Fico apreensiva sempre que uma criança me diz que não sabe o
que fazer com um pincel e uma caixa de aguarelas. É suposto as crianças terem
uma capacidade quase inata para experimentar, fantasiar, brincar. Quando não o
fazem, ecoa o ruído de um vazio interior, de uma prisão afetiva.
“Ah, mas é muito simples. Olha, tu arranjas um pincel, e
depois é só ter tinta e fazer festinhas no papel com o pincel”.
Estas são
palavras de um menino que tentava ensinar a mãe a pintar, depois desta lhe
dizer que não sabia pintar tão bem como ele. João dos Santos via nesta
descrição espontânea, o reflexo do afeto, das festinhas que esta criança
recebera em bebé. Afinal, fazer festinhas implica a consciência de um corpo, de
onde começa e acaba o eu e o outro, que se adquire no contacto com os outros e
com o próprio, ou seja, na relação. Através da sua espontaneidade, “tudo o que
aparece é sensibilidade, é sentimento, é tudo o que há de menos intelectual e
de mais expressivo, de mais sentimental”, defendia este psicanalista de referência
em Portugal. Preocupa-me, portanto, que mesmo antes de iniciar o percurso
escolar a criança já tenha perdido, ou nem chegado a desenvolver, esta
espontaneidade.
As primeiras crianças que me disseram que não sabiam o que
fazer com as tintas eram de famílias muito pobres e muito disfuncionais, que
pouco mais sabiam fazer para além de destruir. Os seus olhos brilhavam quando
juntos descobríamos o que podíamos afinal construir e unir. Seria o não saber
brincar a consequência das carências económicas? Não. Há crianças não tão
pobres que igualmente paralisam perante uma caixa de brinquedos ou uns frascos
de tinta. A pobreza do brincar será, afinal, afetiva. Mas também aqui se vê a
transformação quando repito as palavras daquele menino. “Vês? É só fazermos
festinhas com o pincel”. E quando a criança se espanta com a gota de tinta que
lhe cai na mão, “não faz mal, limpamos e fazemos festinhas nas nossas mãos e
agora deixamos os pincéis e fazemos festas no papel com as mãos!”. E a inibição
e o medo parecem dar lugar a um sorriso que espelha a esperança do afeto, das
festinhas no coração.
É através da fantasia e da espontaneidade que a criança
melhor se expressa, daí a importância do brincar e das expressões em
psicoterapia infantil. Poder pintar o céu de verde e fazer de um livro um
castelo, sonhar, imaginar, sentir… sem medo de estar certo ou errado.
A ausência da expressão na criança (brincar, pintar, saltar,
rir, chorar) não constitui “apenas” uma problemática infantil. Pergunto-me
que adulto virá a ser esta criança que não sabe fazer o que de mais natural e
genuíno existe? Afinal, como aprender a dar e a receber festinhas quando se tem
uma infância tão vazia?
Felizmente, algumas destas crianças chegam-nos pela mão de
pais preocupados com sinais que os filhos vão dando de uma ou outra forma. Pais
e mães muitas vezes também vazios de afetos e que precisam de ajuda na
reconstrução de uma relação saudável, na leitura e tradução das mensagens da
criança, na construção de uma pele forte, mas permeável ao afeto.
1 comentário:
Muito bonito e ao mesmo tempo muito profundo. Dá uma ideia clara da importância das pequenas e mais básicas coisas na vida e desenvolvimento de todos nós, sobretudo, enquanto crianças: primeiro o corpo e o movimento; o experimentar e o brincar! A forma como dificuldades a este nível se entre-cruzam com a "falta de festinhas no coração", assim como, o que fazer para as possibilitar no seio de uma família, eis a arte e ciência da psicoterapia!
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