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http://www.publico.pt/temas/jornal/amar-e-natural-na-especie-humana-27266868?b332333
ANABELA MOTA RIBEIRO (TEXTO) NUNO FERREIRA SANTOS
(FOTOGRAFIA)
Um pai é um pai, mesmo que não seja o tipo de pai que leva os filhos à
escola. Uma filha é sempre objecto do cuidado de um pai, por mais emancipada e
combativa que seja a sua atitude. Esta é a relação de um pai e de uma filha que
não têm medo nem vergonha de dizer que se amam
Carlos Amaral Dias (1946) não soube ser o pai que vem nos livros. Era o pai
que se portava pior do que os filhos e que se recusava a olhar para eles com
óculos de psicanalista. Joana Amaral Dias (1975), a filha, discorda. O pai e a
mãe, a psicanalista Teresa Nunes Vicente, liam o mundo - e os filhos - de
acordo com Bion, Melanie Klein, Winnicott, Freud... Não resistiam.
Joana discorda muitas vezes. E di-lo sempre. Tem à-vontade para dizer tudo.
O máximo que pode acontecer é discutirem um com o outro. Não se zangam. Estão
mais próximos desde há um ano, quando Carlos teve um AVC e passou meses no
hospital.
A entrevista foi na casa de Carlos e combinada com Joana. Joana e eu
entrámos ao mesmo tempo no prédio, e connosco subiu Carlota, a irmã mais nova
de Joana, de dez anos. Talvez por se sentir excluída da entrevista, Carlota
fazia-se presente tocando flauta. Tocou um bom bocado. O pai estava a terminar
uma sessão no consultório que fica dentro de casa, duas ou três salas depois
daquela onde nos encontrávamos. Essa sala era a biblioteca.
Em duas horas tentou-se perceber que elementos foram marcantes na sua
formação individual e na sua dinâmica relacional. Joana oscilou entre o registo
combativo que se lhe conhece da televisão e da política e um cuidado terno com
o pai. Carlos está ainda sob o maravilhamento dos que descobrem a beleza de um
dia de sol depois de conhecer a linha fina que separa a vida da morte. Mas
mantém a agudeza de um psicanalista que repete: somos todos filhos de um bando de
assassinos!
Estou a falar com dois psis, pai e
filha. Para compreender alguma coisa de quem são e da vossa relação, tenho de
começar pelo complexo de Édipo da Joana?
Joana - Não tem nada a ver com ser psi. É assim com psis, jardineiros,
astronautas.
Carlos - Acho que sim. O problema é quando as pessoas não organizam esse
nível de contacto com a figura feminina ou masculina, não conseguem perceber o
que há de sexual na mãe ou no pai. Uma perda dessas tem consequências muito
grandes na vida psíquica de uma pessoa.
O Édipo forma-se à volta dos seis anos.
Como é que olhava para o seu pai nessa altura? Ele não era o "Grande
Amaral", como hoje lhe chama. Ou era?
Joana - Era quase. Olhávamos [o meu irmão Henrique e eu] com admiração,
algum respeitinho (o respeitinho da noite, de quem chega a casa à noite depois
de passar o dia a trabalhar), embora houvesse muitos momentos de descontracção.
Uma das nossas brincadeiras favoritas era o "Bobby vai ao
psicanalista". Lembras-te disso?
Carlos - Perfeitamente.
Joana - Sempre tivemos cães em casa. A brincadeira consistia nisto: um de
nós fazia de cão, oBobby, e o outro era o psicanalista. Às vezes, o
Henrique era o cão e eu a psicanalista, outras vezes o contrário. O que fazia
de cão deitava-se de patas para o ar no divã do Amaral - quando o Amaral não
estava, não é? Não sei se já reparou: os cães, quando estão a dormir, muitas
vezes têm pesadelos e ganem, ladram, mexem-se. O Bobby só
falava língua canídea. Mas o psicanalista, como qualquer bom psicanalista,
mesmo que o cão só falasse canídeo, interpretava... "Estou a ver que se
sente muito mal, que lhe roubaram o osso..." E o outro: caimmmmm. [riso]
Tínhamos ataques de riso. Fazíamos interpretações mirabolantes. O psicanalista
interpretava o complexo de Édipo do cão.
De onde é que vinha esse palavreado?
Talvez seja bom dizer que a sua mulher de então, e mãe da Joana, é também
psicanalista, e recebia os pacientes, como o Carlos, em casa.
Joana - Da mesa. Esta brincadeira era no consultório do meu pai, não era no
da minha mãe. A minha mãe era mais territorial.
Carlos - O que já seria susceptível de uma interpretação psicanalítica...
Joana - E de uma contra-interpretação psicanalítica. E nunca mais saímos
daqui.
Do que é que estão a falar?
Joana - Do espaço reservado da mãe por oposição ao espaço mais acessível do
pai.
Carlos - Podemos dizer que se falavam duas línguas lá em casa. Português e
psicanalês.
O que é falar psicanalês? E o que é que
se pode dizer à mesa atendendo ao dever de reserva absoluta para com o
paciente?
Carlos - Nem eu nem a Teresa [Nunes Vicente] nos calávamos quando nos vinha
alguma coisa à cabeça a propósito de um filme, a propósito deles. Um episódio
com o meu filho: uma vez começou a desaparecer dinheiro de uma caixa de trocos
que havia na despensa e percebeu-se que era o Henrique [que tirava]. Era muito
miúdo, tinha nem nove anos. Perguntei-lhe: "Porque é que fizeste
isso?" Disse-me assim, na cara: "Uma vez estavas a falar com não sei
quem e disseste que as crianças, quando roubam, é porque não estão a receber o
amor que devem [ter] dos pais." Deixou-me estupefacto.
Como é que olhava para o "Bobby vai
ao psicanalista"?
Carlos - É muito bom que os nossos filhos possam brincar a propósito da
nossa profissão. Falando psicanalês, outra vez: quando somos pequeninos e
brincamos que estamos a conduzir um carro ou a cozinhar, estamos a imitar os
adultos. A brincadeira da criança tem essa função de identificação à figura do
adulto. Resultou muito bem: os meus filhos têm todos a compreensão do que é que
as coisas podem ser para além daquilo que mostram.
Como é que a Joana começou a olhar para
o outro lado do espelho?
Joana - Acho que é uma coisa que se vai tecendo todos os dias. Marcou-me o
humor do meu pai, da ordem do absurdo, o significado mutante das palavras. Um
sentido de humor surrealista aliado a uma grande liberdade, que tive no meu
crescimento, mais do que o meu irmão, e que resultou em estar muitas vezes do
outro lado do espelho, ver as coisas de um modo escaganifobético. Essa abertura
mental foi o que mais marcou. O meu pai acha que o que nos marcou mais foi a
música, as idas ao teatro, o ter o Shakespeare ao lado...
Carlos - Como é que podes passar por cima disso? O teu irmão teve uma filha
a quem chamou Bárbara por causa da canção do Chico Buarque, por causa das
tardes, em miúdo, em que ouvia Chico Buarque comigo.
Joana - Obviamente tive uma educação privilegiada. Mas há muitas pessoas
que têm acesso a essa educação privilegiada. O que foi uma marca de água
distintiva não foi tanto isso. Foi esta grande liberdade de pensar.
Quando é que sentiu que era mais
importante do que todos os livros, todos os filmes, todas as exposições?
Pergunto quando é que teve o sentimento de que era escolhida pelos seus pais -
esse sentimento tão precioso -, de que era o centro das suas vidas.
Joana - Não sei se alguma vez senti isso..., e não vejo isso como sendo
mau. Quando vim ao mundo, já lá estava o meu irmão, que é 15 meses mais velho
do que eu. Nasci para partilhar uns pais, um espaço. Não quer dizer que me
tenha sentido preterida, mas o meu irmão era um miúdo bastante investido pelos meus
pais. Há um frase do [escritor britânico] Julian Barnes que diz tudo sobre
isso. Barnes está a descrever a relação com o irmão e com os pais; quando era
miúdo, perguntavam ao irmão: "Que é que queres ser quando fores
grande?"; o irmão respondia: "Quero ser especialista no império
britânico." As pessoas ficavam impressionadas com o catraio. O Julian
Barnes acrescentou: "Eu quero ser especialista em tudo o resto." Foi
mais ou menos isto que aconteceu [comigo]. Havia um irmão mais velho que queria
ser especialista no império britânico.
Ficou com tudo o resto. A política, a
Psicologia, a comunicação social... O seu percurso não foi nada o de
especialização num tema. Carlos, deve estar sempre a ouvir dos pacientes:
"Eu não fui essencial na vida dos meus pais. O meu irmão é que era."
Joana - Não foi isso que eu disse. O meu irmão e eu temos personalidades
diferentes. Não era bem não ser essencial para os meus pais... Eu usava a
imensa liberdade de não ter de ser especialista no império britânico.
Carlos - Não temos a mesma visão sobre esta questão. Tu foste de facto
especialista em tudo o resto. Sempre deixei as minhas mulheres serem os
polícias. Eu tinha de fazer um esforço para ser um pai com as funções que se
atribuem aos pais, para ser um pai como vem nos livros.
Como é o pai que vem nos livros?
Carlos - Esses pais... Nunca me revi. Revia-me muito mais no Conde de
Lautréamont [poeta de origem uruguaia], que diz: "Vim ao mundo para
espalhar o terror entre as famílias." [riso] Essa é a minha tarefa. A
família é uma instituição horrível. Conservadora no pior sentido do termo.
Herdamos dos nossos pais ou transmitimos aos nossos filhos os nossos genes, os
nossos gostos, os gestos. Dou-me conta de que estou a cruzar as pernas como o
meu pai... Quer coisa mais conservadora do que esta? Romper com isto é difícil.
A minha profissão tem o sucesso que tem porque as famílias são feitas para
criar problemas. Há terapeutas familiares que pensam o contrário. Tenho
dificuldade em lidar com a ideia do Éden...
Ouvindo-o falar de Éden, ocorre-me o
título de um programa que teve na rádio: O Inferno Somos Nós. Faz medo pensar
no inferno e que ele não é uma coisa distante que está nos outros, como no
título do Sartre, mas que está em nós.
Carlos - Sim. Mas o verdadeiro inferno é uma pessoa deixar de viver e
deixar de viver quando se está a viver; ou seja, perder a sua individualidade,
pôr-se num sítio onde estão outros corpos, onde se deixou de ter um nome. Digo
isto pela experiência que tive. (Não sei se me explico. Quanto mais cresço,
mais confuso fico em relação a mim próprio.
Joana - Isso é bom.)
Falemos já do AVC que teve há um ano.
Para si, o mais perturbador foi perder a sua identidade, que resgatou de novo,
e paulatinamente, mais à frente?
Carlos - Sim. Passos fantásticos: ter recuperado o andar. Ter podido tomar
banho sozinho. Ver o sol. Quando se está meses dentro de um hospital só com luz
artificial, o sol é uma coisa especial. O que ficou no fim disto tudo: as
pessoas de quem gostava ganharam dentro de mim uma densidade própria, que já
tinham, mas que foi [sublinhada].
Como se ficasse mais nítido o contorno
dessas pessoas?
Carlos - Sim, sim. A Joana... não devia dizer isto, mas digo. Ela foi
fantástica.
Joana - Bem podes dizer. Homessa! [riso]
Carlos - Esteve ao pé de mim nesses momentos. O meu filho também esteve, a
minha [outra filha] também esteve. Mas a Joana não havia dia nenhum que não me
visse, que não estivesse comigo. É uma dimensão que já não consigo retirar
dela.
A de cuidadora?
Carlos - Cuidadora. Sobretudo, ela não teve vergonha nem medo nenhum de
mostrar que me amava.
Vergonha e medo: parecem palavras
difíceis de associar à outra, que é amor. Porque é que temos tanto medo e tanta
vergonha de mostrar que amamos?
Carlos - Então não temos? A nossa vida é passar a vida
a ter medo disso.
Ver o seu pai numa situação de
fragilidade tornou-o mortal aos seus olhos? Isso desencadeou em si uma mudança?
Joana - Não. O meu pai ficou surpreendido. Ainda está
um bocado surpreendido, porque fui todos os dias ao hospital, levar-lhe
papinha, papinha mesmo boa [riso].
Levou papinha, realmente?
Carlos - Sim, sim.
Joana - Não foi uma coisa que me tivesse surpreendido
em mim. Considero-me solidária e presente. Quando as pessoas precisam,
precisam. Fiquei muito preocupada, ainda estou preocupada. Como é que se lida
depois com as limitações, com as fragilidades? Como é que se reorganiza toda
uma vida, interna e externa?
Então a vossa relação não mudou.
Joana - Não sinto que tenha havido uma diferença
substancial na nossa relação. Passou a haver uma presença mais regular que era
necessária tendo em conta as circunstâncias.
Insisto: ele pareceu mortal e frágil aos
seus olhos? Até muito tarde, os nossos pais são figuras omnipotentes,
omniscientes, omnipresentes.
Joana - Não senti isso.
Quando é que pela primeira vez sentiu o
seu pai como uma pessoa frágil?
Joana - Sempre. Já o vi chorar várias vezes.
Isto é comum? Tenho ideia de que o pai
é, deve ser, o herói auto-suficiente, que nos salva, a quem recorremos. Um AVC
pode representar uma inversão de papéis.
Carlos - O que a Joana disse reflecte o que era a
nossa relação. Com ela e com os meus outros filhos. Às vezes estávamos semanas
sem trocar palavra. Eu ia a Coimbra todas as semanas, e não estava com o meu
filho, que vive em Coimbra. O amor para mim não tem essa [obrigação]. Dá-me uma
noção claustrofóbica aquilo a que se chama amor.
Claustrofóbica como?
Carlos - Talvez porque sou filho único. Os meus pais
faziam questão que me sentisse claustrofóbico.
Quando, depois da doença, voltou a si -
se posso usar esta expressão -, à sua identidade, pensou em si menino e na
relação com o seu pai?
Carlos - O meu pai era muito interventivo na minha
educação. O meu pai ia ver se eu faltava às explicações. Uma vez estavam dois
cachopos da minha idade a dar-me porrada, e eu a eles, e o meu pai estava a ver
de fora! Qual era a sensação que eu tinha? "Nem aqui este tipo me
larga." O tempo que o meu pai tinha para estar comigo era pouquíssimo, mas
o sentimento que transmitia era de uma pessoa que estava presente nas coisas.
O que é que ele fazia?
Carlos - Era enfermeiro.
O que é que ele queria que fosse? Esse
dirigismo era para quê?
Carlos - Para ser médico. E eu fiz-lhe a vontade.
Depois também fiz a vontade a mim próprio porque escapei da Medicina tanto
quanto podia escapar-me quando escolhi o que sou.
Era claro para si que queria ser
psicanalista?
Carlos - O curso foi muito difícil para mim. Se eu
tivesse sido cirurgião - o meu pai era dono de uma clínica -, tinha ido
trabalhar com ele. Fiz-lhe a vontade, mas não podia fazer-lhe toda a vontade,
não é? Senão ficava com ele a mandar em mim até ao resto da vida.
Quando é que se emancipou em relação ao
seu pai?
Carlos - Na minha educação, o meu pai é indissociável
da figura do meu tio Zé Henrique, que era muito mais novo e que era uma espécie
de irmão-pai. Vivia lá em casa e deu-me algumas luzes sobre por onde devia
caminhar na Literatura ou na Filosofia. Se fiquei parecido com alguém, foi com
o meu tio.
O seu filho chama-se Henrique.
Carlos - É. O meu avô chamava-se Henrique. É um nome
comum na família.
A Joana chamaria a um filho Henrique?
Joana - Acho que não. Tenho um filho e não se chama
Henrique.
Carlos - O nome dele é Vicente. É o nome da família da
minha mulher. [Nunes Vicente] A Joana fez uma coisa bem feita: foi buscar um
nome próprio para manter uma ligação simbólica à família.
Como é que olhava para o seu avô
paterno?
Joana - Os meus avós paternos, quando fui para a
primeira classe, mudaram-se para uma casa em frente à nossa. Era atravessar a
rua e mais quatro passos. Tinha uma relação próxima com eles. Não tenho a
experiência que o meu pai teve. O meu avô era meu avô, não era meu pai.
Brincávamos ao "Ai se te apanho". Tinha um cabelo farto, despenteava-se,
tirava a placa, andava atrás de nós pela casa a fazer de monstro. Para dizer
que connosco foi mais relaxado, menos austero.
Carlos - Eram as brincadeiras que o meu tio me fazia.
Voltemos aos seis anos e ao pai herói.
Joana - O meu pai era um pai maluco. Era irregular. A
maior parte das vezes queria fazer palhaçada. Tinha pouco tempo e queria
comportar-se como nós ou pior. Outras vezes queria armar-se em pai que põe
regras. Não era muito levado a sério e ficava chateado.
Carlos - Era a minha culpabilidade. "Tenho de
fazer de pai."
Joana - Nunca tinha pensado nisto, mas, assim como o
meu pai viu o tio Zé Henrique como uma figura entre irmão e pai, eu vi-o a ele
assim.
Sendo um psicanalista, estava sempre a
perguntar-se: "Como é que isto os vai marcar? O que é que dirão daqui a 30
anos quando estiverem deitados no divã do psicanalista?" Não o Bobby no
divã, mas eles mesmos. "O que é que dirão desta infância, deste pai?"
Carlos - Perguntava-me de uma maneira talvez mais
rebuscada do que outros pais: "Estou a ser um bom pai?" Não deixava
de me preocupar com o tipo de influência que tinha nos meus filhos. Confesso
que fui muito egoísta. Queria que os meus filhos se interessassem pelas coisas
de que eu gostava. É um encanto para mim saber que eu não era [apenas] o pai
com quem ouviam ópera e que era o pai da brincadeira. Deixa-me enternecido. E
fascinado pela capacidade que os filhos podem ter de ser bons.
Tinha a noção de que ele estava lá se
estivesse aflita, se precisasse?
Joana - Sim. Os meus avós desempenharam também esse
papel. Estou a lembrar-me de um momento cómico... Os meus pais tinham
consultório em casa. Embora trabalhassem muito, estavam sempre presentes.
Qualquer coisa, bastava descer as escadas. Era uma vivenda. Um dia, sábado de
manhã, eu devia ter uns 8, 9 anos, a minha mãe tinha saído e o meu pai estava a
fazer grupanálise.
Carlos - Não. Era um grupo de esquizofrénicos que eu
tinha aos sábados.
Joana - O meu irmão e eu decidimos fazer panquecas e
incendiámos a cozinha. Estávamos de pijama, de meias e começou a arder o
exaustor. Havia uma bilha de gás mesmo ao lado e entrámos em pânico. Assim como
estávamos, descemos para o consultório, abrimos a porta e anunciámos com grande
retumbância: "A casa está a arder." Imagine, com um grupo de
esquizofrénicos.
Carlos - A primeira coisa que fiz foi resolver o
problema da bilha. Disse aos doentes para saírem e esperarem. Atravessaram a
rua e sentaram-se nas escadas da casa em frente, a casa do vosso pediatra. Os
meus filhos também, de meias e pijama. Quando os bombeiros chegaram, já quase
não havia fogo. Chamei os meus doentes e continuámos a sessão. Só passado um
tempo, um deles me fez uma confissão: "A certa altura pensei: o meu psiquiatra
é pior do que eu."
Podiam interromper as sessões em
circunstâncias destas, apenas?
Joana - Apenas em circunstâncias excepcionais. O meu
quarto tinha uma varanda que dava para a frente da casa, onde se viam os
doentes a entrar e a sair. A vida toda convivemos, em grande harmonia, com a
doença mental. Lembro-me de um paciente que achava que era Jesus Cristo e que
descompensava à porta de casa. Um delírio maníaco clássico. Sabes de quem estou
a falar?
Carlos - Sim.
Joana - Havia pessoas que faziam convulsões
epilépticas à porta de casa. Coisas histéricas. Era muito animado [riso] e
fazia parte. Como se fosse um ortopedista e os filhos vissem muitas pessoas de
canadianas. Esta cena do incêndio: só muito mais tarde percebi o impacto que
aquilo poderia ter tido nos doentes. Para mim [os seus comportamentos] eram
bizarrias a que assistíamos da varanda.
Quando é que quis cortar com essa casa
onde não estavam apenas o pai e a mãe, mas também os seus consultórios e as
pessoas que os frequentavam, um mundo que não tinha nada que ver com o seu?
Joana - Mas tinha que ver com o meu. Aquilo fazia
parte do meu mundo. Havia uma sensação de estranheza quando, na infância, ia a
casa de amigos e percebia como era diferente. Já falei com muitas pessoas desta
sensação; como é diferente a dinâmica, a comida sabe diferente. Isto para dizer
que aquilo era o meu mundo.
Eu queria dizer: aquele era o mundo dos
seus pais, sobretudo de um ponto de vista profissional. Na adolescência,
houve rejeição?
Joana - Tive uma adolescência normal.
Carlos - Há um episódio hilariante na adolescência da
Joana. Para sair sem que a mãe ou eu percebêssemos, primeiro mandava os sapatos
para o jardim, e depois mandava-se ela.
Joana - Saltava do primeiro andar.
Carlos - Agarrava-se à parte superior de uma árvore -
era uma mangueira? - e descia.
Joana - Macaca.
Carlos - Um doente meu estava virado para a janela e
disse-me assim: "Acabei de ver uns sapatos a voar." Pensei:
"Está a ter alucinações visuais. Mas isto não é próprio deste
paciente." Continuou: "Agora há uma miúda que se atira contra a
árvore. Acho que é a sua filha." [riso] Fiquei espantado. Do ponto de
vista psicopatológico, aquele paciente não produziria aquele discurso. Tentei
entrar em contacto com os afectos dele. "O que é que você está a sentir?"
As típicas perguntas ou comentários dos
psicanalistas: "Hum hum" ou "O que é que você está a
sentir?"
Carlos - Aquilo não fazia sentido na história do
paciente nem na sua maneira de estar comigo. Até que vim a saber da história.
Os sapatos e a miúda existiam mesmo.
Joana - Eu tinha 14, 15 anos. Dizia: "Vou-me
deitar." Fechava a porta do meu quarto por dentro e mandava-me pela
janela. O meu pai ficou desconfiado, comentou com a minha mãe. Nesse dia,
quando cheguei às quatro ou cinco da manhã, tinha o meu pai à porta, à espera.
Oops.
Quando é que se zangaram?
Carlos - Muitas vezes. A sério, uma vez.
Joana - Não sei de que vez estás a falar.
Carlos - Não tenho esse sentimento em relação a
qualquer dos meus filhos - de estar zangado com eles. Eles estarem zangados comigo
é diferente.
Joana - Os pais nunca são aquilo que os filhos querem
que eles sejam. E vice-versa. Já tentei ensiná-lo a ser melhor pai. Evoluiu
bastante, [tom ligeiramente trocista] graças a mim. Zanga, zanga? Não. Digo
tudo o que penso ao meu pai.
Diz mesmo?
Joana - Digo. Tenho o maior à-vontade [para o fazer].
Sem medo de o ferir? Isso é porque são
psis?
Joana - Acho que não. Acho que é a relação que temos,
que desenvolvemos. Quando não gosto da maneira como ele é pai ou avô, digo-lhe.
Ele também me diz a mim. E pegamo-nos! Não é uma relação "o mar está flat,
não se passa nada". Temos opiniões divergentes, da política a outros
assuntos.
Carlos - Zanga, zanga, em que há um afastamento
emocional dentro de nós em relação ao outro, a um filho meu, nunca senti. Posso
ter tido medo que eles sentissem isso.
Tinha medo de desapontá-los, mais do que
tudo?
Carlos - Brinco com isto, mas há uma parte de mim
crítica em relação à maneira como era pai. A Teresa era a figura tutelar sem a
qual isto não teria funcionado. Como agora, com esta filha-neta, a Carlota [de
dez anos]: não me emendo.
Joana - Acho que és diferente com a Carlota. Já te vi
fazer os trabalhos de casa com ela. Jamais, em tempo algum, o meu pai se sentou
ao meu lado a fazer os trabalhos de casa comigo.
Carlos - Eu já fiz os trabalhos de casa com a
Carlota?!
Joana - Eu já te vi! Várias vezes. Estás com vergonha
de admitir as tuas pequenas fraquezas... [riso] Não são diferenças
substantivas. Muitas vezes observo o meu pai a ser pai da Carlota e tenho uma
ideia bastante próxima do que a Carlota estará a sentir.
Carlos - Para a Carlota, quando estive doente, foi
terrível. Foi e é. "De que é que tinhas saudades quando o papá estava
internado?" "Das tuas histórias malucas."
Contava histórias ou contava sonhos? As
histórias mais extravagantes normalmente aparecem nos sonhos.
Joana - Eram histórias absurdas, e lengalengas, que
inventava. "Ia um homem todo vestido de vermelho, num carro vermelho, com
o chapéu vermelho, os sapatos vermelhos, os olhos vermelhos, o volante
vermelho, a estrada vermelha, e bum!, bateu num senhor que era todo azul, com
olhos azuis..." A história evoluía para um hospital todo branco, um
planeta verde...
Queria pedir que contassem um sonho. É
talvez a coisa mais íntima que vos estou a pedir. Um sonho com o seu pai,
lembra-se? Um sonho com a Joana?
CARLOS e Joana - Não me lembro.
Mentirosos.
Joana - A sério, não me lembro.
Se se lembrarem, digam. Mudemos de
assunto. É impressão minha ou a pessoa com quem tinha uma relação de competição
era o seu irmão? Era pela atenção dos pais? - o que é, aliás, muito comum entre
irmãos. Fala muito dele. Também é certo que durante muito tempo foram só os
dois. A sua irmã Leonor, do mesmo pai e da mesma mãe, nasceu 11 anos depois.
Joana - O meu irmão foi muito presente na minha vida.
Não acho que competisse pela atenção dos pais. Entretinha-me sozinha, gostava
de aprender a fazer as coisas sozinha. Escrevia, desenhava. Brincava muito com
o meu irmão, também. Não na atenção, mas [no desejo] de ser melhor, competia,
sem dúvida nenhuma. Rapidamente se transformou mais numa competição comigo
própria. Isso sim, caracteriza-me muito e é parecido com características do meu
pai.
Em que outros aspectos são parecidos?
Joana - Gosto do gozo de descobrir, como o meu pai.
Gosto mais de ser aluna do que de ser professora. Não posso dizer que o meu pai
tenha sido um self made man. Os meus avós viviam bem e a partir de
certa altura passaram a viver muito bem - tudo com a força do seu trabalho,
devo dizer. Mas de um ponto de vista intelectual, o meu pai foi um self
made man. O meu avô deixa muitas saudades, e não era estúpido, de todo!,
mas não era propriamente um homem orientado para a cultura, ao contrário do meu
outro avô, do lado da minha mãe. Ainda hoje tenho um fraquinho por pessoas que
são self made man ou woman.
As brincadeiras com o meu irmão eram ao sopapo e ao
pontapé. Obrigava-me a crescer, a não ser mariquinhas.
Contudo, foi a Joana que foi para
Psicologia. O seu irmão estudou Economia. Como é que o Carlos olhava para esta
competição entre os irmãos?
Carlos - Somos todos descendentes de um bando de
assassinos. De modo que não estava à espera que os meus filhos fossem os anjos
que foram discutidos em Trento [concílio da Igreja Católica, no século XVI, no
qual se discutiu, entre outras coisas, a função dos anjos].
Quem são os assassinos, já agora?
Carlos - Então, os que sobrevivemos, em termos de
competição da espécie, somos filhos de assassinos. As pessoas de quem eu gosto,
de uma forma geral, são pessoas que sabem isto. Somos bons e maus. Se os meus
filhos não tivessem lá no meio - transformada, como é óbvio, não queria que se
matassem um ao outro - essa rivalidade, ficaria muito preocupado.
Na adolescência, os seus filhos tinham
aquários em casa. Como é que um psicanalista olha para isto?
Joana - Muuuuitos aquários.
Carlos - Achava graça. Os aquários estavam na sala do
bilhar, que supostamente era para eu jogar bilhar. Nunca foi. Era a sala usada
para fazerem tudo o que queriam.
A atitude era: "Estão a fazer
aquários" - deixá-los estar. E não: "Que é que isto quer dizer?"
Carlos - Deixá-los estar. O "o que é que isto
quer dizer?" não fazia parte da minha maneira de estar com eles. E nunca,
mas nunca os via como um psicanalista.
Joana - Não era bem assim. Não estou a dizer que fosse
permanente, mas os meus pais tinham umas vagas de entusiasmo por autores e não
resistiam a ver o mundo todo daquela cor - como na história. A vaga Winnicott,
a vaga Melanie Klein...
Pode contar qualquer coisa?
Joana - Não me lembro. Eram coisas do quotidiano. Nós
rapidamente aprendíamos a falar essa linguagem e a fazer contra-interpretações.
Dizíamos: "Vê lá. Só porque a tua mãe não te fez aquilo, tu agora..."
É uma coisa que se aprende, o vocabulário e uma forma de pensar. Se cresço
assim, também falo essa língua - como os miúdos bilingues. O próprio Bobby foi
interpretado de acordo com várias escolas psicanalíticas, mais freudianas, mais
bionianas.
Para arrumar a questão: até que idade
fizeram a brincadeira do Bobby?
Joana - Até à puberdade, até aos 11. Depois passámos a
fazer outra coisa que também incluía o consultório dos meus pais. Eles iam a
muitos congressos no estrangeiro e nós, num ápice, enchíamos a casa com 50, 100
pessoas. No consultório, em todo o lado.
Interpretação barata: ocupar o divã do
pai psicanalista é estar na cama dos pais?
Carlos - É. Mas quem é que não faz isso?
Joana - Neste caso, a cama dos pais era também o
trabalho dos pais.
Carlos - Para os meus filhos, a minha profissão era
uma espécie de amante a que dedicava muito tempo.
Tinha ciúme de alguma paciente em
particular?
Joana - Não, não. Gostava muito de observar, mas
ciúme, não. Os cães reagiam de maneira diferente às pessoas. Antes do boxer, tivemos
um rafeiro muito esperto e completamente estroina que ladrava a uns em
especial... O meu irmão e eu construíamos teorias sobre quadros
psicopatológicos associados.
Para a Joana, havia o pai Amaral Dias e
a mãe Nunes Vicente (e o avô Nunes Vicente, catedrático da Universidade de
Coimbra). Tinha de encontrar espaço para ser a Joana, e não a filha de, a neta
de...
Joana - Sim. A questão da autonomia sempre foi muito
importante para mim. A todos os níveis. Resultou nisto [que agora sou], mas tem
uma pré-história. Na altura em que atirava os sapatos pela janela, já tinha não
sei quantos empregos. Traduções, babysitting... Arranjava maneira
de fazer dinheiro. Era boa aluna, cumpridora. Os meus pais não tinham grande
coisa a apontar-me. As duas coisas - não ter restrições em casa e ter dinheiro
no bolso - fizeram com que rapidamente me emancipasse. Acabei por sair de casa
aos 19 anos. O que não é assim tão comum em Portugal.
Depois teve um filho com 22. O que
também não é comum, ainda mais no seu quadro social.
Joana - Foi muito importante ter saído de casa tão
cedo, ter crescido sozinha. Lembro-me sempre de uma grande vontade de fazer por
mim, ter as minhas ideias, a minha casa. Se resultou numa certa exposição
pública e mediática, não foi deliberado. Em miúda queria ser muitas coisas
diferentes. Não me lembro de ter tido a fantasia da fama. Tive outras - de ser
filósofa.
Deu-se uma alteração de papéis. O Carlos
passou a ser "o pai da Joana Amaral Dias". Como é que lidou com isso?
Carlos - É impossível não dizer o orgulho que sempre
tive em qualquer dos meus filhos, por razões diferentes. Acho que a minha filha
é uma miúda muito inteligente. Qualquer dos meus filhos: sempre achei que eram
mais inteligentes do que eu. Para sobreviverem à minha pessoa... [riso]
Joana - Concordo.
Carlos - O que sinto quando me falam da Joana é
orgulho. Não sou capaz de dizer isto de outra maneira.
Joana - Eu não tenho bem esta versão da história...
Então?
Joana - Fui deputada em 2003, a poeira vai assentando.
Nos primeiros anos, ficaram sem perceber o que é que se estava a passar.
Carlos - Achas?
Joana - Sim, acho. Aliás, tenho a certeza. Em virtude
desse meu processo [de emancipação, cedo], e porque temos este tipo de relação
(não estamos sempre ao telefone), eles nem sabiam bem o que é que eu andava a
fazer. Acho que ficaram surpreendidos e depois foram-se habituando à ideia. Mas
não acho que fizesse parte das expectativas.
Carlos - Não foi esse o nível da pergunta. Não era
sobre se eu esperava que tu ou o Henrique ou a Leonor ou a Carlota fossem isto
ou aquilo. Não esperava. Tenho orgulho em que sejas quem és.
Joana - Deste a ideia de que para ti [a minha fama]
era uma coisa natural. Acho que não foi natural.
Carlos - Na espécie humana, nada é natural. Havia um
preservativo que tinha como slogan: "Amar é natural."
Escrevi-lhes uma carta a dizer que amar não era natural. Era publicidade
enganosa. [riso]
Os seus pais sempre a levaram a sério?
Joana - A minha mãe costuma brincar comigo e fala de
uma insustentável leveza do ser. Porque eu sempre levei as coisas de uma forma
mais relaxada, ligeira. O meu irmão era e é uma pessoa mais séria,
circunspecta. Lembro-me de ser miúdo e dizer que queria ir para Wall Street
[diz Wall Street num tom cinematográfico]. Eu ia andando, a vida ia
acontecendo.
A questão das expectativas é fundamental
na relação pais-filhos. Os filhos não querem desapontar os pais. O Carlos diz
que tem orgulho na Joana, mas parece um comentário à superfície. Há mais
camadas.
Carlos - Não há. Um jornalista perguntou à Marilyn
Monroe, quando ela casou com o Arthur Miller, se ela tinha casado com o escritor
ou com o homem; ela respondeu: "Acha que é possível distinguir uma coisa
da outra?" É impossível distinguir. A Joana tem muitas camadas, como todas
as pessoas. Esta camada - ela ser uma figura pública - está ligada em mim às
outras.
Que defeito herdou do seu pai?
Joana - Passei a fazer uma piada (ele ainda não sabe,
vai saber agora). Descobri porque é que os meus pais foram para Psiquiatria. O
meu pai foi para Psiquiatria porque é hipocondríaco, a minha mãe foi para
Psiquiatria porque é psicossomática. A Psiquiatria era uma excelente maneira de
fugir ao horror que seria lidar todos os dias com órgãos... [riso] Eu sou as
duas coisas: hipocondríaca e psicossomática.
Porque é que foi para Psicologia? Para
já, é preciso músculo para seguir essa opção com a carga que tinha em casa.
Carlos - Claro que sim.
Joana - A maneira como resolvi isso foi, e que é
sempre a minha maneira de resolver as coisas, transformar-me na melhor aluna.
Era uma boa aluna no liceu, acabei com 18 vírgula qualquer coisa. Mas na
faculdade tive 19 e 20. Para acabar com a suspeita [de favorecimento]. O meu
pai foi meu professor. Em poucas aulas, porque tinha assistentes, mas sim, foi
meu professor. Marrei muito. Nasceu o Vicente e continuei a marrar. Porque é
que fui para Psicologia? Não sabia bem o que queria. Ainda hoje não sei, na
verdade.
O resto do mundo é vasto...
Joana - É muito grande! Estou sempre a meter-me em
coisas novas. Grande parte das vezes não posso dizer que tenha sido eu a
procurar.
O sonho. Um sonho qualquer. Outro osso.
Joana - Oh pá, não me lembro.
Carlos - Vou contar um sonho que fiz quando comecei a
sair do coma em que estava induzido. Nesse sonho ia num comboio. A enfermaria
do Hospital de São José era a carruagem onde eu ia. Chegava a Coimbra e ia para
um edifício resolver um problema que eu sabia que tinha. Um problema para o
qual sabia a resposta cognitiva mas não sabia a resposta afectiva. Estava
sentado na sala desse edifício e tinha uma caixa debaixo dos pés; abria-a e
tinha lá a resposta afectiva.
Joana - E qual era?
Carlos - Não posso dizer. Posso dizer que era uma
resposta que tinha que ver com um ódio profundo que nunca tinha percebido que
tinha em relação a uma pessoa. Feitas as contas, somos todos descendentes de um
bando de assassinos. [riso]
Porque é que esse sonho o marca?
Carlos - Era como se eu tivesse aquele problema para
resolver e o sonho resolveu-mo. Foi um sonho feito entre a vida e a morte,
violento e ao mesmo tempo libertador. Como é que um sonho nos agarra pelo fundo
das calças e nos dá uma última oportunidade para pensar aquilo? Foi assim que o
senti. Como se pudesse viver mais tranquilo. Como se pudesse morrer mais
tranquilo.
Temos sempre tantos nós por resolver,
mesmo quando achamos o contrário... É o que o sonho lhe diz.
Carlos - Repare que fiz duas análises, um psicodrama
com o [Alfredo Correia] Soeiro, o brasileiro que vinha cá. Fui doente muito
tempo, e digo como a Joana: ser doente é melhor do que ser psicanalista.
Joana - Muito melhor.
Carlos - Eu tinha visto já este problema por muitas
janelas...
Como é que nunca tinha chegado lá, a
esse âmago?
Carlos - Porque havia uma resistência minha em entrar
em contacto com um afecto tão vasto como aquele.
É violento sentir ódio e reconhecer que
sentimos ódio.
Joana - Mas sublimá-lo sempre é mais perigoso. Vou
contar um sonho: estou numa casa que são várias casas, que se vão descobrindo.
A casa tem bocados da casa dos meus avós e elementos [das construções impossíveis]
do Escher: portas que se abrem e que há bocado não eram portas, varandas que há
bocado não eram varandas e que se transformam em escadas... A casa tem sempre
bocados da casa onde cresci e de outras casas importantes onde vivi. Às vezes,
aparecem casas de outras pessoas. No sonho, vou andando. Não é desagradável,
não é angustiante, nem claustrofóbico, mas não é completamente pacífico. Há
quase a ansiedade da descoberta.
A casa é um labirinto?
Joana - Não, não é. Ela vai-se transformando e muitas vezes
aparecem as pessoas daquelas casas. Há pouco tempo, lembro-me de ter aparecido
numa dessas divisões, o escritório do avô, o avô. Habitualmente, no fim disso
tudo, saio para uma praia. Nunca vivi ao pé do mar, não gostaria
particularmente de viver ao pé do mar (embora goste de praia). Mas há uma
sensação de respiração, de abertura, de continuar sozinha.
Têm intimidade suficiente para contar
sonhos um ao outro?
Carlos - Os esquimós tinham esta prática: quando uma
criança contava pela primeira vez um sonho, deixava de dormir na cama da mãe.
Prefiro que não me contem sonhos para não sair imaginariamente da cama dos meus
filhos nem eles da minha. Há um lado dos meus filhos que nunca quis saber.
Joana - Não tenho nada essa sensação. Ouvir-te contar
um sonho, por mais camadas de leitura que eu possa ter, não acrescenta nada ao
que eu conheço de ti.
Por mais que seja uma relação de
iguais, estão numa situação desigual.
Carlos - Percebi que é pequeno o tempo em que somos
maduros. A minha mãe morreu depois do meu pai. A morte da minha mãe foi para
mim complicada. Ela estava na minha casa no Algarve e tinha ficado com a
Carlota, que era muito pequenina, e uma empregada. Eu tinha ido jantar fora com
a Susana, a minha actual mulher. Gosto muito dessa casa, que tem uma piscina
aquecida. A Joana também gosta muito dessa piscina. À noite, tomar ali banho
nu, é uma coisa fantástica! Nu e com um copo de champanhe, mais fantástico
ainda.
Uma cena de um filme de Fellini...
Joana - No comments. [riso] Ele era
capaz de dizer a mesma coisa se eu tivesse cinco anos.
Carlos - Não percebo...
Joana - Ele diz isto à Carlota.
Carlos - Não estou a dizer nada que não seja verdade.
Joana - Pronto.
Carlos - A minha mãe sentiu-se mal e morreu-me nos
braços. Morreu-me mesmo nos braços, morreu-me. Foi uma coisa muito violenta.
Depois que fiz o luto por ela, percebi que a morte dos nossos pais é o lugar
onde a nossa infância termina. Aquele olhar é o lugar onde continuámos a ser
crianças, onde alguém nos viu como crianças. Só percebi essa coisa de ser
adulto quando a minha mãe desapareceu. A infância tinha-se ido embora.
Até quando foi a menina do papá? Não
consigo imaginá-la bem criança.
Joana - Ah, mas já fui bem criança.
Carlos - Imagina-me mais facilmente a mim criança do
que a ela, não?
Sim.
Carlos - Estás a ver? Não preciso dizer mais nada. Se
quiseres pensar um bocado nisso...
É muito combativa. Parece que está
sempre pronta a ir à tromba a alguém.
Joana - E estou. Ou bem que somos filhos de assassinos
ou bem que não somos.
Essa atitude não se associa a uma
criança. Talvez por isso tenha alguma dificuldade em imaginá-la criança.
Joana - Sempre fui assim. Na segunda ou terceira
classe, pediram-me para escrever uma composição sobre pré-história. Escrevi que
era horrível ser australopiteca porque a vida para a mulher era muito injusta;
ela tinha de ficar fechada na caverna, eles é que se divertiam imenso; iam para
a caça, para a aventura. Ainda por cima, elas eram arrastadas pelos cabelos
(era uma figura que aparecia no livro de História). A minha mãe passou a
chamar-me australopiteca. Era uma das minhas alcunhas.
Não tem medo de nada?
Joana - Tenho medo de imensas coisas. De morrer, de
ficar incapaz. O meu maior medo: que aconteça alguma coisa ao meu filho. Mas
não me vejo como uma pessoa medricas.
Os seus medos?
Carlos - Nunca me tinha visto como um hipocondríaco,
como a Joana disse; mas pode ser. Tenho poucos medos. Aprendi a ter medo da
morte agora. O medo da morte não era uma coisa que tomasse conta de mim. Agora,
tenho medo que a morte me surja.
Joana - Agora é como nas Memórias de Adriano:
vês o contorno da tua morte, o que é diferente de uma pessoa da minha idade,
sem nenhum problema de saúde, ter uma angústia difusa de morte. É lixado.
Carlos - É, não é? Também acho.
Como é que terminam as vossas sessões?
Joana - Até para a semana.
Carlos - Hoje ficamos por aqui.