Para quem almeja uma relação amorosa
profunda e duradoura, a compreensão em profundidade sobre a complexidade de si
próprio(a) e do outro é vital.
Uma dificuldade, incapacidade ou resistência
acentuada na compreensão em profundidade e empática de nós mesmos e dos
demais significa, entre outras coisas, que existem aspetos intolerados na nossa
personalidade que rejeitamos e expulsamos da nossa consciência. Estes aspetos
são tendencialmente evacuados para os outros por mecanismos psicológico tanto
mais ativo quanto os níveis de ansiedade de uma pessoa e/ou a sua intolerância a
determinados conteúdos psíquicos, ou dificuldade de pensar sobre eles.
A psicanálise mostra-nos como podem
existir em nós fortes tendências psicológicas para expulsar para os outros,
induzir e consequentemente recear e/ou controlar neles,
desejos, impulsos, ideias ou aspetos pessoais rejeitados em nós mesmos. Por outras palavras, algo intolerável, aversivo ou muito ansiogénico em nós próprios pode ser facilmente transformado em “É o outro (e não eu) quem é, sente, pensa ou se comporta desta
ou daquela maneira.” Seguem-se respostas de medo ou indignação face a esse
outro, podendo surgir mesmo o ataque a esse outro, ou tentativas de o manter
debaixo de controle.
Aquando deste funcionamento psicológico (identificação
projetiva) perde-se a exatidão da percepção real do outro, substituída agora
por uma percepção distorcida, colorida por aquilo que é atribuído ao outro (projetado sobre este).
Um companheiro ou uma companheira infiéis ou com um forte desejo ou impulso
para a infidelidade podem facilmente começar a acusar o parceiro de
infidelidade, procurar controla-lo e ás suas atividades, etc.. O que é
procurado no fundo não é a tranquilização de que não existe traição mas a sim a
legitimação da desconfiança persistente, a confirmação de que esses aspetos
infiéis pertencem ao outro e não ao próprio. Lamentavelmente muitas vezes essas
acusações e esse controlo acabam por levar o outro ao desgaste e a tornar-se
aberto a outras relações, o que acaba por concretizar a fantasia de
infidelidade.
A intolerância ao reconhecimento de
aspetos mais desagradáveis ou vulneráveis da nossa psicologia pode criar
problemas significativos para a estabilidade e para a maturação do casal. Esses
aspetos podem ser responsáveis por problemas importantes na relação amorosa,
contudo a confrontação direta pode igualmente ser de tal forma problemática e
intolerável que resulta em crises de atribuição ou projeção de culpa. Por
outras palavras, a situação e os papéis invertem-se subitamente e naquele momento
– emerge um sentimento de se estar a ser vítima de um outro sentido agora como fundamentalmente
cruel, insensível, intolerante, culpabilizante, e logo, merecedor de ser
agredido.
A confrontação abrupta com partes
intoleradas da personalidade tendencialmente não promove insight ou
ganhos de compreensão, mas um reforço das tendências projetivas, entre outras, que neste caso acabam por atribuir
ao outro a própria parte cruel, insensível e intolerante da personalidade.
Sob o efeito dos mecanismos projetivos,
e consoante uma maior atividade dos mesmos e também de um maior grau de
fragilidade constitucional de uma dada personalidade, perde-se momentaneamente e
parcialmente o contacto com a lógica racional. Dissipa-se, em maior ou
menor grau, o contacto com as partes boas do outro, com as boas recordações que
guardamos sobre ele ou ela, com as boas intenções e o desejo de amor dele ou dela
por nós. Tudo isto desaparece, de uma forma aparentemente mais
subtil ou mais radical, mais momentânea ou mais duradoura (ou mesmo
irreversível, nos casos que resultam em rotura permanente da relação).
A perda de contacto com as partes boas do outro impossibilita formar ou manter o
contacto com um sentimento de aliança com esse outro – uma aliança securizante,
que procura acolher e trabalhar questões individuais e conjuntas que atormentam
a relação. Ao fim ao cabo a maioria de nós consegue aliar-se ao que e a quem gosta e com quem se consegue identificar. Esta aliança é a base para a possibilidade de transformação dos
conflitos do casal e do acesso a novas vivências e novos equilíbrios na relação
amorosa.
As fragilidades constitucionais da
personalidade podem de facto ser tais que não há tolerância ao reconhecimento
de vulnerabilidades pessoais. Fica então comprometida a capacidade de
responsabilização pessoal aquando dos problemas na relação de casal, bem como a
capacidade de ser formada essa aliança com o outro, com as partes boas do outro
– as partes generosas, pacientes, compreensivas, gratificantes, tolerantes,
apoiantes.
O conflito ou a instabilidade
prevalecentes conduzem à insatisfação crónica, à estagnação e ao fim da relação
amorosa. Ou então a um prolongar e a um suportar masoquistas da mesma,
alicerçados muitas vezes na eterna esperança de uma mudança.
A relação psicoterapêutica na psicoterapia
psicanalítica estimula na pessoa as suas vivências e padrões relacionais
habituais, oferecendo uma oportunidade única para que, num contexto e numa
aliança seguros e securizantes, possam ser trabalhadas e resolvidas questões em
torno de, por exemplo, conflitos específicos e instabilidade nas relações
afetivas da vida da pessoa.
Por Diogo Gonçalves
Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta
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