quarta-feira, março 21, 2007

O Poeta

Porque hoje é o Dia Mundial da Poesia, deixo aqui uma homenagem a todos os poetas através das palavras de Vinicius de Moraes, numa descrição da alma do artista:

“A vida do poeta tem um ritmo diferente
È um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.

Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora.
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri.
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam.

O poeta é bom.

Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
A sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.

A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis”.

Neste “caminho para a distância”, as misteriosas palavras retratam os véus da alma dos poetas, tão inquietantes e fascinantes, como crianças que vagueiam ante o mistério de uma amplidão suspensa.
Falemos então dos poetas e da sua poesia...

3 comentários:

Jorge disse...

Bela homenagem!

Miguel Fabiana disse...

“AGRADECEMOS”
de João Habitualmente, o lirismo e a metáfora mas também o poeta que canta a épica do concreto. Um Poema Claramente dedicado!



nós, os que adoramos viver,
sentimo-nos na obrigação de agradecer.

aos patrocinadores, colaboradores,
a todos quantos nos emprestaram o riso e o ranho,
aos que nos entusiasmaram encorajaram e
aos que ainda estão para vir

agradecemos,
a colaboração
ao haxixe de marrocos
à febre de malta
ao vinho da casa
à heroína
que casa c'o cowboy
lá para o fim do filme

agradecemos
ao fim do filme
por ter acabado
às sombras da tarde
por fazerem sombra à tarde
aos caminhos d'aldeia
por cheirarem a merda de vaca
ao senhor padre por ser virgem
nem ele sabe a importância que isso tem
nem nós também

agradecemos
ao white horse royal label
aos pudins flan
os maravilhosos momentos proporcionados

à nossa namorada
as incontáveis fodas
e as que demos sem contar

à mulher-a-dias
pela religiosidade com que nos lavou as cuecas
pela afeição com que nos viu crescer
pela idiotice de nunca querer ter sido mais nada

agradecemos
ao presidente da câmara
ter perdido as autárquicas
aos partidos no poder
e aos que ainda nos hão-de vir foder
às sogras tios e primos
a paciência de serem há tantos anos da família

agradecemos
ao sol da praia aos pardais ao ar lavado
e a todos os outros heróis mortos em combate e imortalizados
amortalhados em grandiosas estátuas
muros de betão

agradecemos
aos morcões e aos estúpidos
trissómicos e outros produtos das aberrações cromossómicas
a beleza com que são horriveis
é aí que vemos a infelicidade de que escapámos
é aí que temos a noção do tamanho bonito de existirmos assim

agradecemos
à dor aos sofrimentos inúmeros com que bordamos os nosso dias
porque nosso será o reino dos ceús

aos ladrões e às putas
pela sensação de imprevisto quando caminhamos na rua
por exibirem conceitos tão próprios de vida
e juramos
passar a cumprimentar toda a gente
estar infinitamente gratos
infinitamente gatos
piolhos porcos morcegos
infinitamente coisos despidos ao frio
vestidos ao sol
saias casacos camisas gabardines de vénus
roupa tanta sobre chãos
corpos galácticos

juramos estar infinitamente gratos
a todos os casais felizes
uniões duradouras bodas de prata
por demonstrarem o conceito da felicidade emparedada
o valor da paciência
o infinito do esforço

agradecemos
à arte à ciência à historia à sociologia
à política à religião
darem emprego a tanta gente

agradecemos
à tecnologia aos motores
pelo mesmo motivo
às fábricas aos computadores
idem
e a tudo quanto faça barulho cheire mal
foda a vegetação os rios os sóis a aragem
porque inevitavelmente somos a favor de uma poluição avançada,
não dessa como nos países de terceiro mundo que é feita
de gente magrinha
feia de ver.

Defendemos uma verdadeira poluição
pesada d'acordo com os padrões europeus

agradecemos
à tropa,
verdadeira escola d'homens
e à escola
tropa de meninos

agradecemos
a cristo marx reich
pela inutilidade prática das suas demonstrações
e agradecemos a todos quantos
fizerem demonstrações cheias de inutilidade prática
terem tido tanto êxito

não nos esqueceremos igualmente dos nossos teóricos
já lhes basta a infelicidade de serem
teóricos
de se esquecerem de comer
tudo a bem dos teoremas teóricos
explanações metafísicas
conceitos epistemológicos

não podemos claro deixar de
sentir ternura pelos nosso teóricos

agradecemos
às entidades divinas
a força que nos dão
a garra o querer e o tesão

e agora não agradecemos a mais ninguém
porque vamos comer um bom bife

talvez devêssemos agradecer
à defunta vaca

porque sempre em tudo o que façamos
sem dúvida contraímos
obrigação de comer um bom bife
e foder uma garrafa de verde

o que é um acto poético
de incomensurável estética.

Ricardo Pina disse...

Este é, definitivamente, um dos meus preferidos poemas do meu preferido poeta:

«Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.»

Insónia

Álvaro de Campos