domingo, fevereiro 24, 2013

O drama do desemprego Parte II

De acordo com números divulgados recentemente, Portugal é o país europeu da OCDE, onde se trabalha mais horas por dia: em média, nove! Este facto, já de si alarmante no que isto significa em dificuldades de logística familiar, não tem, infelizmente, tradução na produtividade. A nossa produtividade foi, na última década, 60% da média europeia. A Grécia e a Espanha, por exemplo, têm índices de cerca do dobro do nosso.

Trabalhamos muitas horas, mas de forma pouco produtiva. A produtividade tem a ver com os factores de produção utilizados: capital, tecnologias, mão-de-obra, matérias-primas, etc. Quanto vai elevado for o quociente entre aquilo que é produzido e o factor de produção utilizado, maior o índice de produtividade.

Quanto maior a produtividade, melhor a competitividade. Produzindo-se mais bens com menos recursos, concorre-se mais facilmente nos mercados. Em termos de país, isso significa que se poderá exportar mais.

Por outro lado, o país europeu com maior produtividade é o Luxemburgo, onde mais de metade da população é portuguesa. Estranho, não é? Terá a ver com a capacidade dos gestores, com a motivação, com o clima, com a geografia, com quê?

A ligação da produtividade ao emprego é mais fácil de entender nos sectores exportadores: quanto mais competitivos, mais exportamos, mais investimento estrangeiro atraímos, mais emprego se cria.

Tenho para mim que o principal drama que vivemos é o do desemprego, que provavelmente atingirá os 20% este ano. Pelo menos uma em cada 5 pessoas em idade de trabalhar estará desempregada. A este número somam-se os tais que o INE designa por "inactivos desencorajados", os que já desistiram de procurar emprego, cujo subsídio de emprego já se esgotou, e os que nunca trabalharam. Depois há os precários e os biscates.

O país está fracturado entre os que não têm emprego, ou o têm muito precário, e os empregados, os tais que trabalham muito tempo, mas mal, e que recebem na sua maioria ao fim do mês (ainda há os chamados recibos verdes, desde sempre desprotegidos).

O drama do desemprego é social e psicológico. É uma importantíssima causa de stress e depressão, mas também uma fonte de tensão social. De ódios, raiva, medo, xenofobia.

Para criar emprego, é preciso que haja empresas a crescer. Que haja investimento, que a produtividade aumente, que se produzam mais bens e serviços. Que os patrões arrisquem, que a justiça funcione. Que as pessoas se qualifiquem, aumentem as suas competências (iniciativa, motivação, foco, determinação, capacidade de aprendizagem). Nunca é demais repeti-lo: não é o estado que deve criar empregos, são as empresas. A nossa tradicional dependência do estado terá de, a bem ou a mal, acabar.

 

 

 

 

Estatíticas para todos os gostos

O Portal da Opinião Publica, uma iniciativa conjunta da Fundação Francisco Manuel dos Santos e do Instituto de Ciências Sociais já pode ser consultado em www.pop.pt.

Muito user friendly (bastante mais do que o da Pordata), o portal apresenta gráficos interessantíssimos e interactivos que comparam vários indicadores em 29 países europeus: o indivíduo, a família, os grupos sociais, a religião, a imigração, a política, o trabalho, a economia.

Hoje interessou-me, dentro do tema "o indivíduo", a "percepção do controlo sobre a própria vida", que em Portugal regista uma média baixa. Não é surpreendente. Muito menos é o facto de os países nórdicos apresentarem os valores mais altos. O que surpreendeu foi a clara inflexão, no sentido da redução, que a generalidade dos países apresenta a partir de 2000/2001. Se pensarmos que o stress está sobretudo ligado à sensação da falta de controlo sobre a própria vida, temos aqui um quadro bem negro de uma situação económico-psicológica. Vê-se bem que a Europa está em recessão - e em depressão.

 

sexta-feira, fevereiro 22, 2013

Reflexões filosofico-psicoterapeuticas do dia



Entre o determinismo e o livre arbítrio, o Homem poderá sentir-se confuso e até aprisionado. Será um será outro, será livre, será totalmente condicionado... Poderá também ser as duas coisas? Determinado e livre?

Sartre foi um dos "filósofos da liberdade" que, apesar desse rótulo, condensou e integrou de forma muito interessante estes dois aspetos da existência humana. 

Quando diz "O homem está condenado a ser livre", brinca com, e perverte o conceito de determinismo impregnando-o de liberdade. Apesar de haver uma articulação entre os dois conceitos, impera a liberdade radical.

Mas tem também outra frase (entre muitas...) onde refere que: 

"Liberdade é o que se faz com o que nos foi feito". 

Parece-me muito interessante porque, não negando um certo grau de determinismo, abre caminho para a liberdade do sujeito enquanto agente (ativo) na sua vida. 


segunda-feira, fevereiro 18, 2013

FILICÍDIO (II): FATORES DE RISCO


Como pode uma mãe ou um pai matar o próprio filho? É a que estão que nos surge sempre que é noticiado este crime. Como já foi referido no post anterior sobre o tema, existe sempre um elevado grau de psicopatologia associado e, como tal, encontram-se alguns fatores de risco.

O 1º ano de vida da criança parece ser o mais vulnerável à ocorrência do filicídio. Por um lado, a gravidez e o parto provocam alterações hormonais significativas, que estão na base de perturbações do humor nas primeiras semanas. Em algumas mulheres, esta perturbação prolonga-se, instalando-se um quadro de depressão pós-parto, com ideação suicida e pensamentos recorrentes de morte, tristeza intensa, ansiedade e desespero, que colocam mãe e filho em risco. A progesterona parece desempenhar um papel central nestas alterações. Para além das questões biológicas, o cansaço, o receio de falhar e todas as dificuldades habituais inerentes ao nascimento de um filho, podem tornar-se avassaladores, sobretudo em mulheres com fragilidades emocionais ou perturbação da personalidade já anteriores ao parto, aumentando o risco. Neste primeiro ano, não é só na mãe que aumenta a vulnerabilidade destes fatores. Também o pai, que muitas vezes se sente excluído ou preterido, pode encarar o bebé como um obstáculo ou um rival, aumentando também o risco se houver perturbação da saúde mental.

O filicídio parece ser mais frequente na mulher. Na maior parte dos casos, existe história de depressão grave, sendo os anti-depressivos outro fator de risco associado. Os anti-depressivos atuam numa primeira fase ao nível da ação e do comportamento, e só depois têm efeito ao nível do humor. Este aspeto parece aumentar, em larga escala, a possibilidade de passagem ao ato quando existe ideação suicida ou homicida, o que exige avaliação e vigilância rigorosas. Outro quadro frequente, na maior parte das vezes só diagnosticado mais tarde, é a perturbação de personalidade border-line, em que existe uma marcada dificuldade no controlo dos impulsos, bem como uma forte instabilidade nas relações, caracterizada pela passagem brusca da admiração à raiva (não só nas relações familiares, amorosas, sociais e profissionais, mas também com os filhos)

Este crime acontece com mais frequência em famílias com maiores dificuldades sócio-económicas, maior destruturação familiar e menor acesso a tratamentos. A violência doméstica está também frequentemente associada a estes casos. O suporte social e familiar, bem como um adequado seguimento médico e psicológico são, portanto, fatores protetores.

A personalidade e a capacidade de resiliência são desenvolvidas ao longo da vida, com base nas relações e vivências que a pessoa vai experienciando desde que nasce. Quanto mais frágeis forem os recursos emocionais, maior a probabilidade de consequências mais graves na relação consigo próprio e com os outros.

Apesar do juízo social, o filicídio tem na sua base um sofrimento insuportável, em que existe uma incapacidade do progenitor se distanciar da sua angústia para se focar na criança. A psicóloga forense Paula Bruce refere que para estas mães (ou pais) “livrar-se dos filhos é apenas livrar-se da sua própria dor, sem pensar na criança como alguém separado de si.”   

domingo, fevereiro 17, 2013

O drama do desemprego

De acordo com o jornal Expresso, é assim que o Instituto Nacional de Estatística chama às cerca de 120.000 pessoas que estiveram inscritas nos Centros de Emprego, e já não estão. A estes, somam-se outros 260.000 que nunca procuraram emprego. São (só!) quase 400.000 "desencorajados".

Estes eufemismos, por bem intencionados que sejam, acabam por ser chocantes. Como se se pretendesse humanizar, hipocritamente, aquilo que corresponde a uma situação crua e gritante.

Tínhamos, em final de 2012, 1.200.000 desempregados. Destes, 300.000 recebem (ainda) subsídio de desemprego (calculo que sejam considerados "inactivos encorajados").

Em 2012 houve 10.646 ofertas de trabalho para 710.652 desempregados inscritos e encorajados. Que entretanto desencorajam e vão, mês a mês, passando a desencorajados.

Os números são perigosos e existe uma frase que se ouve muito: "as pessoas não são numeros". Mas estas tentativas de os humanizar com adjectivos psicologizantes é patética. Não é só o emprego e os meios de subsistência que faltam. Até já o pudor começa a escassear.

 

 

 

segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Lindo nome para uma estrela

(foto: NASA)

LL Ori é o nome de uma jovem estrela, na nebulosa de Orion, que sopra um vento estelar muito mais forte do que o do nosso sol. Pode ver-se na fotografia no quadrante em baixo à esquerda.
A nebulosa pode ser vista a olho nú, em noites sem nuvens. Mas é bem melhor vê-la com um telescópio.
Quando eu era miúda o meu pai deu-me um telescópio, com o qual passei muitas noites de verão. Do que eu mais gostava era dos anéis de Saturno, uma maravilha não da ficção científica, mas da realidade. Tão longe e tão perto.
Hoje as nossas crianças já não precisam de estar curvadas sobre o telescópio, podem ver estas maravilhosas fotografias da NASA num computador. Mas aperceber-se-ão que a nebulosa está ali, à distância do olhar?
Quem quiser saber mais pode ir a:
http://www.nasa.gov/multimedia/imagegallery/image_feature_2442.html

domingo, fevereiro 10, 2013

FILICÍDIO (I): Quando afinal os pais não cuidam dos filhos


O filicídio é o homicídio de uma ou mais crianças por parte de um ou ambos os pais. Não é tão raro como gostaríamos de pensar e os meios de comunicação têm ajudado a demonstrar a elevada frequência deste crime chocante. As notícias invadem-nos a sala, a qualquer hora do dia, sem aviso e sem tempo para impedir que as crianças, que devem acreditar que os pais lutam pela sua vida, ouçam o que aconteceu.

Na maioria das espécies, incluindo na humana, existe uma predisposição para o cuidado e proteção da cria, pelo que se gera de imediato um sentimento de incredibilidade, choque e revolta naqueles que assistem ao relato destes acontecimentos. O que falha, então, quando uma mãe ou um pai mata o próprio filho?

O psiquiatra Phillip Resnick identificou cinco circunstâncias em que ocorre o filicídio:

  • Altruísta: é a circunstância mais frequente em que a mãe, gravemente deprimida, planeia suicidar-se e acredita que os seus filhos ficarão mais protegidos “com” ela.
  • Psicótico: situação em que o pai ou a mãe, em estado delirante e paranoide, acredita que algo persegue os filhos e mata para proteger. Outra situação, enquadrada nesta circunstância, é o delírio paranoide de que a criança agride e ataca o progenitor, pelo que este matará em auto-defesa.
  • Espancamento Fatal: casos em que a punição física é de extrema violência e descontrolo, conduzindo à morte do filho.
  • Filho indesejado: situações em que, por vários motivos, o filho é indesejado ou sentido como um obstáculo.
  • Vingança conjugal: casos em que um dos pais mata o filho para magoar o parceiro, habitualmente depois de uma situação de infidelidade. Acontece também no âmbito da disputa das responsabilidades parentais, em que um dos pais, não aceitando a guarda atribuída ao outro progenitor, tira a vida ao filho para que o outro não ganhe a batalha.
Obviamente, qualquer uma das circunstâncias envolve um elevado grau de psicopatologia. A investigação sugere que são principalmente as mulheres a cometer filicídio, sendo as situações de homicídio por raiva ou vingança mais frequentes nos homens. 

Quando surge este tema e abordo estas questões do ponto de vista da compreensão psicopatológica, a reação habitual é a ideia de que procuramos desculpabilizar o crime, obviamente porque o filicídio, mais do que qualquer outro crime, comporta uma inevitável carga emocional pela dificuldade em compreender o inexplicável. Mesmo nós, profissionais da saúde mental que conhecemos os processos que estão por trás de tamanha atrocidade, ficamos perturbados e temos dificuldade em desculpar um pai ou uma mãe que mata os seus filhos.

O nosso papel será, talvez, alertar para o que pode ser feito pelos vizinhos, amigos e familiares e o que devia ser feito pelos serviços de saúde para procurar evitar que episódios destes se repitam.

Sabia que, na maior parte dos casos, o filicida dá alguns sinais antes de cometer o crime?

Continuaremos a desenvolver este tema nas próximas semanas.


sexta-feira, fevereiro 08, 2013

MEDO e PÂNICO - diferenças qualitativas?


Investigação da Universidade de Iowa abre caminho para tratamento de distúrbios de ansiedade


O pânico é induzido a partir de algum sítio externo às amígdalas cerebelosas
O pânico é induzido a partir de algum sítio externo às amígdalas cerebelosas


Investigadores da Universidade de Iowa (EUA) descobriram que o cérebro humano tem regiões que sentem o medo de formas diferentes. A descoberta aconteceu no seguimento de experiências com três mulheres que tinham danos significativos na amígdala cerebelosa – que regista o medo vindo de perigos externos.
A equipa fiz uma experiência com uma mulher – identificada como SM – que sofria de Urbach-Wiethe, uma doença cerebral rara que provoca danos na amígdala. Quem sofre da doença não sente medo. No entanto, através da inalação de um gás com dióxido de carbono, normalmente utilizado em laboratório para induzir a sensação de pânico, a paciente deixou-se dominar por ele.

No artigo publicado na «Nature Neuroscience», a equipa de cientistas prova que a amígdala cerebelosa não é o único “guardião” do medo na mente humana. Outras regiões como o tronco encefálico, o diencéfalo ou o córtex insular podem detectar os sinais mais primários de perigo quando a sobrevivência está ameaçada.
A investigação diz que o pânico ou o medo intenso é induzido a partir de algum sítio externo à amígdala”, diz John Wemmie, professor de psiquiatria da Universidade de Iowa e um dos autores do artigo, acrescentando que este dado pode ser “fundamental para se explicarem os ataques de pânico”.

Se se confirmarem estes resultados, os caminhos agora descobertos podem tornar-se alvos para tratamento de ataques de pânico, síndrome de stress pós-traumático e outros estados relacionados com a ansiedade.
Os estudos podem “ajudar a esclarecer como uma resposta normal pode levar a um distúrbio; podem também ajudar a promover o desenvolvimento de mecanismos de tratamento”, diz Daniel Tranel, professor de neurologia e psicologia na mesma universidade e co-autor do estudo.

Décadas de investigação têm mostrado que as amígdalas desempenham um papel central na criação do medo em resposta a ameaças externas. A equipa trabalhou durante anos com SM e relatou a sua ausência de medo quando confrontada com cobras, aranhas, filmes de terror, casas assombradas e mesmo durante um incidente em que lhe foi apontada uma faca. Mas a sua resposta a ameaças internas não tinha ainda sido explorada.
A equipa decidiu, assim, testar SM bem como outras duas pessoas com as amígdalas danificadas com uma ameaça interna. Pediram às três participantes para inalarem um gás que continha 35 por cento de dióxido de carbono (um método usual quando se quer induzir um curto estado do pânico, entre 30 segundos a um minuto. Todas elas se engasgaram com o ar, tiveram o batimento cardíaco aumentado, ficaram angustiadas e tentaram tirar a máscara. Depois, afirmaram que as sensações tinham sido completamente novas, descrevendo-as como sendo de “pânico”.

Wemmie tem estudado como os ratos respondem ao medo, mostrando já que a amígdala cerebelosa pode detectar directamente o dióxido de carbono para produzirem medo. Pensou que ia encontrar o mesmo padrão nos humanos.“Ficamos muito surpreendidos quando tiveram o ataque”, afirma.
Dos 12 voluntários saudáveis que entraram na experiência, apenas três entraram em pânico, uma taxa semelhante à de adultos sem histórico deste tipo de ataques. Nenhum dos três pacientes com danos nas amígdalas tem um historial de ataques de pânico. A taxa mais elevada de dióxido de carbono induzida sugere que uma amígdala intacta pode normalmente inibir o pânico.

Os participantes com das amígdalas danificadas não demonstraram medo nos momentos que antecederam o teste, ao contrários dos saudáveis, que começaram a suar e aumentaram os batimentos cardíacos. Este facto é consistente com a noção de que a amígdala detecta o perigo no ambiente externo e fisiologicamente prepara o organismo para se confrontar com a ameaça.

A informação do mundo exterior é filtrada através da amígdala com a finalidade de gerar medo”, diz Feinstein. Sinais de medo provenientes do interior do corpo podem provocar uma forma de medo muito primária, mesmo na ausência de uma amígdala funcional.



domingo, fevereiro 03, 2013

Frase transformativa do dia



You can only be free of something when you fully understand it.



Muitas vezes existe a percepção de que se sabe qual é o problema mas que, ainda assim, não se consegue mudá-lo. Outras vezes pensamos que compreendemos algo mas não o conseguimos explicar. Einstein diria e disse: 

“If you can't explain it to a six year old, you don't understand it yourself.” 

Às vezes compreender realmente algo não é fácil e não é tanto uma questão qualitativa mas antes quantitativa (quão bem e de forma simples e precisa é que eu compreendo o que se passa?)...

terça-feira, janeiro 29, 2013

UMA SOCIEDADE ANTI-SOCIAL?




20h30m, noite fria e chuvosa a marcar o final de mais um dia de trabalho. Estão já três pessoas na paragem do autocarro. Um jovem de telemóvel na mão, uma mulher com grandes auscultadores abanando a cabeça e outra mulher segurando uma pasta. A chuva intensifica-se. A mulher dos auscultadores abriga-se na entrada de um prédio, o jovem resguarda-se na entrada de uma garagem. Pouco depois, a segunda mulher junta-se à primeira naquele pequeno espaço. Esboço um sorriso, imaginando que dentro de poucos segundos terá início a habitual conversa de circunstância entre as duas mulheres. “Que tempo este, nunca mais pára de chover”. Passados alguns minutos, a mulher dos auscultadores continua a olhar no infinito, abanando a cabeça ao ritmo da música, a outra mulher continua de olhos no chão. À esquerda, o jovem de lapelas levantadas e gola a proteger o rosto do frio, continua a olhar para o ecran do telemóvel e a percorrê-lo com o indicador da mão que não tem luva. Passados mais alguns minutos, chega o autocarro e dirigimo-nos para o mesmo, respeitando a vez de entrada. Cada um segue para o seu lugar, o jovem continuando a ver o telemóvel, parecendo não dar conta de mais nada à sua volta, a mulher continuando a ouvir a sua música, parecendo alheada do resto, a segunda mulher mantendo olhar vazio.

Olho pela janela, observando as pessoas na rua a correrem para fugir da chuva. Num outro qualquer canto há mais pessoas que não fazem conversa de circunstância. Pergunto-me o que aconteceu à típica troca de palavras banais em momentos como este, à simpatia instantânea e à trivialidade da partilha de um espaço e de um tempo. “Confortamo-nos com histórias laterais, evitamos o toque, há risco de contágio” diz Margarida Vale de Gato num dos seus poemas. Estamos cada vez mais distantes, receamos a proximidade e olhamos desconfiados se alguém nos sorri ou dirige alguma palavra. Escondemo-nos por trás de redes supostamente sociais e de tecnologias que, apesar de nos aproximarem dos outros, parecem distanciar-nos cada vez mais do verdadeiro contacto.

Também a propósito da chuva, multiplicam-se as notícias sobre como é viver sem eletricidade nas localidades mais atingidas pelo mau tempo. Repetem-se os testemunhos em que os adultos referem que às 21h se vão deitar porque não têm nada para fazer e as crianças se mostram bastante aborrecidas por não poderem brincar. Apesar dos óbvios constrangimentos associados à falta de luz, quando estamos tão habituados a este recurso, imagino o que faria nessa situação e ocorrem-me uma série de atividades que ajudariam a animar a família, a quebrar a rotina e, quem sabe, a criar novos hábitos de partilha. Tanto que se pode fazer à luz das velas! Falar das aventuras do dia, fazer sombras com as mãos, jogar pictionary, trivial ou peixinho, fazer mímica, contar anedotas e adivinhas, contar histórias… afinal não são precisos livros para contar histórias, basta imaginação!

Preocupa-me esta falta de comunicação, de fantasia, de empatia e de simpatia que nos consome cada vez mais. Preocupa-me este distanciamento cada vez maior que nos separa. Preocupa-me que as crianças não sejam capazes de se entreter sozinhas e sem botões. Preocupa-me que os adultos não sejam capazes de se aproximar e comunicar sem ser por likes, shares, forwards e LOLs… Preocupa-me o futuro desta sociedade de hoje que não sabe relacionar-se.

domingo, janeiro 27, 2013

Aprender e viver

Em tempos incertos como os que vivemos, mais importante se torna investirmos em nós próprios. Em nós próprios como pessoas e profissionais.

Longe vão os tempos em que se tirava um curso para o resto da vida. Agora, tem de se trabalhar constantemente aspectos da personalidade, por um lado, e competências profissionais, por outro. As fronteiras são cada vez mais ténues. É o caso das línguas, de cuja aprendizagem qualquer profissão beneficia. E o que não é imediatamente utilizado pode servir mais tarde.

Polivalência, flexibilidade, capacidade de adaptação, facilidade de comunicação, são as palavras-chave, tanto no mercado de trabalho como na vida. Como é que se aprendem? Com treino e formação. A psicoterapia é, neste aspecto, uma ferramenta essencial. Muitas pessoas têm ainda a ideia de que a psicoterapia é para "quem tem problemas". Certamente que é, mas vai muito para além disso. É um poderoso instrumento de conhecimento de nós próprios e dos outros, cujo valor ao longo da vida é inestimável.

Muitas pessoas não sabem que é na relação entre cliente e terapeuta que se vão adquirindo e melhorando essas tais capacidades que irão ser essenciais no dia a dia. Comunicação, empatia, resiliência, tolerância à frustração, auto-motivação, são noções que parecem vagas mas que têm a ver com TUDO. Na vida e na profissão.

sexta-feira, janeiro 25, 2013

HIPERSEXUALIDADE: uma nova patologia?


Investigadores americanos estão a tentar definir critérios para o isolamento, caracterização e diagnóstico para uma nova patologia: hiper-sexualidade. A problemática em si não é nova, antes pelo contrário. Na prática, é mais uma perturbação da dependência – neste caso tendo por objeto a atividade sexual – que estes cientistas pretendem operacionalizar de forma mais sistemática. Para tal propõem uma lista de sintomas “típicos” que se baseiam em 3 principais eixos:

1.      Durante um periodo de pelo menos 6 meses, experieciar fantasias sexuais recorrentes e intensas, de pulsões e de comportamentos sexuais em associação com, pelo menos 4 a 5 dos seguintes critérios:

a.       Demasiado tempo consagrado a estas fantasias e toda uma organização e planificação de comportamentos sexuais,
b.      Um envolvimento repetitivo nestas fantasias sexuais como resposta a perturbações do humor como ansiedade, depressão, aborrecimento e irritabilidade, ou em resposta a situações stressantes da vida,
c.       Esforços repetidos mas infrutuosos para controlar ou reduzir de maneira significativa estas fantasias, pulsões e comportamentos sexuais,
d.      Um envolvimento netses comportamentos sexuais sem ter em conta o risco das consequências físicas ou afetivas para si mesmo e para os outros.

2.      Um diagnóstico clínico de perturbação significativa do funcionamento pessoal, social ou profissional associado a estas fantasias, pulsões e comportamentos sexuais.
3.      Estas fantasias, pulsões e comportamentos não estão associados a efeitos fisiológicos diretos de substâncias externas.

1º Simpósio Luso-Brasileiro sobre o Pensamento de Donald Winicott


quarta-feira, janeiro 23, 2013

Um excelente iniciativa da Câmara de Lisboa


No seguimento da aprovação da Carta com identificação e delimitação dos Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa (BIP/ZIP) e do sucesso da realização das edições do Programa BIP/ZIP em 2011 e 2012, tenho o prazer de anunciar o arranque da edição de 2013 deste Programa. É neste sentido que a/o convido a estar presente no Workshop de Divulgação e Capacitação, que se irá realizar no próximo dia 26 de Janeiro, Sábado, entre as 14h00 e as 19h00, no Auditório dos Serviços Sociais da CML, tendo como objetivo a apresentação, aos futuros parceiros, de toda a informação necessária para poderem apresentar as suas candidaturas a esta terceira edição do Programa BIP/ZIP.

Informamos que Orçamento Municipal para 2013 prevê uma verba de um milhão e meio de euros (1.500.000 €)  para financiar projetos da edição de 2013, apresentados por parcerias locais tendo em vista a melhoria dos bairros e zonas incluídos na Carta dos BIP/ZIP.

Solicita-se a confirmação da sua presença que poderá ser efetuada através do email bip.zip@cm-lisboa.pt, devendo para o efeito ser indicado a instituição proveniente bem como o número, nome e contacto preferencial dos participantes. Caso necessite de mais informação ou esclarecimento poderá contactar o Grupo de Trabalho dos BIP/ZIP através do seguinte número 21 322 7360 (das 10h00 às 17h00).

Dado o número limitado de lugares do auditório dos Serviços Sociais da CML, aguardamos que confirme a sua presença tão cedo quanto possível.

No sentido de alargamento da expressão local deste programa, agradecemos a divulgação por eventuais parceiros que entenda poderem vir a ser enquadrados nesta iniciativa. 

A Vereadora

Helena Roseta



segunda-feira, janeiro 21, 2013

O MAL DA PSICOTERAPIA


Há tempos li um artigo numa revista que falava dos malefícios da psicoterapia e de como “o psicólogo” quase estragara a vida a algumas pessoas…  E não são raros alguns comentários que, direta ou indiretamente, ecoam esta ideia.

Ao contrário do que pode ser a opinião de algumas pessoas, o psicoterapeuta não tem a função de dar palmadinhas nas costas do paciente. O trabalho terapêutico passa pelo levantamento da história da pessoa e pela compreensão das suas vivências nos diferentes contextos de relação com o outro e consigo próprio. Este trabalho aprofundado levanta o pó muitas vezes sedimentado ao longo de anos através de mecanismos de defesa. Um pó que, apesar de aparentemente inócuo e varrido pela idade, ocupa demasiado espaço na vida interior de cada um e impede o encontro com recursos emocionais mais limpos e mais eficazes. Por isso, muitas vezes os pacientes trazem-nos uma determinada queixa e esta é abordada através de outras vivências que aparentemente nada têm a ver com a preocupação atual.

Quando utilizamos o computador, organizamos os ficheiros por pastas: fotografias, documentos, músicas, e não podemos guardá-los todos ao longo da nossa utilização. Temos de apagar alguns itens, enviando-os para o recycle bin, que depois deve ser esvaziado. De tempos a tempos, temos ainda de fazer correr o anti-vírus e de eliminar ficheiros temporários e cookies. Caso contrário, o sistema fica demasiado pesado e lento, vulnerável a ameaças, e deixa de funcionar eficazmente.

Passa pelo nosso trabalho, levar o indivíduo a perceber o modo como o pó ou o lixo do passado interfere com o seu funcionamento atual. Este é, muitas vezes, um trabalho doloroso. De certa forma, faz parte da nossa cultura, não mostrar os sentimentos, aprender a disfarçar, fazer de conta que não acontece, mascarar a tristeza e fingir que a mesma não existe. É uma espécie de “Vou andando, obrigado”, resposta sempre pronta quando alguém pergunta como estamos. Em psicoterapia não pretendemos que o paciente vá andando, muito menos em cima de terrenos sinuosos, areias movediças e buracos escondidos.

Muitas vezes é preciso destruir, ou pelo menos sacudir, para construir alicerces mais sólidos e estáveis. E este processo implica entrar em contacto com afetos nem sempre fáceis de gerir (porque ao contrário do computador, não se podem eliminar definitivamente as memórias), a necessidade de deprimir e ir ao fundo, para depois submergir com maior fôlego. E é aqui que as coisas se complicam com alguma frequência. O paciente diz-nos “eu vim aqui para ficar melhor e parece que estou pior”. Por vezes são até as pessoas que rodeiam o paciente que reforçam esta ideia, porque passam a existir respostas que até aqui não se viam (maior revolta, maior expressão da tristeza, etc). O pior é a confrontação com os fantasmas e os sentimentos adormecidos. O melhor é que esta fase não vai durar para sempre. 

É uma espécie de reciclagem, o tratamento do lixo emocional, para transformar em novo e melhor, mais adaptativo. Há histórias mais dolorosas que outras e processos mais demorados que outros. E algumas vezes a realidade é tão dura e os recursos ainda tão frágeis que, no meio desta viagem, o paciente prefere acreditar que é a psicoterapia que lhe faz mal e sai uma paragem antes.

sexta-feira, janeiro 18, 2013

Entrevista online de António Coimbra de Matos (2010)


- António Coimbra de Matos, psicanalista:

"Na sociedade atual a vergonha substituiu a culpa"


Foi um dos primeiros terapeutas a fazer análise em Portugal. Aos 80 anos, continua a trabalhar dez horas por dia. António Coimbra de Matos, decano dos psicanalistas, é um otimista nato.

Entrevista de Ana Soromenho (www.expresso.pt)

8:33 Terça feira, 3 de agosto de 2010


O ponto de partida da conversa era o prazer. E o nosso interlocutor um homem experiente, doutorado nos mistérios do inconsciente, nas emoções e nas contradições de que é composta a fibra humana. Mas António Coimbra de Matos, consagrado decano dos psicanalistas portugueses, não gosta de respostas taxativas: "Isto é assim, aquilo é assado...". Deixa sempre uma margem para a dúvida, desvaloriza: estamos melhor numa sociedade que celebra o prazer do que naquela que vivia na culpa. Diz-se um pragmático. Mas é sobretudo um otimista. Um psicanalista generoso que acredita nas pessoas e no que elas sabem sobre si.
Aos 80 anos continua a formar e a ouvir. No seu amplo consultório - um terceiro andar de um prédio em Lisboa - em frente à secretaria atafulhada de papéis há um cadeirão desenhado por Charles Eames. É aqui que se senta. Ao lado, a célebre chaise longue de Le Corbusier. É aqui que deita os seus pacientes. "O colchão vermelho fui eu que o mandei fazer", diz, apontando para o divã. "Tive um paciente bastante largo que não ficava nada confortável aqui deitado. Agora, ficou melhor. Quer experimentar?"

Nas sociedades atuais vivemos obcecados pela ideia do prazer? Penso que não. É uma ideia que se vende muito mas que não corresponde à realidade.

Quando iniciou a sua vida profissional, nos anos 60, a palavra prazer não fazia parte do nosso léxico como hoje faz. Deste então ganhou uma imensa proporção. Nessa altura, associava-se quase exclusivamente ao prazer sexual. Hoje o prazer de que as pessoas tanto falam tem sobretudo que ver com usufruto.

O que a revolução sexual veio reivindicar foi precisamente o prazer no sexo. Passou a ser um tema. As pessoas passaram a falar e a viver a sexualidade com maior à vontade. Isto é real. Hoje, mesmo nas patologias, raramente aparecem doentes por causa de problemas relacionados com sexualidade - e antigamente não era assim. Mas devo dizer que, apesar de haver um certo exagero nessa necessidade de procura de prazer, acho que em relação ao tempo em que comecei a exercer é uma reação bastante benéfica.

Porquê? Era bem pior quando procurávamos o sacrifício e tudo girava em torno da culpa. A grande transformação nas sociedades ocidentais foi a de termos passado de uma sociedade dominada pela culpa para uma sociedade baseada no sucesso.

E como é que isso se traduz nas nossas vidas? Temos três emoções inibitórias: medo, culpa e vergonha. Sou ainda do tempo em que as depressões na adolescência tinham, quase sempre, origem na culpabilidade. Hoje as depressões estão associadas a questões que se relacionam com sucesso e competência. O que nos move agora é o êxito e o medo de falhar. Nas sociedades de sucesso, a vergonha substituiu a culpa.

Pode-se então dizer que o prazer também se associa ao êxito na medida em que é uma recompensa? É um pouco diferente. Na realização do êxito há uma determinada fasquia que obriga a sermos bons. Neste sentido há uma grande desvalorização do prazer. Quando dou uma conferência não me perguntam se tive prazer em realizá-la. Perguntam-me se tive êxito. Mas ainda a propósito destas questões relacionadas com as sociedades de consumo e do prazer: penso que hoje há uma tendência para a procura dos prazeres imediatos e uma certa dificuldade em acertar com o tempo de espera.

Tudo tem de ser 'aqui e agora'? A tal incapacidade de aguentar a frustração? Dificuldade de tolerar a frustração, talvez. Mas neste ponto, tenho uma opinião um pouco diferente da maior parte dos autores.

Qual é? Há toda uma teoria muito aceite que defende que é preciso introduzir no universo infantil a frustração, para que as crianças se habituem a tolerá-la. Não concordo. A frustração é sempre negativa, não se deve procurá-la. O que se deve introduzir é a capacidade de aumentar o tempo de espera. É uma nuance em relação à ideia de frustração, mas é uma nuance importante.

O que é a frustração? A maior parte das vezes confunde-se frustração com privação. Privação é ter sede e não ter água para 
beber, frustração é ter uma garrafa com água e não poder bebê-la. A frustração é muito mais traumática.

Mas quem nos diz que é preciso ter tolerância à frustração são os terapeutas. E a maioria pensa mesmo assim. Também dizem que é preciso estabelecer limites - e também não concordo. O necessário é ensinar que a realidade tem limites, o que é uma coisa diferente. Há um autor americano, que conheço pessoalmente e que aprecio, o Brazelton, que diz que o bebé precisa de amor e disciplina. Não estou nada de acordo com isso da disciplina. As crianças precisam de ter um ambiente disciplinado e organizado, o que não é exatamente o mesmo.

Quando se entra num processo de análise procuramos saber o que sentimos ou quem somos? A maioria das vezes o que aparece à superfície é o que se sente. Mas depois começam a surgir os problemas relacionados com as questões identitárias. Muitas vezes as coisas acontecem ao contrário. Há muitíssimos doentes com fortes sintomas de inferioridade que aparecem com supercompensações de superioridade. De uma maneira geral as pessoas exibem o que não têm ou pelo menos julgam que não têm.

Do ponto de vista da psicanálise o que é inato em nós? Há coisas genéticas e determinantes. Por exemplo, as questões do bem-estar e do prazer têm uma tradução neurológica no sistema cerebral. As pessoas mais ligadas ao prazer imediato funcionam mais no sistema límbico, que é uma parte do córtex mais antigo. As mais focadas na ideia do bem-estar e capacidade de espera, funcionam sobretudo no córtex frontal. A maioria dos nossos genes determina tendências que se desenvolvem, ou não, de acordo com o que se encontra no meio ambiente

O que é físico e emocional vai-se desenhando no nosso cérebro, estamos sempre em rede? Tudo está ligado e desenvolve-se nesta articulação. As hormonas determinam o nosso comportamento, mas o nosso comportamento também determina a taxa hormonal que vamos acumulando. Por exemplo, por volta do terceiro mês de uma criança do sexo masculino processa-se um aumento grande de testosterona que determina aquilo a que chamamos o cérebro sexual. Se nesta fase, o bebé macho for tratado como uma rapariga, a taxa de testosterona baixa.

Um século depois de Freud, qual é o modelo de psicanálise que hoje se pratica? Varia muito. A maioria dos psicanalistas continua a praticar o modelo clássico, são bastante ortodoxos. Mas há um grupo mais contemporâneo, e bastante mais pequeno, que pensa a psicanálise de outra maneira e ao qual eu pertenço.

E como a pensa? Como em qualquer ciência, tudo deve ser baseado em provas. Portanto as teorias que existem são provisórias ou falsas. Como em qualquer mistério científico, o que procuramos são as causas e encontrar solução para essas causas. A base clínica é a observação.

Mas a matéria que compõe o nosso sentir e o nosso pensar não pode ser observada em laboratório. Pois não.
Com que ferramentas trabalha? A realidade é o próprio doente, trabalho com aquilo que sente. Na psicanálise clássica, avançava-se com toda uma teoria que comprovasse os sintomas. Agora, há um novo paradigma, em que se entende que o processo de psicanálise é um processo que induz mudança. Este movimento tem origem num grupo de psicanalistas de Boston, com o qual eu me identifico. Baseia-se na ideia de que um indivíduo, perante as vivências que teve - não só na infância, mas também na adolescência -, adquiriu uma determinada personalidade ou um determinado estilo de relação menos saudável e menos produtivo para si. O processo de análise consiste em ir interpretando este estilo no sentido de resolver e de estabelecer uma relação mais saudável, de forma a que possa traduzir o que se passa no consultório para a sua vida real.

Como é que decorre o processo terapêutico? É o mesmo de sempre. Decorre a partir da conversa entre analista e paciente. A forma de conduzir é que é diferente. Em vez de termos na cabeça uma teoria que aplicamos, procuramos observar o que se passa com aquele paciente, vamos interpretando e construindo hipóteses em conjunto. Para mim, a questão fundamental é que uma pessoa seja capaz de se autoanalisar e que acabe a análise com uma capacidade de reflexão sobre si próprio maior do que a tinha.

Conseguir devolver essas ferramentas é o maior sucesso de uma terapia. E se há um fracasso? Como lida com os seus insucessos? Mal, como todos nós...
Com culpa? (Risos) É sempre desagradável. O pior que pode acontecer, e aconteceu-me um pouco marginalmente, é haver um paciente que se suicida. Tive um paciente com um diagnóstico de esquizofrenia. Tratei este homem durante 15 anos. Ao princípio uma vez por semana, no final já só o via de seis em seis meses. Dei-lhe alta. Precocemente. Passado um ano suicidou-se.

Esquizofrenia e bipolaridade não são doenças irreversíveis? Podem-se curar sem medicar? Depende. São doenças mais graves. Mas a esquizofrenia é um espectro. Há casos mais simples e capazes de ser tratados com relativo sucesso. É preciso que se apanhem muito cedo. Cerca de 75% dos sintomas de esquizofrenia começam na adolescência.

Como se revelam? Num diagnóstico de esgotamento. O indivíduo que deixou de estudar porque a namorada o deixou... Mas se for tratado nessa altura a maior parte das vezes passa a sua vida sem ter nada.

E a bipolaridade, de que agora tanto se fala? É um exagero de diagnóstico. Há naturezas mais alegres ou mais tristes e agora qualquer pessoa é logo considerada bipolar. Aqui há tempos estava numa reunião de apresentação de médicos e estava a contar umas histórias e umas anedotas e alguém me dizia que eu estava sempre bem disposto. Respondi: "Olhe, tive muita sorte porque na minha infância não havia pedopsiquiatras. Senão teriam diagnosticado uma síndroma de deficiência de atenção ou hiperatividade. Em adulto jovem, já fui eu que não deixei o psiquiatra ver-me. Senão ter-me-ia diagnosticado uma coisa bipolar e hoje estava completamente lixado". (Risos). Estava a caricaturar, mas é mais ou menos assim.

Acontece-lhe não ter respostas? Há tempos, num congresso, perguntavam-me se tinha dúvidas. Respondi que quando percebo cinco por cento do que se passa já fico muito contente. Há uns anos um paciente, que por acaso era psicólogo, numa sessão em que estive particularmente calado disse-me: "Hoje está muito calado, deve ter pensado uma série de coisas sobre mim e não disse nada. Porque o doutor sabe mais de mim do que eu". Respondi-lhe: "Tem a certeza de que é psicólogo? Acha que alguém pode saber mais sobre si do que você próprio?". Chegou-se a este absurdo.

Recorre-se em excesso às terapias? E aos médicos também.

É um pânico com a ideia do sofrimento? Muitas vezes é. Somos o país da União Europeia que mais consome psicotrópicos. Os médicos e os psiquiatras receitam a torto e a direito.

Receita? Raramente.

Os dados que temos sobre a depressão são alarmantes. Revelam-nos que será a grande doença do século XXI. É mesmo assim? É.

O que é que isto nos diz sobre a forma como vivemos? Várias coisas. Mas também é preciso dizer que esses dados aparecem porque hoje fazemos diagnósticos mais corretos e mais precisos. É verdade que muitas vezes também se abusa, há um excesso de diagnóstico e um excesso de tratamento. Em relação à sua pergunta, posso dizer que nas sociedades atuais - isto é duvidoso mas mais consensual - um dos fatores de depressão tem que ver com o facto de as relações entre pais e filhos se terem tornado mais frágeis, devido ao modo como vivemos. Outro aspeto é o isolamento. Ao nível dos laços sociais, e talvez esses sejam os mais importantes, as pessoas são menos solidárias e vivem em excessiva competição. Não mata mas mói. As pessoas sentem-se menos amadas e mais desamparadas.

Desamparo, outra expressão muito usada pelos terapeutas. Em que difere de abandono? Desamparo é abandono físico. O mais grave é o abandono afetivo. "A minha mãe está presente, mas está a fazer o doutoramento, tem um novo amigo, etc., e não me liga a ponta de um corno...". O abandono é a grande causa de depressão, e morde muito mais do que o desamparo.

Do ponto de vista da psicologia, a infância continua a ser o território onde tudo acontece? A saúde mental constrói-se na infância. Os fatores posteriores são menos importantes. Uma criança teve perdas de afetos na infância, fez uma depressão infantil que pode ter passado despercebida, estará mais fragilizada na idade adulta e poderá deprimir facilmente. Se teve uma infância sólida aguentará bem as perdas afetivas.

Há qualquer coisa de assustador nessa ideia de que os alicerces se constroem todos ali e se corre mal é irremediável. Não é irremediável. Há um outro período importante, ao qual durante muito tempo não se deu grande significado, mas ao qual hoje já damos, que é a adolescência. Costumo dizer que na adolescência tudo se pode perder, mas tudo se pode ganhar. A maior parte das vezes, com tratamentos curtos, ou mesmo sem tratamento, consegue-se dar um salto.

Quando começou a interessar-se pela psicanálise? É difícil responder-lhe. Quando fiz o curso de medicina todos os professores achavam que tinha muito jeito manual, o que é verdade, e encaminharam-me para a cirurgia. Ainda fiz cirurgia geral, depois cardíaca, mas não me interessou muito. Eu tinha outras coisas. Durante o liceu comecei a escrever, gostava muito de filosofia, lia muito... Tudo isto levou-me para a psiquiatra. Mas a minha escolha também teve que ver com outro fator. Na altura abriu um lugar para psiquiatria no hospital do Porto e eu queria ganhar um salário para poder casar.

Uma opção pragmática? Exatamente. Nesse lado saio ao meu pai.

A imagem inicial que tinha sobre a sua família alterou-se muito depois do seu processo de análise? Tornou-se mais clara. Sobretudo em relação à minha mãe, que era a personalidade mais complicada. Com ela, tinha uma certa raiva. Era profundamente beata, e tivemos grandes conflitos por causa disso. Mas, simultaneamente, também era muito histérica e portanto havia uma sexualidade sempre presente. Quando fiz a minha análise percebi que a história de infância dela tinha sido complicada e que naquela cabeça havia uma grande dose de loucura. Isso levou-me a compreendê-la melhor. É muito importante saber aceitar. Digo muitas vezes aos analistas que formo que o pior defeito que podem ter é personalidades narcísicas e estar mais concentrados em si do que nos outros.

É fundamental haver generosidade sobre o outro? É o mais importante.

A si nada o choca? Aparentemente não. Mas há coisas que tenho muita dificuldade em perceber. Uma das dificuldades de tratar psicóticos é essa. Um esquizofrénico tem uma perturbação do pensamento bastante diferente da comum das pessoas.

O que aprendeu sobre a condição humana? Da minha experiência podia dizer que há uma coisa muito desagradável sobre a condição humana: somos uns animais muito agressivos. Mas também penso que somos animais extremamente solidários. Se formos capazes de fazer sobressair essa parte nas pessoas, conseguimos fazer coisas úteis uns pelos outros. A maior parte das vezes essa agressividade não é nem inata nem espontânea. É reativa e revela muita dor e sofrimento. Todas as pessoas têm lados positivos e muitas vezes não o sabem encontrar e nós também temos dificuldade em os desenvolver. É disso que temos de ir à procura. Na técnica psicanalítica que pratico e que ensino é que nunca ando atrás do que as pessoas têm de negativo. Procuro o que as pessoas têm de mais saudável.

Qual é a palavra mais adequada para aquilo que faz? Os médicos costumam dizer que não tratam doenças, tratam doentes. Digo que nós, os psicanalistas, vamos mais longe, conversamos com as pessoas. Ajudamo-las a conhecerem-se um pouco melhor para encontrarem o seu caminho.

Publicado na Revista Única do Expresso de 31 de Julho de 2010