Quando se fala em EMDR, fala-se
obrigatoriamente em trauma, o que pode levar a algum reducionismo de uma
prática que se tem revelado abrangente, pois há tendência a associar o trauma a
situações catastróficas. Se bem que o EMDR começou por ser essencialmente
utilizado em pacientes com Perturbação de Stress Pós-Traumático (grande trauma),
tem aplicação em quase todas as situações em que existe uma intensa experiencia
emocional negativa associada a episódios “menores” (pequeno trauma). Se os
grandes traumas são relativamente fáceis de identificar e mobilizar ajuda
(acidentes, assaltos, mortes, bullying, abuso sexual, abandono), os pequenos
traumas nem sempre são devidamente identificados e valorizados.
Na minha prática clínica com
crianças, os pais perguntam frequentemente “qual é a causa?”, procurando
identificar a origem da problemática dos filhos. Se muitas vezes a história
individual e familiar ajuda a compreender, pelo menos, algumas das causas,
outras vezes não conseguimos fazê-lo. Sabemos, sim, que aconteceu algo em
determinada altura do desenvolvimento da criança que foi vivido com extrema
intensidade. O que costumo explicar aos pais é que existem situações que são
relativamente inócuas para os adultos e passam até despercebidas, mas que são
vividas com grande angústia pela criança.
A infância é marcada por
tentativas repetidas, fracassos e, finalmente, êxitos. Normalmente, as crianças
têm o equipamento necessário para lidar com estes desafios. Para atingir estes
feitos, a criança precisa de sentir que é amada, que tem valor, que é capaz e
que está segura. Episódios de aparente pouca relevância, como uma queda no
recreio do jardim-de-infância, engasgar-se com a comida, assistir a uma cena na
TV, ouvir um estrondo repentino, ter um pesadelo, observar uma expressão facial
de apreensão no pai ou na mãe, ter um mau resultado na escola, assistir a uma
discussão, podem pôr em causa o sentimento de valentia e mestria que apoiam o
percurso do desenvolvimento e o caminho para a independência. Frequentemente os
adultos desvalorizam algumas destas situações porque as consideram normais ou
pouco importantes. Por outro lado, poderão achar que a criança nem percebe o
que se passa, por isso não vai ficar afetada. No entanto, a capacidade que as
crianças têm para compreender a situação e expressar o que sentem é bastante
inferior à intensidade com que a vivem.
Na infância as experiências são
essencialmente sensoriais com emoções em bruto e, dada a dificuldade em
elaborá-las, o reflexo surge sobretudo ao nível do comportamento. Dada a
incapacidade em interpretar logica, racional e verbalmente os eventos, as
crianças “gravam” na sua mente mensagens negativas que tendem a afetar o seu
bem-estar e o seu funcionamento de forma prolongada, muitas vezes até à idade
adulta. Alguns exemplos destas mensagens são: estou em perigo, não presto, não
sou capaz de fazer nada, ninguém gosta de mim. Quantos de vós, adultos, se
reconhecem nestas crenças negativas e como estas interferem na vossa vida
pessoal, social e profissional? Imaginemos agora o que estas perceções de si
próprias fazem a crianças com a vulnerabilidade típica da idade e sem a
capacidade para as perceber, dizer e expressar.
Há tempos, um rapaz de 12 anos
que apresentava “acessos de fúria” (entre aspas porque na verdade o que fazia
era largar os livros e fechar-se no quarto) quando se confrontava com uma
dificuldades escolar, tinha igualmente uma postura adultomorfa e erguia todas
as suas defesas quando eu procurava chegar às suas emoções. Cerca de dois anos
antes, houve um desacato à porta do prédio entre os pais e um vizinho, que
acabou em agressões físicas. Este rapaz, na altura do conflito com 10 anos,
ligou três vezes para o 112. Continuava, no entanto, a repetir “eu não fiz
nada, devia ter feito alguma coisa para acabar com aquilo”, revelando um
sentimento de impotência e uma crença de que devia ter feito mais do que fez.
Três anos antes, a avó deste rapaz faleceu. Chegou a vê-la no hospital em fase
terminal, mas não se despediu. Depois da morte da avó, começou a revelar grande
agressividade na escola, batia nos colegas, atirava com as cadeiras. “Fui muito
mau para a minha professora, sou mau quando sinto coisas”. O EMDR ajudou a
perceber, mais uma vez, que o pensamento negativo era de que nada fez para
salvar a avó. O processamento destas situações ajudou a desbloquear estas
crenças negativas e irracionais (sou fraco, sou mau), permitindo a instalação
de recursos e respostas mais adaptativos, associados a um pensamento mais
positivo: este rapaz fez o que pôde e expressou-se como foi capaz, tendo em
conta a sua idade. Passou a ser mais capaz de entrar em contacto com as suas
vulnerabilidades, aceitando-as e reagindo de forma ajustada. As dificuldades
escolares acentuavam esta perceção de que não era capaz porque era fraco, reagindo
com “fúrias” que ao mesmo tempo que o faziam sentir-se mais forte, reforçavam
igualmente a ideia de que era mau.
A psicoterapia EMDR foi bastante
importante neste caso, tendo em conta que existiam vivências traumáticas que o
colocavam numa posição muito defensiva e difícil de quebrar com outra abordagem
terapêutica.
Termino com alguns exemplos de
reações que as crianças podem apresentar depois de uma vivência traumática (imediatamente
a seguir ou algum tempo depois), retirados do livro “Usando EMDR com ninõs”:
-Alterações do Sono: pesadelos,
sono agitado, falar/gritar durante o sono, dificuldade em adormecer, medo de ir
dormir, enurese noturna;
-Culpa: responsabilizar-se pelo
acontecimento e por tudo o que acontece, comportamento excessivamente desajustado
que implica castigos ou, pelo contrário, comportamento excessivamente adequado
para a idade;
-Regressão: comportar-se como um
bebé, dependência excessiva, dificuldade em ficar sozinho, procura excessiva de
atenção);
-Medo: medo de aspetos
diretamente relacionados com o evento, reação excessiva a ruídos fortes ou
movimentos repentinos, reatividade excessiva ao toque, medos vários;
Muitas destas reações são normais
e expectáveis em algumas fases do desenvolvimento. É a intensidade, a frequência
e a persistência que traduzem que a criança não está a ser capaz de lidar sozinha
com os acontecimentos.
Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta EMDR
Responsável pelo Departamento da Infância
2 comentários:
Excelente artigo Alexandra!
Obrigada, Fernando!
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