Sabemos que para uma criança (aquela que todos nós fomos outrora) a presença no inicio de vida de cuidadores disponíveis é fundamental. Isto, mais que disponibilidade física, significa disponibilidade emocional, significa dar a uma criança o sentimento contínuo de ser compreendida, reconhecida e apreciada positivamente, realisticamente e sempre com amor. Para além disto os cuidadores devem ser, sempre que possível, pacientes, compreensivos e apoiantes. Das dádivas mais preciosas e importantes que uma criança pode receber ao longo da sua vida é poder viver dentro de si e com os seus pais e familiares algo como: "sinto que aqueles de que tanto gosto me compreendem verdadeiramente, estão lá para mim e ajudam-me sempre que preciso. Quando me sinto angustiado(a) e confuso(a) eles conseguem tranquilizar-me e conseguem ajudar-me a sentir leveza e a ver simplicidade nas coisas que até então pareciam muito confusas e angustiantes. Sinto que eles me incentivam a ir para a frente e que me respeitam se eu não sentir que não sou capaz, me dão tempo e espaço para pensar sobre as coisas, e com isso sinto-me cada vez mais confiante nas minhas capacidades, porque sei que eles estão lá para mim e para me ajudar se eu precisar."
São também estas as bases para a autonomia, para a confiança nas nossas próprias capacidades e para a autoestima (por internalização desta boa relação e destas figuras cuidadoras disponíveis, empáticas e pacientes, que cuidam a partir de dentro para toda a vida; e pela possibilidade de procurar e recriar estas relações com outras pessoas fora do seio familiar).
Contudo, nem todas as pessoas puderam contar com estas bases no início das suas vidas, ou lhes foi possível encontrar outras relações ao longo da vida a partir das quais conseguissem reparar essas faltas precoces. Para estas pessoas os recursos internos que de outra forma lhes dariam uma boa capacidade de adaptação a circunstâncias de vida mais difíceis acabam por poder estar mais fragilizadas ou mesmo inacessíveis. Alguns recorrem-se da psicoterapia e com isso conseguem reabilitar-se através de uma relação única que se vai desenvolvendo à medida que a confiança no psicoterapeuta e na relação terapêutica vai amadurecendo.
A realidade crudelíssima no meio de tudo isto acontece quando às vulnerabilidades ou comprometimento das capacidades individuais de cada pessoa se junta uma crise (financeira), que em simultâneo retira a possibilidade de procurar ajuda profissional. A própria crise financeira ataca a possibilidade da pessoa poder suportar os custos de uma psicoterapia. Em Portugal e pela proeminente propaganda dos medicamentos, raras são também as companhias de seguros que comparticipam tratamentos de psicoterapia, o que configura então essa realidade crudelíssima em cima da hecatombe que é a crise financeira. Penso que também será fácil entender no meio de tudo isto a relativa inutilidade de medicamentos enquanto forma a ajudar alguém a lidar com uma crise desta magnitude...
Por vezes há que nos desenvencilharmos de um sentido de perseverança que implica a idealização da potência e da autosuficiência, para que possamos aceitar limites, quer externos, quer internos. Por vezes esse é o primeiro e mais importante passo para a mudança. Podemos assim começar a libertar-nos daquilo que não nos deixa seguir em frente, o que custa (e muito). Mas é também através deste movimento (de humildade, diga-se de passagem), que de alguma forma implica um certo deprimir (reconhecer a nossa impotência face à realidade e a nossa vulnerabilidade face às circunstâncias), que eventualmente podemos descansar. Também, num segundo momento, mais tarde, ficar mais recetivos a aceitar ajuda profissional ou ponderar rumos alterativos para as nossas vidas ou para os nossos projetos, ou ainda, dar tempo a que estes se construam gradualmente e vão ganhando forma primeiramente dentro de nós.
Pessoalmente acho que o termo "crise" remete precisamente para uma situação que súbita e inevitavelmente evoca a nossa capacidade de adaptação e a leva ao extremo. É uma crise porque o potencial de sofrimento, a dificuldade inerente à situação específica, o eventual risco de intransponibilidade tendem a ser máximos para aquela pessoa.
Em certos casos a melhor ajuda que um psicoterapeuta pode dar é mesmo poder ser testemunha e companhia durante o percurso atribulado e quase impossível de uma dada crise, em casos em que a única saída é mesmo trilhar esse percurso até ao fim. Por vezes a ajuda mais preciosa do psicoterapeuta é mesmo ajudar "a carregar a cruz", partilhando o peso com a outra pessoa. E isso por si só faz toda a diferença do mundo.
A crise financeira força de facto a uma necessidade de mudança de paradigmas. Ainda que apostar num emprego estável, poupanças, comprar casa, formar família não sejam necessidades genéticas, são sim expetativas culturais normativas que ao longo de muitos e muitos anos fizeram parte dos valores das nossas famílias, unidade fundamental da organização da sociedade. Foram transmitidas de pais para filhos, os quais mais recentemente vão completando mais de 20 anos de formação escolar para que no final se deparem precisamente com uma crise com um potencial de abalo dos próprios fundamentos de todo esse esforço. Por tudo isto, também se espera de um modo geral que a adaptação das pessoas a esta realidade partilhada seja lenta. Alguns de nós certamente necessitarão mais tempo e outros talvez nunca se consigam adaptar, ou fiquem eternamente à espera do retorno do país ao equilíbrio financeiro anterior.
Em suma, vivemos uma crise cujo enfase é predominantemente exterior porque existe uma enorme massa populacional com vidas adiadas e mesmo arruinadas por causa dela, que talvez somente após muito tempo se consigam restabelecer. E isto, na minha opinião marca a diferença entre a legitimidade de um discurso político que se foca na necessidade das pessoas superarem a crise por si mesmas e, por outro lado, a necessidade de responsabilização dos dirigentes do pais, enfatizando ainda a necessidade de ser repensada a forma como o sistema permite que estes dirigentes cheguem ao poder. Com tantas universidades, ideias e génios no mundo, o sistema de acesso ao poder não está claramente alicerçado nos princípios da racionalidade. Infelizmente as pessoas servem os interesses do país (das instituições), em vez de ser o país a servir os interesses das pessoas. No final, quem vai compensar todas as "vítimas da austeridade" e respetivas famílias?
Há sempre dois lados de uma crise: a realidade exterior e a forma como lidamos com ela. No caso da crise financeira a realidade exterior é claramente preponderante, quer por tudo o que até agora foi descrito como pelo facto de em cima de tudo isto, esta crise tornar muito mais difícil o acesso das pessoas em sofrimento aos serviços de saúde mental e logo, à possibilidade de serem ajudadas a superar ou a gerir esta destruturação forçada das suas vidas e dos seus projetos.
Em suma, vivemos uma crise cujo enfase é predominantemente exterior porque existe uma enorme massa populacional com vidas adiadas e mesmo arruinadas por causa dela, que talvez somente após muito tempo se consigam restabelecer. E isto, na minha opinião marca a diferença entre a legitimidade de um discurso político que se foca na necessidade das pessoas superarem a crise por si mesmas e, por outro lado, a necessidade de responsabilização dos dirigentes do pais, enfatizando ainda a necessidade de ser repensada a forma como o sistema permite que estes dirigentes cheguem ao poder. Com tantas universidades, ideias e génios no mundo, o sistema de acesso ao poder não está claramente alicerçado nos princípios da racionalidade. Infelizmente as pessoas servem os interesses do país (das instituições), em vez de ser o país a servir os interesses das pessoas. No final, quem vai compensar todas as "vítimas da austeridade" e respetivas famílias?
Há sempre dois lados de uma crise: a realidade exterior e a forma como lidamos com ela. No caso da crise financeira a realidade exterior é claramente preponderante, quer por tudo o que até agora foi descrito como pelo facto de em cima de tudo isto, esta crise tornar muito mais difícil o acesso das pessoas em sofrimento aos serviços de saúde mental e logo, à possibilidade de serem ajudadas a superar ou a gerir esta destruturação forçada das suas vidas e dos seus projetos.