Os terapeutas que escrevem neste blog não têm por hábito falar da sua vida pessoal. No entanto, vou abrir uma excepção, porque me parece que a experiência que estou a viver poderá ser útil para outras pessoas.
(Foto de células cancerigenas)
Foi diagnosticado ao meu marido um cancro raro, mais comuns em homens do que mulheres, e muito agressivo. É o terceiro cancro que tem em seis anos. Dadas as circunstâncias, decidimos recorrer a um centro especializado nesse tipo de cancro, nos Estados Unidos. Mas o que aqui estamos a passar poderia passar-se em qualquer parte do mundo, não é essa a questão que importa. O que importa é a experiência que se vive e como lidar com ela.
Quem está na posição em que me encontro, de acompanhante e suporte, depara-se com uma enorme impotência. Temos de assistir, acompanhar, ajudar, lembrar os remédios, falar com os médicos, marcar consultas, tratar das questões administrativas e logísticas, verificar horários, ir comprar medicamentos e suplementos alimentares. Tudo isto, estando atentos, com boa disposição e animo para puxar pelo outro. Por outro lado, sentimos que pouco podemos fazer em relação à própria doença. Este sentimento de impotência é muito frustrante.
Estamos aqui quase há dois meses e os dias passam-se entre a radiação (diária), a quimioterapia (semanal) e inúmeras consultas e exames. Mas a quimioterapia é uma coisa muito violenta, que mexe com o corpo todo. A rádio, mais localizada, tem tido efeitos secundários mais restritos, embora muito condicionantes no que respeita à ingestão de alimentos.
Que posso eu dizer-vos do que é o dia a dia passado neste ambiente? Como as coisas aqui são organizadas e não há grande acumulação de pacientes, não encontrei aqui aquilo que muitas vezes ouvi descrito por amigos que tiveram experiências semelhantes. Mas sim, vêem-se mulheres com lenços ou chapéus, muito pálidas. Homens curvados, sem força. Não sei se por uma questão cultural, as pessoas aqui queixam-se pouco e parecem apostadas em se mostrarem bem dispostas. Isso deve ajudar, porque o ambiente não é, surpreendentemente, deprimente. Quando calhamos com outras pessoas na sala de espera, verificamos que quase toda a gente está acompanhada, seja por um cônjuge ou companheiro, um filho, uma amiga. O pessoal técnico é aliás extremamente simpático com os acompanhantes, talvez por estarem convencidos da sua importância para a recuperação do doente.
O cancro é uma doença como outra qualquer, grave, sem dúvida, e que tem de ser tratada com conhecimentos científicos avançados, método e determinação. O estigma que durante tanto tempo lhe esteve associado parece estar, felizmente, a desaparecer. Estima-se que a meio deste século a maioria das pessoas tenha pelo menos um cancro, e muitas delas, vários. Imagino que, nessa altura, os tratamentos não tenham os efeitos secundários que ainda hoje têm. No caso da quimio, sobretudo, tenho constatado que provoca grande fadiga e problemas intestinais. As náuseas, de que tanto tinha ouvido falar, previnem-se com anti-eméticos, muito eficazes. A enorme falta de apetite, mesmo aversão à comida, é mais difícil de vencer. Tudo isto é reversível com os fim dos tratamentos, pelo que me dizem.
No meu caso, o que mais me tem custado foi ver uma pessoa que é por natureza voluntariosa, independente e impaciente, ficar mais para o apático e passar a maior parte dos dias na cama, sem forças para nada. Uma pessoa que adorava comer e agora não aguenta o cheiro da comida. Mas, como digo, julgo que estes sintomas desaparecerão dentro de duas semanas.
O pouco tempo que tenho para arejar um pouco, e sempre que posso deixá-lo sozinho por umas horas, tenho aproveitado para ver a cidade e tirar fotografias. Quando chegámos havia imensa neve, agora as árvores estão a rebentar e surgem flores de todas as cores. A natureza aqui é mais contrastada e como os espaços são imensos, tem-se a impressão de uma enorme força à nossa volta. O vento, por exemplo, pode ser fortíssimo. Os nevões, idem. O sol, estranhamente, é quentíssimo, e no tempo em que havia neve (até há três semanas) faziam um contraste lindo, entre o azul e o branco. E há os braços de mar, uma coisa que não temos em Portugal. Aqui o mar penetra pela terra dentro mas muito calmo, porque há uma infinita sucessão de enseadas e baías. Não foi por acaso que este foi dos primeiros locais a ser colonizado pelos Ingleses. Sei que chegaram aqui em Outubro e aportaram com medo do frio. E com razão.
Será que ajudou a esta acompanhante estar num sítio bonito e com boas condições? É provável. E oxalá toda a gente tivesse a minha sorte. Certo é que dei comigo há dias a procurar na internet o nome de umas árvores que vi numa rua. Eu, que não percebo nada de botânica. E nesse mesmo dia, por coincidência, recebi um email em que uma pessoa que tinha conhecido aqui semanas atrás e me recomendava que estivesse atenta aos "daffodils" and "crocuses"! É verdade, as flores estão a rebentar e são lindas! Parece-me que aí em Portugal muitos de nós damos pouca atenção a estes pormenores que alegram a vida. Mesmo nas alturas mais difíceis, temos de estar de olhos bem abertos.
(Foto de crocus)
1 comentário:
Obrigado pela partilha, Clara. É fácil ser "sábio" quando tudo está bem mas é quando a realidade nos põe mais à prova que a sabedoria é mais precisa mas, porém, mais difícil de a aplicar e não abandonar.
A forma direta, sem tabus e com a abertura com que falou sobre a vivência do cancro na 2ª pessoa é de grande generosidade. Para além disso, ficou-me a forma sabiamente realista com que falou do cancro: sendo muito grave, não tem de ser um buraco negro que tudo absorve (ainda que seja muito absorvente como se percebeu). Penso que ficou patente que cultivar o espaço e abertura internas é realmente algo que depende mais de nós próprios do que das circunstâncias. Obrigado, um beijinho e as melhoras para o seu marido, Clara.
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