, sente, imita, cria e transforma. É também a sua forma
natural de comunicar. É na brincadeira que a criança cresce, aprende e cura,
sendo o instrumento mais poderoso para lidar com os sentimentos; à medida que
os organiza na história que inventa, está a preparar-se para avançar e
adaptar-se. Mas esta capacidade parece cada vez menos frequente e cada vez
menos natural. Reflexo da sociedade? As crianças já não têm de esperar que a cassete
do spectrum arranque, pois têm acesso aos jogos com um ligeiro toque do
indicador, em qualquer lugar, a qualquer hora. Já não precisam de imitar o bebé
a chorar, pois o bebé vem com pilhas e chora sozinho. Já não têm de dar vida a
qualquer boneco pois qualquer objeto a que se chame “boneco” faz tudo sozinho.
Já não têm tempo para brincar, nem os pais têm tempo para brincar com elas.
Apesar de ainda não existirem
estudos cientificamente válidos suficientes, o impacto negativo do baby-sitting
eletrónico no desenvolvimento sócio-afetivo parece ser cada vez mais evidente.
Grande parte dos jogos preferidos
pelas crianças, desde a mais tenra idade, tem uma forte componente agressiva e
um grau de realismo perigosos. Um estudo de 2006 demonstrou que a exposição a
jogos violentos leva à dessensibilização para a violência na vida real. Os
jogadores parecem “habituar-se” à violência, manifestando uma menor resposta
fisiológica à mesma, bem como uma menor empatia e ajuda perante vítimas de
violência. Por outro lado, parece existir maior impulsividade e uma menor
consciência dos limites da agressividade e dos danos que a mesma pode causar.
Lembrar-se-ão de um trágico acidente em que uma criança pequena matou outra,
achando que ressuscitaria como acontecia nos jogos. Este é um dos maiores
riscos dos jogos de hoje (também associado à falta de acompanhamento parental):
a não distinção entre fantasia e realidade. E a acessibilidade à violência
parece contribuir ainda mais para esta indiferenciação.
Outro estudo (longitudinal, que
terá durado quase duas décadas) aponta para um risco crescente de
desenvolvimento de perturbações da personalidade, não diretamente associado aos
jogos eletrónicos, mas à ausência do brincar e da disponibilidade dos pais na
infância. O envolvimento forte e ativo com os adultos potencia as ligações interpessoais
e as competências sociais, contribuindo para o desenvolvimento psicológico.
Este envolvimento estará na base da vinculação, da empatia e da afiliação, da
ligação ao “mundo das pessoas”, da sua disponibilidade e capacidade para
comunicar com os outros. A ausência deste envolvimento precoce, para além da
escassa socialização com os pares, promovida pela individualidade dos jogos,
parece estar a aumentar o risco de perturbações esquizóides na idade adulta. E
talvez não seja por acaso que nos aparecem cada vez mais crianças com sinais já
bastante instalados desta patologia.
Deste modo, a criança tem de
brincar e de ter companhia para brincar. Do que é que está à espera? Sente-se
no chão, volte a ser criança e dê largas à sua imaginação! Imponha limites aos
jogos e ao seu conteúdo. “Perca” tempo com o seu filho, faça-o ganhar saúde
mental! É preciso desenvolver o seu mundo interior, para que a criança possa
lidar com o mundo exterior.