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sábado, outubro 17, 2015

Amor romântico e amor genuíno (Budismo, Psicanálise, Narcisismo e Amor)





Enquanto alguém que pratica e estuda filosofia budista e psicanálise, acho que ambas as disciplinas se debruçam bastante sobre este tema. Gosto particularmente de como a psicanálise organiza estas ideias.

"Amor (love)" e "Apego(attachment)" para a psicanálise não são contraditórios de facto. Outro termo para "attachment é "vínculo". No principio um bebé é amado (o banho de sedução mútua que o bebé interioriza pelo olhar de amor e fascínio da mãe, por exemplo). Depois passa a amar-se. Finalmente, ama. No fundo falamos de narcisismo, da evolução do narcisismo, do amor narcísico, interesseiro, para o amor oblativo, generoso. 

Freud falava deste mistério em como nas relações amorosas investir no outro levaria a um empobrecimento do Eu, porque a nossa energia deixava em grande medida de estar em nós e passava para o outro. Depois constatou que para não nos esvaziarmos, o investimento amoroso no outro tem de ser recíproco. É o amor do outro que nos alimenta numa relação amorosa. 

Contudo, o amor maduro implica sempre um investimento em nós (narcísico-normativo) e no outro em simultâneo. Pelo que para um amor maduro, há que ter um narcisismo saudável (um amor próprio ou auto-consideração maduros e auto-reguláveis, entre outras coisas). Nas relações em que um dá muito e o outro dá muito pouco, temos uma economia depressígena - aquele que recebe pouco ir-se-á esvaziando e tal conduz à depressão (ou o reavivar da depressão latente). 

Amor sem interesse é generosidade, base da capacidade de amar, e requer um bom desenvolvimento do narcisismo com acesso à capacidade de gratidão. 

Todavia os vínculos amorosos saudáveis implicam a entrega, e por tal, isso implica que ao nos entregarmos, também estamos a abrir-nos a receber do outro. Não vivemos ou podemos sobreviver isolados dos afetos dos outros, sobrevivemos disso, e a falta de tal marca a psicopatologia. Aqui sim, quando o narcisismo é deficitário, quando o bebé e a criança não recebem na medida daquilo que necessitam, o amor narcísico, interesseiro, pode ser a única modalidade de amor que fica acessível na idade adulta, enquanto expressão de problemas oriundos de uma época de vida em que se precisou de algo mais, mas não se consegui receber o suficientemente, por algum motivo. Aqui o "attachment" é "grasp" (apego), é dependência porque se procura no outro algo que outrora não se recebeu. Nem se pode receber deste outro (quando a falta/falha é significativa e persistente), pois tal a carência remete para questões ligadas ao desenvolvimento psicológico e da personalidade, e tal dimensão da experiência humana não pertence às relações amorosas, mas às relações parentais ou às relações psicoterapêuticas. 

Estas faltas são dos maiores contribuintes para o medo acentuado da perda. Ama-se interesseiramente, ama-se para se ser amado ou admirado, ou para estar associado àqueles que são alvo de admiração e prestígio. Ama-se para se ser amado ou para não se ser abandonado. Ou ama-se meramente enquanto reforço para a identidade (o outro tem características que nos conferem um sentido de identidade reforçada quando nos associamos a ele). Procuramos então encher-nos tornando os outros apêndices de nós mesmos. Muitas vezes o orgulho ou a vergonha no companheiro atestam bem esta realidade. O outro serve (ainda que por vezes não exclusivamente, e apenas em parte) uma função de restaurar e repor a autoestima. 

Neste terreno do amor narcísico é também onde surgem as idealizações mais patológicas. O amor implica uma certa idealização inicial, contudo no amor narcísico a idealização é forte e não tolera nada bem a realidade do outro, que não pode ser amado tal como é mas apenas ou sobretudo pela função que desempenha. Tal é o caso, por exemplo, das mães e pais que desaprovam dos filhos toda a vez que estes não correspondem às suas expetativas, ou se desiludem constantemente com eles. Filhos que acabam por não poder ser muitas vezes eles próprios (aceites, validados e amados enquanto tal), herdando uma ferida narcísica profunda. 

No caso dos filhos há sempre um amor narcísico à mistura, ainda que possa predominar o amor oblativo, pois na prática os filhos são mesmo extensão dos pais, partilham o mesmo ADN! É uma realidade normativa ainda que implique, de forma a que mantenha os contornos saudáveis desejados, uma capacidade de diferenciação dos desejos dos pais e da autonomia, identidada e desejos dos filhos. Tal como também são normativas certas necessidades narcísicas humanas, que perduram ao longo da vida - pertencer a grupos com os mesmos interesses e valores, sermos validados no trabalho, sermos compreendidos pelos amigos. 

Amar oblativamente sem exigir nada em troca é o ideal, contudo apenas é possível se em troca recebermos o mesmo tipo de amor. Parece contraditório pois há uma expetativa de retorno, que poderíamos apelidar de narcísica, ainda que, mais uma vez, nós de facto vivemos de afetos e sem eles afundamos na depressão, ou pior. O amor sem exigir - "amo-te e por tal quero que sejas feliz"- para se manter subentende a entrega genuína e o encontro com um outro que também esteja disposto a amar sem exigir. Mas também podemos pensar que no ideal maduro de alguém que ama genuinamente está gravado o valor de fazer o companheiro feliz, e desta forma, dar felicidade ao outro também nos dá felicidade, de um modo narcísico, mas saudável, pois é a realização de um ideal nosso, um valor nosso ideossincrático. Ao mesmo tempo vamos também captando o amor que o outro nos dá. Por sua vez quando recebemos sentimos gratidão e tal dá azo à generosidade, ou seja à vontade de dar mais amor ainda! É uma espiral de amor que se gera, sem exigência, baseada num bom desenvolvimento do narcisismo de parte a parte e no crescente desejo de dar que advém da experiência do receber.

quinta-feira, setembro 03, 2015

Resolver a Dependência nas Relações Amorosas (II) - Aquando e Para Além da Dependência


Contudo, muitas vezes não basta o percurso que conduz à redução da dependência. Por entre os meandros desse percurso há também que trabalhar traumas e fantasmas que habitam dentro de nós, involuntariamente estimulados e acordados quanto nos vinculamos (ou intencionamos vincular-nos) mais íntima e intensamente a alguém. Falamos das influências oriundas das nossas primeiras e mais marcantes relações com as nossas figuras principais de vinculação durante a infância e adolescência. Como estes são os vínculos mais fortes que construímos logo no início de vida, assim que nos vinculamos ou tencionamos vincular-nos mais intensamente com alguém, naturalmente toda a nossa história emocional vivida nesse registo de vinculação vem ao de cima. Quanto mais negativa for essa história, mais conflitual tendem a ser as relações íntimas na vida adulta - e mais inescapáveis tendem a ser.

São frequentes as exigências de comportamentos e atitudes nos companheiros do presente, que acabaram por faltar (ou foram insuficientes) nos cuidadores do passado. Como que num intuito (por vezes mais inconsciente) de reparação do passado através do presente, que mais não serve enquanto defesa à religação emocional com o passado. Assim, impossibilita o processamento emocional e o luto de um passado que ficou aquém do desejo, do amor e dos cuidados que nessa altura se precisou, mas não foram recebidos (ou que se tiveram, insuficientemente) nessa altura. O que ainda pode ser realisticamente vivido no presente torna-se então relativamente inacessível. Fica-se fechado ao amor que é realisticamente possível ser vivido - o amor maduro, paciente, compreensivo e não exigente das relações adultas - com quem realisticamente está ao nosso lado - e não com os fantasmas do passado que distorcem a realidade da outra pessoa, que lhe incutem características irrealistas e desadequadas e que resultam em expetativas também elas pouco adequadas às relações íntimas maduras, ainda que adequadas a outras épocas de vida e em outras relações. No presente há apenas uma repetição interminável de mais do mesmo, ainda que sempre no intuito de se conseguirem "aquelas" respostas, "aquele" amor.

Também no psicoterapeuta são frequentemente colocadas estas exigências concretas, inicialmente, ou muitas vezes durante e após um período de queixume sobre as mais diversas atitudes, comportamentos e traços de personalidade do companheiro ou companheiros. Queixas de como estes não conseguem/podem ser como a figura (idealizada) que ainda se precisa e ainda se procura. Cabe ao psicoterapeuta a responsabilidade de criar uma relação de confiança que por um lado seja diferente daquelas que não conseguem dar as respostas e cuidados adequados. Mas também uma relação em que a dor e carências do passado possam finalmente ter expressão, e em que presente e passado possam ir sendo cada vez mais separáveis, até que o passado cicatrize e passe a ser verdadeiramente passado. Assim, abre-se a possibilidade de um presente que pode ser conhecido e vivido plenamente tal como é, e de nele poderem ser encontradas e criadas novas fontes de prazer e de alegria que gratificam e preenchem plenamente. Enquanto seres humanos a verdade infeliz é que nós não precisamos relembrar o passado, porque todos nós vivemos o passado no nosso presente de uma ou de outra forma. Algumas pessoas inclusive não têm possibilidade ao longo de toda a vida de conseguirem viver verdadeira e plenamente o presente, sem as faltas, exigências ou deturpações do passado.

Para finalizar, fica a nota de que a dependência e o que fica dentro de nós enquanto precipitado de outros tempos de vida têm uma ligação íntima com a nossa autoestima (e com a nossa identidade). Este é mais um dos eixos extensivamente trabalhado durante uma psicoterapia aquando do trabalho sobre a capacidade de cuidarmos de nós mesmos, a autonomização emocional (e não só) e a identidade, entre outras áreas da personalidade.

segunda-feira, agosto 31, 2015

Resolver a Dependência nas Relações Amorosas (I) - Da Dependência à Possibilidade do Amor Maduro


"Como é que eu deixo de abdicar de mim nas minhas relações, de me submeter à vontade dele/dela e de me humilhar perante ele/ela?"

"Como é que eu consigo o amor que procuro sem ficar tão dependente?"

"Como faço para que deixem de haver tantas discussões?" 

Tudo o que mais queremos e almejamos nas nossas relações íntimas amorosas é ser amados. É poder sentir o quão importantes e interessantes somos para a outra parte e a sua vontade de estar e conviver connosco. E, a partir daí, é podermos construir uma verdadeira, sólida e profunda intimidade e cumplicidade a dois. Mas... nem sempre conseguimos isto. Por vezes não o conseguimos por mais relações que tenhamos. E assim, a vida vai passando por nós.

As relações amorosas caracterizam-se por uma interdependência normativa entre ambos os
companheiros. São duas pessoas que se interessam uma pela outra, que investem uma na outra, e cuja economia emocional de cada pessoa passa a depender em grande parte do retorno afetivo do outro amado. Nesta medida, permanecer em relações onde não há esse retorno ou ele é insuficiente, pode resultar num desequilíbrio emocional relacionado com o abaixamento contínuo da autoestima e com a depressão. Quando existem problemas emocionais de fundo (como alguma forma de depressão), com repercussão na autoestima, então as relações amorosas tendem a ser bastante procuradas no intuito de servirem como que de plataformas de salvação. Tornam-se vitais e a sua perda é de tal forma perigosa que mais vale permanecer numa má relação que sem nenhuma relação. Claro que, permanecer numa relação sem o retorno afetivo necessário é também o caminho para o agravamento da dor emocional e da depressão, e logo, da dependência. Fica-se num beco sem saída.

A dependência original remete para o período da infância. Podemos dizer que toda a infância é uma longa fase de dependência que, quando tudo correr relativamente bem, termina no acesso à autonomia ou à dependência madura nas relações com as outras pessoas. De facto, a dependência, ou necessidade de sermos cuidados, está imbuída no nosso ADN. Logo desde bebés essas necessidades requerem respostas concretas pelas principais figuras de cuidados e vinculação da infância. As consequências de tal não acontecer são, particularmente no início de vida, muito graves para o desenvolvimento psicológico.

É imprescindível, por exemplo, que no inicio de vida haja a presença de um cuidador tranquilo, disponível, consistente e sintónico com as necessidades do bebé de dormir, de ser alimentado, de que lhe mudem a fralda quando está molhada, quando tem frio ou quando está a ser hiperestimulado (muitos sons, muitas solicitações ou muitas pessoas presentes, que acabam por saturar o aparelho psíquico ainda demasiado imaturo para conseguir filtrar sozinho tantos estímulos). Do encontro entre estas necessidades e estes cuidados nasce o sentimento de existência e o prazer de existir.

As crianças pequenas sozinhas não têm a capacidade de discriminar emoções nem de entende-las e dar-lhes os devidos significados para que a partir daí possam organizar o pensamento. Ou seja, dependem dos cuidadores para que estes as ajudem a digerir (processar/elaborar) e integrar (interiorizar) as emoções e as experiências de vida ligadas a estas. Um pai ou uma mãe atentos a um filho pequeno que parece mais abatido ou demasiado irrequieto irão procurar sentar-se junto dele e, através de uma atitude tranquila e paciente, sintónica, empática e ás vezes um pouco intuitiva, irão procurar compreender o que se passa. Neste diálogo a criança, que não tem nome para o que sente, nem sabe porque o sente, irá dispor do próprio aparelho de pensar as emoções dos adultos que cuidam dela. Assim, os pais vão procurando perceber, dar nome e pensar sobre as emoções/situações que a criança está a tentar perceber e organizar dentro de si. Subitamente percebe-se que a criança não está mais abatida! As emoções difíceis foram nomeadas, pensadas e transformadas pela disponibilidade tranquila e paciente, e pela compreensão empática dos pais ou outros cuidadores.

Gradualmente uma criança vai ganhando confiança de que existem outras pessoas à volta dela junto das quais ela consegue alívio das suas angústias. Para além disso ela consegue também, através da relação e do diálogo com essas figuras, organizar o pensamento e obter novas perspetivas que lhe vão dar respostas e soluções para problemas com os quais não consegue lidar sozinha. É também esta a relação que o psicoterapeuta psicanalítico oferece e das funções mais importantes que desempenha ao longo de uma psicoterapia.

A capacidade de gerir e digerir as próprias emoções mais difíceis e conteúdos internos vai por consequência aumentando, e com isso a capacidade de fazer face a situações difíceis sem uma necessidade tão grande de depender de ajuda exterior. Ou seja, a dependência começa a enfraquecer e a autonomia a formar a sua sólida raiz com base neste incremento de robustez da personalidade e das partes saudáveis da mesma (que conferem a capacidade de lidar com emoções mais difíceis); na interiorização da função pensante e transformadora das emoções daqueles que apoiam a criança desta forma sempre que ela precisa; e na expansão da capacidade de pensar. Sendo também estes os objetivos e ganhos da psicoterapia.

Simultaneamente a confiança para viver, explorar e fazer novas experiências é reforçada pela possibilidade sempre presente do regresso para junto daqueles que oferecem o seu apoio (disponibilidade e compreensão empática) no sentido do alívio das angústias e da organização da experiência interna da criança quando ela mais precise. Reforça-se o prazer de funcionar autonomamente, com base na interiorização da disponibilidade das figuras reais de apoio. Tal como é o efeito da disponibilidade do psicoterapeuta e do espaço da psicoterapia, sempre ao dispor para regresso ao mesmo àquela(s) hora(s) específica(s) da semana.

Finalmente surge a capacidade da criança, e mais tarde do adolescente e do adulto, de construir outras relações à sua volta, com base nestas relações sanígenas capazes de apoiar e de oferecer lucidez, bem como de ajudar a organizar o pensamento sempre que necessário. Assim como também a psicoterapia procura ajudar a trabalhar as dificuldades pessoais à possibilidade de serem procuradas, criadas e geridas relações sanígenas ao longo da vida.

Assim, a dependência infantil não existe mais. Estão organizadas internamente as bases da autonomia ou da dependência madura, que nas relações amorosas permitem a liberdade para sair ou abandonar relações menos gratificantes. Isto porque no passado lá estiveram relações melhores e mais gratificantes, porque esse é o mundo interno relacional com o qual a pessoa está sintonizada dentro dela, porque existem outras relações no presente (pais, amigos, ou outros) que oferecem maior bem-estar e satisfação que a própria relação amorosa (que deve ser das mais gratificantes de todas). Por tudo isto, a esperança ou sentimento de possibilidade viável e real de serem encontradas e construídas outras relações mais em sintonia com as necessidades e desejos pessoais é também grande. A relação terapêutica é também uma nova relação que se oferece enquanto nova experiência, reparadora, sanígena e unidade de referência para a procura, refinamento e construção de outras relações ao longo da vida.

quarta-feira, janeiro 07, 2015

Narcisistas, Escândalo e Reality Shows


De um modo geral e para fins de fácil compreensão e assimilação, a psicologia de alguém considerado enquanto "narcisista", ou mais concretamente de alguém que sofre de uma perturbação narcísica de personalidade (ou falha narcísica primária), estrutura-se em torno de uma preocupação ansiosa (patente ou dissimulada) sobre o valor da própria pessoa enquanto tal, perante os outros.

Esta angústia acentua-se sobretudo em situações sociais ou na antecipação das mesmas (quanto menos familiar o contexto ou quanto mais dificil a integração no mesmo, mais acentuada a angústia), bem como em situações de avaliação, de emissão de pareceres, ou face a figuras que detenham esse poder perante a própria pessoa. É o receio acutilante da opinião (crítica) dos outros, da rejeição por parte do grupo social; é a preocupação ansiosa e persistente de se poder vir a ser vítima de exclusão, discriminação, de ataques críticos, provocações ou humilhações na antecipação de situações sociais; é a facilidade com que a pessoa se sente atacada por críticas ou comentários menos favoráveis, por vezes relativamente inofensivos.

A sensibilidade face à apreciação crítica alheia é marcante. Apreciações desfavoráveis (por vezes até relativamente neutras) podem ser sentidas como ataques sádicos intencionalmente dirigidos contra a própria integridade, o que leva a própria pessoa a ser incapaz de se conseguir sentir e manter relativamente indiferente. Estas situações podem ser de tal forma dolorosas que a própria pessoa pode mesmo perder (ainda que temporariamente) a capacidade de pensar e de se acalmar. A própria pessoa pode mesmo passar ao ato - isto é, partir para a agressão física numa tentativa de "destruir" a fonte do sofrimento ou superiorizar-se perante ela pela força da agressão ou do domínio. Estes são já estados graves de perturbação narcísica, quando a pessoa, nas suas relações e nos meios em que se movimenta,  "explode" ou "perde a cabeça" com relativa facilidade, ou entra em estados de "prestes a rebentar", sendo evidente para os demais a dificuldade do próprio em conter ou controlar a própria frustração/raiva transbordante. Há, claro, situações ou encadeamentos de situações na vida das pessoas que têm o potencial de levarem a maioria de nós ao transbordar. São momentos ou fases de vida em que a psicoterapia é críticiamente recomendável!

A ferida narcísica obriga a que a confirmação do valor próprio seja procurado a partir do exterior. Ferida ou falha narcísica significa dificuldade em a pessoa se conseguir erguer internamente quando por algum motivo "vai a baixo". É também a dificuldade na construção e retenção de uma imagem interna realista, estável e complexa de si mesma enquanto pessoa (em oposição a uma imagem oscilante, que varia consoante as situações, ou uma imagem de perfeição ou de falência total), e/ou a dificuldade em ser conseguido um sentimento interno de coesão enquanto pessoa individual, diferenciada e separada dos demais. Tais dificuldades podem conduzir à procura sistemática de angariação de admiração/validação exterior e recursos (através de riqueza, fama, relações amorosas, conquistas sexuais, admiração dos amigos, estatuto, etc). Quando obtidos, a ilação inerna almejada fica aquém do esperado/idealizado, esbatendo-se rapidamente.

Nas perturbações narcísicas surje muitas vezes a necessidade, fantasia ou ideal persistente de pertença a grupos sociais ou socio-económicos priveligiados, socialmente diferenciados pelo prestígio, fama, riqueza, poder, ou outros quaisquer critérios de seletividade social, exclusividade ou elitismo.

As falhas narcísicas são também, e infelizmente, ingredientes-chave nos famosos reality shows, já que a configuração particular das psicologias narcísicas torna as pessoas mais propensas ao conflito, sobretudo em contextos sociais menos familiares. Quem sofre de um narcismo vulnerável facilmente se sente atacado, como também pode facilmente passar ao ataque. Isto aparentemente gera audiências, à custa da exploração e exposição pública de vulnerabilidades psicológicas. É também sabido que quem sofre de problemas narcísicos tende a conflitualizar particularmente com outros que sofrem do mesmo problema, já que o próprio sistema defensivo das estruturas narcisicas de personalidade (superiorização pessoal e crítica/desprezo/ataque ao(s) outro(s), por exemplo) tendem a colocar o dedo na ferida (narcísica) de parte a parte. Alianças de parte a parte também se podem formar, por exemplo, por necessidade mútua de reforço de identidade, por necessidade de aproximação de algum prestígio que é percebido nos demais e o desejo de nele participar, ou por outros motivos. Um reality-show sem pelo menos alguns participantes com algum grau de patologia narcísica não seria a mesma coisa. Contúdo, a própria situação de exposição perante um tão amplo público a que estas pessoas estão sujeitas, o que isso implica, e as próprias dinâmicas específicas dos reality shows, acabam por ser aspetos que num ou noutro momento têm o potencial de destabilizar até os mais emocionalmente estáveis.

Os reality shows são programas que muitas vezes espelham problemas pessoais com os quais é fácil nos identificarmos, mesmo que inconscientemente. Podemos fácilmente assistir a estes programas (pelo menos em parte) num intuíto de procurar perceber como é que os demais resolvem problemas tão pessoais, tão sensíveis, tão complexos, tão intensos e tão persistentes que surgem também nas nossas relações pessoais e sociais, e que por vezes as inundam. São problemas com os quais todos nós nos debatemos ao longo das nossas vidas e que nem sempre somos capazes de lhes dar respostas adequadas, maduras e satisfatórias. Então observamos, analisamos e criticamos, sempre a partir da  distância segura que a TV oferece - "são eles que estão às turras e não eu (ou aqueles que me são próximos e queridos)!".

sexta-feira, maio 23, 2014

Águas de Um Lago Interior


Dentro de cada um de nós existe um lago...

Esse pode ser um lago de águas calmas e cristalinas, de águas turvas e agitadas, ou até de águas poluídas. Pode ser um lago mais vazio ou em vias de extinção, ou mesmo a reminiscência de que outrora um lago ali existiu. Esse lugar pode ainda ser o lugar de uma paisagem assombrada, inóspita e acidentada, que jamais acolheu qualquer tipo de águas ou formou noção do que acolher algo semelhante poderia ser.

O lago interior toma forma a partir do que dentro de nós existe, e em que circunstâncias isso existe - de que forma e em que estado. Retrata quer a dança harmoniosa e a parceria cooperante, quer a luta afincada e a irremediável reconciliação entre os mais variados aspetos que habitam dentro de nós, ou entre os vários lados de um mesmo aspeto. O lago interior é também o que lá foi depositado pelo outro e o que se fez com isso. È o próprio observador que observa e a condicionante que o condiciona, na forma como ele é, como se sente e como se percebe perante si mesmo, perante o outro, no mundo e na relação. È a harmonia e/ou desarmonia entre tudo isso.

O lago de águas calmas e cristalinas cativa o olhar contemplativo e curioso, o olhar que varre a superfície das águas espelhantes e transporta para o íntimo de quem observa o sentimento do sereno e do sublime.

À luz do sol, o lago cristalino convida o mesmo olhar ao mergulho quase que irresistível na intimidade das suas águas. Elas aliciam pelo privilégio de poderem ser atravessadas e reconhecidas na sua translucidez resplandecente e nas formas, feitios, cores e movimentos que se revelam nas suas profundidades. Assim, o lago de águas cristalinas desvela a sua identidade.
As águas calmas ilustram harmonia, formam a unidade espelhante em que se converte a superfície de um lago, que retrata então fielmente o “lá fora” envolvente, e sem distorção devolve-lhe a sua beleza. Ou a sua fragilidade, pois águas calmas não distorcem, não mentem, apenas refletem.
O lago de águas turbulentas não forma o reflexo do circundante à sua superfície. Águas agitadas não criam condições para mais que formas abstratas, distorções daquilo que é. O que nestas águas habita fica ofuscado pelos choques de correntes e contra correntes internas. Outras vezes águas turbulentas significam mudança, e trazem consigo a promessa de algo novo, de diferente, de necessário.
O lago de águas turvas, poluídas (muitas vezes agitadas)... Pouco capaz de se olhar e se reconhecer como de facto é, tampouco consegue purgar o agente corruptor das suas águas. O agente oculto e que se oculta, deixado pelos rios que noutros tempos ali desaguavam (e que algumas vezes também deixavam coisas boas), perpetua atrocidades sobre as águas do lago, sobre tudo o que elas acolhem e sobre tudo o que as rodeia - a própria paisagem e natureza em que se enquadram. Incapazes de se auto-filtrarem, as águas vêem-se transmutadas para o inóspito. Para a ele sobreviver, dividem-se (toscamente), convencem-se que não sao elas mas sim os outros lagos e rios que detêm tudo aquilo que de mais deplorável existe nelas. E assim, convencidas da sua limpidez, julgam e desprezam na crença mais que convicta (não fosse por ventura surgir a dúvida aterradora!) de que é o alheio que alberba todos esses aaspetos e agentes repudiáveis e vergonhosos que, na ilusão, não lhes são próprios, nem jamais lhes puderam alguma vez ter pertencido ou podem vir a pertencer. Agitado e sob ameaça incogniscivél, o lago ergue massivas comportas internas e corta ligações com as suas fontes.  E assim o lago irá secar, até não sobrar senão um solo marcado por poças disformes de água estagnada.
Na fuga a ele próprio e na procura de um lugar para existir, alguns lagos cosneguem ainda  juntar-se a outros lagos, mutias vezes por afinidades ou complementaridades quase que intuitivas, não entre águas, mas entre agentes de poluição e corrupção interior.

Aqueles mais turvos e poluídos são por vezes os que se convencem e se passam como os mais límpidos e cristalinos. Ponderar que pudessem alguma vez precisar de rio algum ou do que estes lhes pudessem oferecer é pura heresia - e ai do rio que se julge maior que eles! Muitos são já poças de água tão pequenas, tão secas e tão ameaçadas de estinção que se mascaram de grandes e ilustres rios (e até oceanos), para não perceberem a dor da necessidade ligada à falta da fonte ou do rio disponível e provedor. Mascaram-se porque receiam abrir as suas comportas a qualquer tipo de correntes externas - o derradeiro perigo.

Diogo Gonçalves
Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

sábado, novembro 09, 2013

Contributo para a compreensão do funcionamento obsessivo: dinâmicas de controlo e o seu efeito sobre o narcisismo.



Faz hoje uma semana que apresentei e defendi perante a comissão de ensino da AP o meu trabalho: Contributo para a compreensão do funcionamento obsessivo: dinâmicas de controlo e o seu efeito sobre o narcisismo, no âmbito da passagem a membro titular no ramo de Psicanálise.

Todos aqueles que sentirem interesse ou curiosidade poderão lê-lo AQUI

Ana Almeida
Diretora da Psicronos