Depois de algum tempo decorrido sobre o debate público sobre as praxes (suscitada sobretudo pelas mortes de estudantes alegadamente em contexto de praxe), gostava de escrever algo sobre o assunto. Poderá já ser algo tardio mas tem a vantagem de poder ser escrito e lido de forma mais ponderada e menos reativa.
Um dos debates públicos a que assisti sobre o tema e que me chocou foi o debate feito no programa da RTP1, os "Prós e Contras" (http://www.rtp.pt/play/p1099/e142806/pros-e-contras). Começou como costuma começar o programa, com uma video-reportagem a fazer o apanhado da situação, neste caso das praxes. Este vídeo mostrava trechos de praxes de norte a sul do país onde estavam presentes algumas das faculdades representadas por estudantes no programa. Como estudante que fui da Universidade de Lisboa e tendo assistido a muitas praxes em redor da mesma (durante e pós curso), as atividades que vi retratadas na video-reportagem correspondiam ao tipo de atividades que eu já conhecia.
Qual não foi o meu espanto quando vejo todo um programa de excelência de debate e reflexão pública a ser quase completamente sabotado por fenómenos grupais de denegação e ataque. Não me refiro apenas à manifestação exaltada, ao estilo de um claque de futebol, da plateia, mas sobretudo a uma posição altamente defensiva dos discursos dos principais intervenientes e representantes da posição pró-praxe. O fenómeno foi tão intenso, a meu ver, que acho merecedor de uma análise per se.
Muito simplesmente, todos os representantes de Associações de estudantes das diversas Universidades, a par do Professor de Direito, Eduardo Vera Cruz, foram unânimes e peremptórios em afirmar, não só que a video-reportagem não representava a prática comum e a essência das praxes, como até se sugeriu ter havido, consciente ou inconscientemente, uma seleção enviesada dos piores trechos por forma a passar uma imagem distorcida e desfavorável das praxes. Desta forma, consegui-se chegar ao fim de um programa relativamente longo, sem que a quase totalidade dos estudantes admitisse que as praxes são atividades semelhantes às filmadas publicamente, nem tão pouco se definisse mais concretamente o que são então as praxes na perspetiva dos defensores das mesmas (houve sobretudo pseudo-argumentos que desviavam a atenção exultando as práticas grupais ligadas à Tunas, às serenatas, etc. que muito pouco têm a ver com as praxes propriamente ditas).
Ou seja, não foi possível haver consenso sobre a primeira questão mais básica: o que são as praxes? Afinal de contas o problema todo residirá na observação, descrição e interpretação "objetiva" da realidade do que se passa nestas atividades grupais. E é esta questão que não pôde ser aprofundada neste grande debate, quer por ter sido desvirtuada pela maioria, quer por não ter havido tempo ou outros níveis de análise mais penetrantes. Gostaria de explorar então um pouco desta questão, relacionando-a com o fenómeno acontecido neste debate.
Sem me querer alongar muito, a praxe corresponde, a meu ver, a um ritual grupal de iniciação/integração num grupo. Mas definir a praxe apenas por esta definição parece não captar a especificidade da maior parte da natureza destas práticas, envolvendo atitudes de domínio e comando, hierarquia, submissão e mesmo humilhação, mais ou menos, coercivas e violentas, principalmente psicologicamente mas também fisicamente (penso não ser assim tão raro). E sobre isto destaco dois pontos:
1- O principal argumento pró praxe parece ser o de que é um importante meio de integração, conhecimento uns dos outros e aprofundar dos laços de formas divertidas. A questão que fica é: será que para haver integração e interação entre colegas recém-chegados e colegas mais velhos, tem de se recorrer a práticas de supremacia e dominação (ainda que, como disse, com diversos níveis de brincadeira, afetividade, coerção ou pressão)?
2- O segundo ponto é talvez o busílis de toda a questão: desde quando é que as brincadeiras que se fazem nas praxes podem ser qualificadas na sua maioria por adjetivos tão pesados como "violentas", "humilhantes", "dominadores", " de submissão", "coercivas"? É aqui que penso haver uma grande dificuldade, não só ao nível dos defensores das praxes, como ao nível mais abrangente da sociedade. Penso que esta é uma das questões que merecia ser debatida e pensada a um nível mais geral e profundo. Tem que ver com o que penso ser ainda, uma transição de valores culturais. Antigamente, por exemplo, a escravidão não era uma violência era normal e natural; antigamemte o voto exclusivamente masculino não era discriminatório, era realista e normal; antigamente a violência doméstica não o era, era simplesmente banal e nada de mais; antigamente as crianças eram posse dos progenitores e desprovidas de direitos, hoje em dia cada vez mais são consideradas como sujeitos com uma dignidade e direitos próprios. Ou seja, a sociedade tem caminhado cada vez mais no sentido de uma maior sensibilidade e proteção dos mais fracos, valorizando a igualdade e liberdade de todos em cada vez mais situações.
No entanto, estamos longe de ser capazes de discernir com a clareza e indignação suficientes, muitas formas de violência que hoje ainda passam muitas vezes por normais e abaixo do limiar da preocupação/consciência. Não são bem "violências", são manifestações mais ou menos ajustadas ou dentro do socialmente aceitável e que não se justifica serem "dramatizadas". Um destes exemplos é o uso da violência física na educação dos nossos filhos. Dá muito trabalho educar sem bater: exige uma auto-regulação constante, um grande trabalho a montante que envolve muita disponibilidade, paciência e intervenção firme, calma e atempada. É quando algo de entre isto tudo falha que surge a necessidade de coerção ou punição física como descarga da tensão do pai e controlo desesperado da conduta do filho. Esta questão é atualmente controversa por levantar muitas questões de natureza prática e que não terei oportunidade de desenvolver aqui mas que poderá ser aprofundada de forma muito prática e elucidativa no livro "Educar sem bater", de Luís Maia.
Mas isto tudo para voltar à questão, que penso colocar-se neste momento na mente de muitos estudantes defensores da praxe: desde quando é que as brincadeiras que se fazem nas praxes podem ser qualificadas na sua maioria por adjetivos tão pesados como "violentas", "humilhantes", "dominadores", " de submissão", "coercivas"? Esta questão pode também ser acompanhada de outras semelhantes mas respeitantes a outras áreas: desde quando é que dar uma palmada no meu filho é "crime", ou reprovável ou negativo? Desde quando é que insultar veementemente um árbitro é excessivo e não simplesmente normal e natural?
Ou seja, a questão de fundo prende-se com o que foi exemplarmente aprofundado no livro "A loucura da normalidade", de Arno Gruen. É que a responsabilidade daqueles que possuem uma maior experiência e conhecimento (ou seja, os nossos pais, patrões, os decisores e todos os que, como os alunos veteranos, estão numa posição privilegiada (de maior poder) face aos outros) é ainda frequentemente exercida e acompanhada da contrapartida da submissão, controlo e dominação. Em vez de ser um ato de cuidar generoso, é uma troca: eu dou-te coisas e protejo-te e tu prestas-me serventia, reverência ou submissão. Claro que esta troca, mais ou menos "generosa", não é, na maior parte dos casos consciente. No entanto, esta dinâmica de dominação, obediência e conformismo está ainda muito enraizada culturalmente.
Veja-se um trecho do livro de Arno Gruen, exemplificador deste fenómeno na educação:
"«Torno-me no que tu queres para tu tratares de mim. A minha sujeição é, a partir de agora, o meu poder sobre ti, com o qual te obrigo a dedicares-te a mim.» Assim, o ato de se fazer dependente converte-se na vingança pela sujeição. Este ato tem várias facetas. Primeiro, a criança adota o critério dos pais. O que dá pelo nome de interiorização. É, portanto, um processo de colaboração pela subjugação. Segundo, isso significa que a criança começa a odiar em si tudo o que possa fazê-la entrar em conflito com as expetativas dos pais. E, terceiro, este ódio de si próprio acarreta a predisposição a subjugar-se cada vez mais."
Este fenómeno, eminentemente, inconsciente (porque intolerável à consciência humana!) funda a violência humana, no ataque que faz à autenticidade e autonomia da criança. Ela aprende desde que nasce que se fizer certas coisas é má e que os pais ficam contentes com ela se for como eles "querem". E assim, nasce a troca social fundadora da dominação, obediência e conformismo: troco a minha liberdade, autonomia e (auto-)empatia, bem como, a minha responsabilidade, pela segurança e conforto do conformismo fomentador da pertença e aceitação. O "conformista" típico poderia então ser definido como "um homem sem grande ambição, mas capaz de arranjar uma explicação do mundo que lhe permita viver sem ambiguidade" (Naipul, cit. por Gruen, 1995).
Este fenómeno pode ser visto com grande clareza nos casos extremos que são os cultos e seitas, ou os contextos de guerra (o holocausto, em particular) onde a obediência é claramente mais valorizada do que a liberdade e responsabilidade pessoais. Ou ainda no chamado "síndrome de Estocolmo", em que os subjugados são de tal forma coagidos que "aprendem" mesmo a aliar-se aos agressores como forma inconsciente de se aliarem à vida (evitando assim o medo de morrer associado naquele contexto à desobediência e à liberdade).
Retomando o exemplo das praxes, podemos ver como parece ser um fenómeno, quase a meio termo entre cultura e culto: possui um código próprio, uma organização social e hierárquica bem definida e rituais grupais. A amostra do comportamento das comissões de praxe e outros estudantes presentes no programa Prós e Contras agiram como um grupo muito coeso e uniforme (nas ideias e nos "uniformes") numa lógica de in group, out group, ou seja, defendendo instintivamente os seus e reagindo agressiva e instintivamente aos de fora, aliás, numa lógica semelhante às interações entre "veteranos" e "caloiros". Os valores do grupo foram tão manifestamente presentes que surpreendentemente se sobrepuseram à própria realidade do que são as praxes, numa atitude de denegação defensiva da realidade com o objetivo de proteger o clã.
Outra questão diz respeito aos processos inter-geracionais e culturais que levam à continuidade e manutenção do sistema. Sabe-se que a aprendizagem social se faz sobretudo por identificação aos modelos sociais. Numa sociedade de hierarquia e poder, quem foi subjugado quererá depois redimir-se e subjugar alguém assumindo ele próprio o poder do seu modelo de relação.
A verdade é que o contexto de praxe fomenta dinâmicas relacionais de sadismo e masoquismo que, por melhor que se possam desenrolar e tolerar na maior parte dos casos, são um terreno muito propício a abusos daqueles que mais abusados foram nas suas vidas e por isso mais rédea solta dêem aos seus impulsos sádicos. O que fazer? Não sei. Antes de mais pensar e sensibilizar para o assunto.
Para terminar o artigo que já vai longo, chamar à atenção para os traumas que resultam destas dinâmicas sociais de certos graus de violência, sobretudo psicológica. Hoje, felizmente, já não é só a violência física que é fonte de preocupação e cada vez mais se atenta a esta, muitas vezes pior, forma de violência. Neste sentido, a psicoterapia EMDR revela-se como particularmente útil pela sua vocação e eficácia de realce em problemáticas de cariz traumático.
Sobre EMDR: http://www.psicronos.pt/consultas/emdr_12.html