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sábado, outubro 17, 2015

Amor romântico e amor genuíno (Budismo, Psicanálise, Narcisismo e Amor)





Enquanto alguém que pratica e estuda filosofia budista e psicanálise, acho que ambas as disciplinas se debruçam bastante sobre este tema. Gosto particularmente de como a psicanálise organiza estas ideias.

"Amor (love)" e "Apego(attachment)" para a psicanálise não são contraditórios de facto. Outro termo para "attachment é "vínculo". No principio um bebé é amado (o banho de sedução mútua que o bebé interioriza pelo olhar de amor e fascínio da mãe, por exemplo). Depois passa a amar-se. Finalmente, ama. No fundo falamos de narcisismo, da evolução do narcisismo, do amor narcísico, interesseiro, para o amor oblativo, generoso. 

Freud falava deste mistério em como nas relações amorosas investir no outro levaria a um empobrecimento do Eu, porque a nossa energia deixava em grande medida de estar em nós e passava para o outro. Depois constatou que para não nos esvaziarmos, o investimento amoroso no outro tem de ser recíproco. É o amor do outro que nos alimenta numa relação amorosa. 

Contudo, o amor maduro implica sempre um investimento em nós (narcísico-normativo) e no outro em simultâneo. Pelo que para um amor maduro, há que ter um narcisismo saudável (um amor próprio ou auto-consideração maduros e auto-reguláveis, entre outras coisas). Nas relações em que um dá muito e o outro dá muito pouco, temos uma economia depressígena - aquele que recebe pouco ir-se-á esvaziando e tal conduz à depressão (ou o reavivar da depressão latente). 

Amor sem interesse é generosidade, base da capacidade de amar, e requer um bom desenvolvimento do narcisismo com acesso à capacidade de gratidão. 

Todavia os vínculos amorosos saudáveis implicam a entrega, e por tal, isso implica que ao nos entregarmos, também estamos a abrir-nos a receber do outro. Não vivemos ou podemos sobreviver isolados dos afetos dos outros, sobrevivemos disso, e a falta de tal marca a psicopatologia. Aqui sim, quando o narcisismo é deficitário, quando o bebé e a criança não recebem na medida daquilo que necessitam, o amor narcísico, interesseiro, pode ser a única modalidade de amor que fica acessível na idade adulta, enquanto expressão de problemas oriundos de uma época de vida em que se precisou de algo mais, mas não se consegui receber o suficientemente, por algum motivo. Aqui o "attachment" é "grasp" (apego), é dependência porque se procura no outro algo que outrora não se recebeu. Nem se pode receber deste outro (quando a falta/falha é significativa e persistente), pois tal a carência remete para questões ligadas ao desenvolvimento psicológico e da personalidade, e tal dimensão da experiência humana não pertence às relações amorosas, mas às relações parentais ou às relações psicoterapêuticas. 

Estas faltas são dos maiores contribuintes para o medo acentuado da perda. Ama-se interesseiramente, ama-se para se ser amado ou admirado, ou para estar associado àqueles que são alvo de admiração e prestígio. Ama-se para se ser amado ou para não se ser abandonado. Ou ama-se meramente enquanto reforço para a identidade (o outro tem características que nos conferem um sentido de identidade reforçada quando nos associamos a ele). Procuramos então encher-nos tornando os outros apêndices de nós mesmos. Muitas vezes o orgulho ou a vergonha no companheiro atestam bem esta realidade. O outro serve (ainda que por vezes não exclusivamente, e apenas em parte) uma função de restaurar e repor a autoestima. 

Neste terreno do amor narcísico é também onde surgem as idealizações mais patológicas. O amor implica uma certa idealização inicial, contudo no amor narcísico a idealização é forte e não tolera nada bem a realidade do outro, que não pode ser amado tal como é mas apenas ou sobretudo pela função que desempenha. Tal é o caso, por exemplo, das mães e pais que desaprovam dos filhos toda a vez que estes não correspondem às suas expetativas, ou se desiludem constantemente com eles. Filhos que acabam por não poder ser muitas vezes eles próprios (aceites, validados e amados enquanto tal), herdando uma ferida narcísica profunda. 

No caso dos filhos há sempre um amor narcísico à mistura, ainda que possa predominar o amor oblativo, pois na prática os filhos são mesmo extensão dos pais, partilham o mesmo ADN! É uma realidade normativa ainda que implique, de forma a que mantenha os contornos saudáveis desejados, uma capacidade de diferenciação dos desejos dos pais e da autonomia, identidada e desejos dos filhos. Tal como também são normativas certas necessidades narcísicas humanas, que perduram ao longo da vida - pertencer a grupos com os mesmos interesses e valores, sermos validados no trabalho, sermos compreendidos pelos amigos. 

Amar oblativamente sem exigir nada em troca é o ideal, contudo apenas é possível se em troca recebermos o mesmo tipo de amor. Parece contraditório pois há uma expetativa de retorno, que poderíamos apelidar de narcísica, ainda que, mais uma vez, nós de facto vivemos de afetos e sem eles afundamos na depressão, ou pior. O amor sem exigir - "amo-te e por tal quero que sejas feliz"- para se manter subentende a entrega genuína e o encontro com um outro que também esteja disposto a amar sem exigir. Mas também podemos pensar que no ideal maduro de alguém que ama genuinamente está gravado o valor de fazer o companheiro feliz, e desta forma, dar felicidade ao outro também nos dá felicidade, de um modo narcísico, mas saudável, pois é a realização de um ideal nosso, um valor nosso ideossincrático. Ao mesmo tempo vamos também captando o amor que o outro nos dá. Por sua vez quando recebemos sentimos gratidão e tal dá azo à generosidade, ou seja à vontade de dar mais amor ainda! É uma espiral de amor que se gera, sem exigência, baseada num bom desenvolvimento do narcisismo de parte a parte e no crescente desejo de dar que advém da experiência do receber.

quarta-feira, janeiro 07, 2015

Narcisistas, Escândalo e Reality Shows


De um modo geral e para fins de fácil compreensão e assimilação, a psicologia de alguém considerado enquanto "narcisista", ou mais concretamente de alguém que sofre de uma perturbação narcísica de personalidade (ou falha narcísica primária), estrutura-se em torno de uma preocupação ansiosa (patente ou dissimulada) sobre o valor da própria pessoa enquanto tal, perante os outros.

Esta angústia acentua-se sobretudo em situações sociais ou na antecipação das mesmas (quanto menos familiar o contexto ou quanto mais dificil a integração no mesmo, mais acentuada a angústia), bem como em situações de avaliação, de emissão de pareceres, ou face a figuras que detenham esse poder perante a própria pessoa. É o receio acutilante da opinião (crítica) dos outros, da rejeição por parte do grupo social; é a preocupação ansiosa e persistente de se poder vir a ser vítima de exclusão, discriminação, de ataques críticos, provocações ou humilhações na antecipação de situações sociais; é a facilidade com que a pessoa se sente atacada por críticas ou comentários menos favoráveis, por vezes relativamente inofensivos.

A sensibilidade face à apreciação crítica alheia é marcante. Apreciações desfavoráveis (por vezes até relativamente neutras) podem ser sentidas como ataques sádicos intencionalmente dirigidos contra a própria integridade, o que leva a própria pessoa a ser incapaz de se conseguir sentir e manter relativamente indiferente. Estas situações podem ser de tal forma dolorosas que a própria pessoa pode mesmo perder (ainda que temporariamente) a capacidade de pensar e de se acalmar. A própria pessoa pode mesmo passar ao ato - isto é, partir para a agressão física numa tentativa de "destruir" a fonte do sofrimento ou superiorizar-se perante ela pela força da agressão ou do domínio. Estes são já estados graves de perturbação narcísica, quando a pessoa, nas suas relações e nos meios em que se movimenta,  "explode" ou "perde a cabeça" com relativa facilidade, ou entra em estados de "prestes a rebentar", sendo evidente para os demais a dificuldade do próprio em conter ou controlar a própria frustração/raiva transbordante. Há, claro, situações ou encadeamentos de situações na vida das pessoas que têm o potencial de levarem a maioria de nós ao transbordar. São momentos ou fases de vida em que a psicoterapia é críticiamente recomendável!

A ferida narcísica obriga a que a confirmação do valor próprio seja procurado a partir do exterior. Ferida ou falha narcísica significa dificuldade em a pessoa se conseguir erguer internamente quando por algum motivo "vai a baixo". É também a dificuldade na construção e retenção de uma imagem interna realista, estável e complexa de si mesma enquanto pessoa (em oposição a uma imagem oscilante, que varia consoante as situações, ou uma imagem de perfeição ou de falência total), e/ou a dificuldade em ser conseguido um sentimento interno de coesão enquanto pessoa individual, diferenciada e separada dos demais. Tais dificuldades podem conduzir à procura sistemática de angariação de admiração/validação exterior e recursos (através de riqueza, fama, relações amorosas, conquistas sexuais, admiração dos amigos, estatuto, etc). Quando obtidos, a ilação inerna almejada fica aquém do esperado/idealizado, esbatendo-se rapidamente.

Nas perturbações narcísicas surje muitas vezes a necessidade, fantasia ou ideal persistente de pertença a grupos sociais ou socio-económicos priveligiados, socialmente diferenciados pelo prestígio, fama, riqueza, poder, ou outros quaisquer critérios de seletividade social, exclusividade ou elitismo.

As falhas narcísicas são também, e infelizmente, ingredientes-chave nos famosos reality shows, já que a configuração particular das psicologias narcísicas torna as pessoas mais propensas ao conflito, sobretudo em contextos sociais menos familiares. Quem sofre de um narcismo vulnerável facilmente se sente atacado, como também pode facilmente passar ao ataque. Isto aparentemente gera audiências, à custa da exploração e exposição pública de vulnerabilidades psicológicas. É também sabido que quem sofre de problemas narcísicos tende a conflitualizar particularmente com outros que sofrem do mesmo problema, já que o próprio sistema defensivo das estruturas narcisicas de personalidade (superiorização pessoal e crítica/desprezo/ataque ao(s) outro(s), por exemplo) tendem a colocar o dedo na ferida (narcísica) de parte a parte. Alianças de parte a parte também se podem formar, por exemplo, por necessidade mútua de reforço de identidade, por necessidade de aproximação de algum prestígio que é percebido nos demais e o desejo de nele participar, ou por outros motivos. Um reality-show sem pelo menos alguns participantes com algum grau de patologia narcísica não seria a mesma coisa. Contúdo, a própria situação de exposição perante um tão amplo público a que estas pessoas estão sujeitas, o que isso implica, e as próprias dinâmicas específicas dos reality shows, acabam por ser aspetos que num ou noutro momento têm o potencial de destabilizar até os mais emocionalmente estáveis.

Os reality shows são programas que muitas vezes espelham problemas pessoais com os quais é fácil nos identificarmos, mesmo que inconscientemente. Podemos fácilmente assistir a estes programas (pelo menos em parte) num intuíto de procurar perceber como é que os demais resolvem problemas tão pessoais, tão sensíveis, tão complexos, tão intensos e tão persistentes que surgem também nas nossas relações pessoais e sociais, e que por vezes as inundam. São problemas com os quais todos nós nos debatemos ao longo das nossas vidas e que nem sempre somos capazes de lhes dar respostas adequadas, maduras e satisfatórias. Então observamos, analisamos e criticamos, sempre a partir da  distância segura que a TV oferece - "são eles que estão às turras e não eu (ou aqueles que me são próximos e queridos)!".