quarta-feira, janeiro 07, 2015

Narcisistas, Escândalo e Reality Shows


De um modo geral e para fins de fácil compreensão e assimilação, a psicologia de alguém considerado enquanto "narcisista", ou mais concretamente de alguém que sofre de uma perturbação narcísica de personalidade (ou falha narcísica primária), estrutura-se em torno de uma preocupação ansiosa (patente ou dissimulada) sobre o valor da própria pessoa enquanto tal, perante os outros.

Esta angústia acentua-se sobretudo em situações sociais ou na antecipação das mesmas (quanto menos familiar o contexto ou quanto mais dificil a integração no mesmo, mais acentuada a angústia), bem como em situações de avaliação, de emissão de pareceres, ou face a figuras que detenham esse poder perante a própria pessoa. É o receio acutilante da opinião (crítica) dos outros, da rejeição por parte do grupo social; é a preocupação ansiosa e persistente de se poder vir a ser vítima de exclusão, discriminação, de ataques críticos, provocações ou humilhações na antecipação de situações sociais; é a facilidade com que a pessoa se sente atacada por críticas ou comentários menos favoráveis, por vezes relativamente inofensivos.

A sensibilidade face à apreciação crítica alheia é marcante. Apreciações desfavoráveis (por vezes até relativamente neutras) podem ser sentidas como ataques sádicos intencionalmente dirigidos contra a própria integridade, o que leva a própria pessoa a ser incapaz de se conseguir sentir e manter relativamente indiferente. Estas situações podem ser de tal forma dolorosas que a própria pessoa pode mesmo perder (ainda que temporariamente) a capacidade de pensar e de se acalmar. A própria pessoa pode mesmo passar ao ato - isto é, partir para a agressão física numa tentativa de "destruir" a fonte do sofrimento ou superiorizar-se perante ela pela força da agressão ou do domínio. Estes são já estados graves de perturbação narcísica, quando a pessoa, nas suas relações e nos meios em que se movimenta,  "explode" ou "perde a cabeça" com relativa facilidade, ou entra em estados de "prestes a rebentar", sendo evidente para os demais a dificuldade do próprio em conter ou controlar a própria frustração/raiva transbordante. Há, claro, situações ou encadeamentos de situações na vida das pessoas que têm o potencial de levarem a maioria de nós ao transbordar. São momentos ou fases de vida em que a psicoterapia é críticiamente recomendável!

A ferida narcísica obriga a que a confirmação do valor próprio seja procurado a partir do exterior. Ferida ou falha narcísica significa dificuldade em a pessoa se conseguir erguer internamente quando por algum motivo "vai a baixo". É também a dificuldade na construção e retenção de uma imagem interna realista, estável e complexa de si mesma enquanto pessoa (em oposição a uma imagem oscilante, que varia consoante as situações, ou uma imagem de perfeição ou de falência total), e/ou a dificuldade em ser conseguido um sentimento interno de coesão enquanto pessoa individual, diferenciada e separada dos demais. Tais dificuldades podem conduzir à procura sistemática de angariação de admiração/validação exterior e recursos (através de riqueza, fama, relações amorosas, conquistas sexuais, admiração dos amigos, estatuto, etc). Quando obtidos, a ilação inerna almejada fica aquém do esperado/idealizado, esbatendo-se rapidamente.

Nas perturbações narcísicas surje muitas vezes a necessidade, fantasia ou ideal persistente de pertença a grupos sociais ou socio-económicos priveligiados, socialmente diferenciados pelo prestígio, fama, riqueza, poder, ou outros quaisquer critérios de seletividade social, exclusividade ou elitismo.

As falhas narcísicas são também, e infelizmente, ingredientes-chave nos famosos reality shows, já que a configuração particular das psicologias narcísicas torna as pessoas mais propensas ao conflito, sobretudo em contextos sociais menos familiares. Quem sofre de um narcismo vulnerável facilmente se sente atacado, como também pode facilmente passar ao ataque. Isto aparentemente gera audiências, à custa da exploração e exposição pública de vulnerabilidades psicológicas. É também sabido que quem sofre de problemas narcísicos tende a conflitualizar particularmente com outros que sofrem do mesmo problema, já que o próprio sistema defensivo das estruturas narcisicas de personalidade (superiorização pessoal e crítica/desprezo/ataque ao(s) outro(s), por exemplo) tendem a colocar o dedo na ferida (narcísica) de parte a parte. Alianças de parte a parte também se podem formar, por exemplo, por necessidade mútua de reforço de identidade, por necessidade de aproximação de algum prestígio que é percebido nos demais e o desejo de nele participar, ou por outros motivos. Um reality-show sem pelo menos alguns participantes com algum grau de patologia narcísica não seria a mesma coisa. Contúdo, a própria situação de exposição perante um tão amplo público a que estas pessoas estão sujeitas, o que isso implica, e as próprias dinâmicas específicas dos reality shows, acabam por ser aspetos que num ou noutro momento têm o potencial de destabilizar até os mais emocionalmente estáveis.

Os reality shows são programas que muitas vezes espelham problemas pessoais com os quais é fácil nos identificarmos, mesmo que inconscientemente. Podemos fácilmente assistir a estes programas (pelo menos em parte) num intuíto de procurar perceber como é que os demais resolvem problemas tão pessoais, tão sensíveis, tão complexos, tão intensos e tão persistentes que surgem também nas nossas relações pessoais e sociais, e que por vezes as inundam. São problemas com os quais todos nós nos debatemos ao longo das nossas vidas e que nem sempre somos capazes de lhes dar respostas adequadas, maduras e satisfatórias. Então observamos, analisamos e criticamos, sempre a partir da  distância segura que a TV oferece - "são eles que estão às turras e não eu (ou aqueles que me são próximos e queridos)!".

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