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quarta-feira, abril 02, 2014

PEQUENOS GRANDES TRAUMAS DA INFÂNCIA

Quando se fala em EMDR, fala-se obrigatoriamente em trauma, o que pode levar a algum reducionismo de uma prática que se tem revelado abrangente, pois há tendência a associar o trauma a situações catastróficas. Se bem que o EMDR começou por ser essencialmente utilizado em pacientes com Perturbação de Stress Pós-Traumático (grande trauma), tem aplicação em quase todas as situações em que existe uma intensa experiencia emocional negativa associada a episódios “menores” (pequeno trauma). Se os grandes traumas são relativamente fáceis de identificar e mobilizar ajuda (acidentes, assaltos, mortes, bullying, abuso sexual, abandono), os pequenos traumas nem sempre são devidamente identificados e valorizados.

Na minha prática clínica com crianças, os pais perguntam frequentemente “qual é a causa?”, procurando identificar a origem da problemática dos filhos. Se muitas vezes a história individual e familiar ajuda a compreender, pelo menos, algumas das causas, outras vezes não conseguimos fazê-lo. Sabemos, sim, que aconteceu algo em determinada altura do desenvolvimento da criança que foi vivido com extrema intensidade. O que costumo explicar aos pais é que existem situações que são relativamente inócuas para os adultos e passam até despercebidas, mas que são vividas com grande angústia pela criança.

A infância é marcada por tentativas repetidas, fracassos e, finalmente, êxitos. Normalmente, as crianças têm o equipamento necessário para lidar com estes desafios. Para atingir estes feitos, a criança precisa de sentir que é amada, que tem valor, que é capaz e que está segura. Episódios de aparente pouca relevância, como uma queda no recreio do jardim-de-infância, engasgar-se com a comida, assistir a uma cena na TV, ouvir um estrondo repentino, ter um pesadelo, observar uma expressão facial de apreensão no pai ou na mãe, ter um mau resultado na escola, assistir a uma discussão, podem pôr em causa o sentimento de valentia e mestria que apoiam o percurso do desenvolvimento e o caminho para a independência. Frequentemente os adultos desvalorizam algumas destas situações porque as consideram normais ou pouco importantes. Por outro lado, poderão achar que a criança nem percebe o que se passa, por isso não vai ficar afetada. No entanto, a capacidade que as crianças têm para compreender a situação e expressar o que sentem é bastante inferior à intensidade com que a vivem.

Na infância as experiências são essencialmente sensoriais com emoções em bruto e, dada a dificuldade em elaborá-las, o reflexo surge sobretudo ao nível do comportamento. Dada a incapacidade em interpretar logica, racional e verbalmente os eventos, as crianças “gravam” na sua mente mensagens negativas que tendem a afetar o seu bem-estar e o seu funcionamento de forma prolongada, muitas vezes até à idade adulta. Alguns exemplos destas mensagens são: estou em perigo, não presto, não sou capaz de fazer nada, ninguém gosta de mim. Quantos de vós, adultos, se reconhecem nestas crenças negativas e como estas interferem na vossa vida pessoal, social e profissional? Imaginemos agora o que estas perceções de si próprias fazem a crianças com a vulnerabilidade típica da idade e sem a capacidade para as perceber, dizer e expressar.

Há tempos, um rapaz de 12 anos que apresentava “acessos de fúria” (entre aspas porque na verdade o que fazia era largar os livros e fechar-se no quarto) quando se confrontava com uma dificuldades escolar, tinha igualmente uma postura adultomorfa e erguia todas as suas defesas quando eu procurava chegar às suas emoções. Cerca de dois anos antes, houve um desacato à porta do prédio entre os pais e um vizinho, que acabou em agressões físicas. Este rapaz, na altura do conflito com 10 anos, ligou três vezes para o 112. Continuava, no entanto, a repetir “eu não fiz nada, devia ter feito alguma coisa para acabar com aquilo”, revelando um sentimento de impotência e uma crença de que devia ter feito mais do que fez. Três anos antes, a avó deste rapaz faleceu. Chegou a vê-la no hospital em fase terminal, mas não se despediu. Depois da morte da avó, começou a revelar grande agressividade na escola, batia nos colegas, atirava com as cadeiras. “Fui muito mau para a minha professora, sou mau quando sinto coisas”. O EMDR ajudou a perceber, mais uma vez, que o pensamento negativo era de que nada fez para salvar a avó. O processamento destas situações ajudou a desbloquear estas crenças negativas e irracionais (sou fraco, sou mau), permitindo a instalação de recursos e respostas mais adaptativos, associados a um pensamento mais positivo: este rapaz fez o que pôde e expressou-se como foi capaz, tendo em conta a sua idade. Passou a ser mais capaz de entrar em contacto com as suas vulnerabilidades, aceitando-as e reagindo de forma ajustada. As dificuldades escolares acentuavam esta perceção de que não era capaz porque era fraco, reagindo com “fúrias” que ao mesmo tempo que o faziam sentir-se mais forte, reforçavam igualmente a ideia de que era mau.

A psicoterapia EMDR foi bastante importante neste caso, tendo em conta que existiam vivências traumáticas que o colocavam numa posição muito defensiva e difícil de quebrar com outra abordagem terapêutica.

Termino com alguns exemplos de reações que as crianças podem apresentar depois de uma vivência traumática (imediatamente a seguir ou algum tempo depois), retirados do livro “Usando EMDR com ninõs”:

-Alterações do Sono: pesadelos, sono agitado, falar/gritar durante o sono, dificuldade em adormecer, medo de ir dormir, enurese noturna;
-Culpa: responsabilizar-se pelo acontecimento e por tudo o que acontece, comportamento excessivamente desajustado que implica castigos ou, pelo contrário, comportamento excessivamente adequado para a idade;
-Regressão: comportar-se como um bebé, dependência excessiva, dificuldade em ficar sozinho, procura excessiva de atenção);
-Medo: medo de aspetos diretamente relacionados com o evento, reação excessiva a ruídos fortes ou movimentos repentinos, reatividade excessiva ao toque, medos vários;


Muitas destas reações são normais e expectáveis em algumas fases do desenvolvimento. É a intensidade, a frequência e a persistência que traduzem que a criança não está a ser capaz de lidar sozinha com os acontecimentos.

Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta EMDR
Responsável pelo Departamento da Infância

segunda-feira, novembro 04, 2013

AS MENTIRAS DAS CRIANÇAS (II)

As crianças mentem por várias razões que muitas vezes se sobrepõem às fases do desenvolvimento moral. Muitas vezes mentem apenas por impulsividade e assim que percebem que o fizeram, mentem mais ainda, pois passam a ter de lidar com a possível consequência do ato inicial e com a zanga dos adultos por ter mentido.

Um dos principais motivos que levam a criança a mentir mais sistematicamente é o medo, por exemplo quando a família é muito rígida nas regras que estabelece e, sobretudo, quando algum dos adultos tende a ter um comportamento irracional e agressivo e excessivo nos castigos.

Tendem também a recorrer à mentira quando querem libertar-se de uma tarefa difícil, que lhes traz ansiedade e frustração, como por exemplo os trabalhos de matemática. Neste caso, a mentira serve para evitar o confronto com a dificuldade e com a possibilidade de fracasso.

Sobretudo na adolescência, a mentira pode surgir na tentativa de autonomização em relação aos pais, quando estes são muito rígidos, o que leva os jovens a arranjar estratégias para poderem sair com os amigos e viver outras experiências normais da idade; esta rigidez tem muitas vezes o efeito oposto, fazendo com que os pais tenham um menor controlo do que os filhos fazem, pois passam a fazê-lo às escondidas. Por outro lado, há ainda a questão da aceitação no grupo de pares, em que os adolescentes podem mentir para obter aprovação ou aceitação por parte de outros.

As crianças desenvolvem muitas competências por imitação e a mentira não é exceção. Algumas vezes os filhos ouvem os pais a dizer que não foram trabalhar porque estão doentes, quando na verdade estavam em casa à espera da entrega de um móvel novo. Os adultos utilizam muitas justificações e mentiras que, apesar de inocentes, transmitem a mensagem de que não faz mal alterar os factos. Vale a pena pensar nestes modelos quando se castiga ou se chama a criança de mentirosa.


Raramente a mentira, por si só, é um indicador de doença mental, sendo necessário outro tipo de características. No entanto, importa averiguar porque é que a criança mente, sobretudo quando o faz de forma sistemática.

Alexandra Barros
Responsável pelo Departamento de Infância

segunda-feira, outubro 07, 2013

AS MENTIRAS DAS CRIANÇAS (II)

As crianças mentem por várias razões que muitas vezes se sobrepõem às fases do desenvolvimento moral. Muitas vezes mentem apenas por impulsividade e assim que percebem que o fizerem, mentem mais ainda, pois passam a ter de lidar com a possível consequência do ato inicial e com a zanga dos adultos por ter mentido.

Um dos principais motivos que levam a criança a mentir mais sistematicamente é o medo, por exemplo quando a família é muito rígida nas regras que estabelece e, sobretudo, quando algum dos adultos tende a ter um comportamento irracional e agressivo e excessivo nos castigos.

Tendem também a recorrer à mentira quando querem libertar-se de uma tarefa difícil, que lhes traz ansiedade e frustração, como por exemplo os trabalhos de matemática. Neste caso, a mentira serve para evitar o confronto com a dificuldade e com a possibilidade de fracasso.

Sobretudo na adolescência, a mentira pode surgir na tentativa de autonomização em relação aos pais, quando estes são muito rígidos, o que leva os jovens a arranjar estratégias para poderem sair com os amigos e viver outras experiências normais da idade; esta rigidez tem muitas vezes o efeito oposto, fazendo com que os pais tenham um menor controlo do que os filhos fazem, pois passam a fazê-lo às escondidas. Por outro lado, há ainda a questão da aceitação no grupo de pares, em que os adolescentes podem mentir para obter aprovação ou aceitação por parte de outros.

As crianças desenvolvem muitas competências por imitação e a mentira não é exceção. Algumas vezes os filhos ouvem os pais a dizer que não foram trabalhar porque estão doentes, quando na verdade estavam em casa à espera da entrega de um móvel novo. Os adultos utilizam muitas justificações e mentiras que, apesar de inocentes, transmitem a mensagem de que não faz mal alterar os factos. Vale a pena pensar nestes modelos quando se castiga ou se chama a criança de mentirosa.


Raramente a mentira, por si só, é um indicador de doença mental, sendo necessárias outro tipo de características. No entanto, importa averiguar porque é que a criança mente, sobretudo quando o faz de forma sistemática.

Alexandra Barros
Responsável pelo Departamento da Infância da Psicronos