domingo, outubro 08, 2006

Volver de Almodôvar

Uma das nossas leitoras, há já algum tempo, chamou-me a atenção para o novo filme de Almodôvar e disse que gostaria de ler um comentário nosso sobre ele. Finalmente fui vê-lo.

Acho que o filme fala, entre outras coisas, da transgeracionalidade da psicopatologia e, obviamente, do incesto. É um filme que excluí o masculino. Os homens que aparecem são secundários e representam de alguma forma, o mau. São os homens que violam, que abusam, que são desrespeitosos e insensíveis. Na minha opinião, o filme contém um ataque ao masculino.

É um filme catalogado como surrealista mas, na minha opinião, é até muito realista em muitas das coisas que retrata, nomeadamente no dia-a-dia da vida e realidade espanhola.

Para quem não viu o filme vou tentar resumi-lo em meia dúzia de palavras. Fala de uma família (mãe, pai, tia e duas irmãs) que cresceram numa pequena povoação. Uma das irmãs (Raimunda) foi abusada sexual pelo pai e engravidou dele com completo e absoluto desconhecimento da mãe. Após a gravidez, Raimunda não revela o nome do pai da sua filha e sai de casa, ressentida e magoada com a mãe por esta não a ter protegido do abuso de que foi alvo. O pai, incapaz de lidar com as consequências dos seus actos, emigra temporariamente e quando regressa continua infiel à mulher (Carmen Maura), mantendo relações extraconjugais, inclusivamente com a vizinha da frente.

A bebé fruto da relação incestuosa nasce e quando tem 14 anos vê-se em circunstâncias semelhantes à da sua própria mãe, isto é, o companheiro da mãe que ela pensava ser o seu pai, tenta abusar sexualmente dela. A diferença é que a adolescente (Yohana Cobo) mata o pai para evitar o abuso e a mãe protege-a, cuidando para que o homicídio não seja descoberto. Dez anos depois da concepção incestuosa, a mãe de Raimunda mata o marido quando ele dormia a sesta com a amante e mata-o porque ficou a saber do incesto. Nenhum dos homicídios é condenado no filme, ambos aparecem como justificados e ninguém é punido por neles, nem sequer é perceptível o sentimento de culpa ou o remorso.

Volver fala da transgeracionalidade da psicopatologia na medida em que vemos a reprodução em duas gerações diferentes de uma mesma situação. A filha abusada sexualmente pelo pai e grávida deste, escolhe para seu companheiro um homem que vai tentar abusar da sua filha quando ela tem uma idade próxima há que ela própria tinha na altura em que foi abusada pelo seu pai. Diríamos que inconscientemente, Raimunda (Penélope Cruz) aceitou a filha fruto da relação incestuosa, mas não foi capaz de “resolver” a zanga e ódio com que ficou em relação aos seus pais, principalmente ao seu pai, o agressor. Este ódio não resolvido passou inconscientemente como legado transgeracional e foi “depositado” na filha que perante uma situação semelhante àquela que a sua mãe tinha vivido age o ódio materno, matando o pai. Raimunda revive a situação de que foi vitima 14 anos antes e contrariamente à sua própria mãe, coloca-se do lado da filha e enterra o marido. A nova situação de incesto ajuda a resolver o “trauma” que tinha ficado bloqueado. A nova aproximação entre mãe e filha (Raimunda e a sua mãe) acontece à custa da morte do pai (morto num incêndio causado deliberadamente pela mulher), como se tivesse sido reposta a justiça. A pressão para que a verdade sobre o 1º incesto se saiba é exercida pela filha da vizinha (Agustina/ Blanca Portillo) que insiste em saber o que aconteceu à sua mãe.

Num certo sentido, poderíamos dizer que este filme é uma aproximação ao mito de Édipo, há um elemento que pressiona para que a verdade seja investigada (como a esfinge em Édipo); há uma relação incestuosa (como Édipo e Jeocasta) e há a necessidade de voltar ao passado para resolver ódios e rancores não digeridos. A grande diferença está no facto de em Volver (que significa voltar em português) o masculino é aniquilado e os “maus” estão apenas num dos lados; não há densidade psicológica matizada pela ambivalência do desejo. Os homens são agressores e as mulheres são vítimas. As mulheres tornam-se agressoras para repor a justiça depois de terem sido vitima. Na minha opinião o filme peca por ser sexista, mas mostra a crença (inconsciente) provavelmente fortemente instalado em muitas pessoas, de que os homens são potencialmente agressores e as mulheres vitimas; mas que o dia da vingança acabará por chegar.

É precisamente na aniquilação do masculino que me parece que o filme perde o seu grande potencial. A transgeracionalidade mostra a importância de “recordar, repetir e elaborar”, isto é, mostra como para aprendermos a lidar com um determinado episódio traumático temos que o recordar e por vezes repeti-lo experiencialmente para que o possamos elaborar definitivamente. O próprio processo psicanalítico é, num certo sentido, uma forma de criar condições apropriadas para que a pessoa possa recordar, repetir e elaborar. Contudo no filme, a parte do elaborar não é suficientemente trabalhada, não há uma verdadeira elaboração da experiencia traumática de ter sido abusada sexualmente pelo pai, há sim, o agir de uma vingança e a aniquilação do agressor. Matar o pai não é solução na medida em que esse mesmo acto é gerador de um outro trauma, como dizia a adolescente para Raimunda “pensas que é fácil ter de lidar com o facto de sabermos que matámos o nosso próprio pai?” (citação reproduzida de memória). No filme a adolescente não mata verdadeiramente o pai, porque o seu verdadeiro pai era o seu avô. Portanto, na verdade, no filme, nenhuma filha mata o seu próprio pai; mas a fantasia é a de que a filha mata o pai.

1 comentário:

Ana Almeida disse...

Olá, Ana.
Ainda bem que gostou da minha “análise”, não sou perita em Almodôvar e também não tenho pretensões a ser crítica de cinema. Para que fique claro, gostaria de afirmar que gostei muito do filme, como aliás tenho gostado de todos os filmes de Almodôvar (uns mais do que outros).
A minha referência ao facto do filme ser, na minha opinião, sexista assenta no facto de quase não existirem homens no elenco. É um mundo de mulheres agredidas pelos homens (o pai, os maridos). Não dei um destaque particular a algo que é óbvio, precisamente por me parecer demasiado evidente; mas talvez valha a pena referir, porque o que é óbvio para uns não é para todos. O óbvio tem haver, muitas vezes, com as referências habituais.
O óbvio é os danos terríveis da agressão sexual de adultos sobre adolescentes. Agressão aumentada e potenciada pelo facto do agressor ser o próprio pai. As situações de violência e abuso sexual perpetradas por elementos da própria família são, infelizmente, bastante frequentes e as consequências psicológicas devastadoras que dai advém não são, na minha opinião, devidamente retratadas no filme.

A sua questão “Quando é que o agir e o pensar estão em equilíbrio?”, parece-me ser num certo sentido, uma falsa questão, porque pressupõe que a acção e o pensamento se encontram em pólos. Na minha opinião, o pensamento e a acção fazem parte de um único movimento. Agirmos sem pensarmos é gerador de profundo sofrimento assim como pensarmos sem agirmos. O pensamento deve anteceder e preceder a acção, mas só tem sentido se a acção também tiver lugar.
É comum actualmente, pelo menos nos meios em que circulo, pensar-se que o pensamento deve substituir a acção; que no lugar da acção devemos colocar o pensamento, mas, na minha opinião, isto é um equivoco.
Pegando no exemplo do filme de Almodôvar (Volver). A violação que Raimunda sofreu e que teve como consequência ela ficar grávida exigia uma acção. A acção de Raimunda foi sair de casa dos pais e romper com a família. Esta acção implicou uma espécie de divisão do ego, por um lado lida com a realidade (foi abusada, violada e deu à luz uma filha) e de outro recusa/nega essa realidade (não diz quem é o pai da criança). Outras acções poderiam ter sido possíveis, Raimunda poderia ter assassinado o seu próprio pai antes da consumação da violação (como fez a sua própria filha); poderia ter denunciado o pai junto da mãe; poderia ter denunciado o pai junto das autoridades; poderia ter falado disso à irmã e junto com ela poderiam ter tentado enfrentar o pai e fazê-lo compreender os danos, etc. A opção de Raimundo permitiu-lhe manter afastada da consciência a verdade (tinha sido violada pelo pai e concebido um filho dele) e por isso não foi capaz de elaborar a um nível simbólico o que aconteceu. O acontecimento recusado/negado foi-se desenvolvendo não transformado e o assassinato aparece como a forma mais radical de negação. A morte do agressor não altera o acontecimento, mas reforça a negação. Se o agressor está morto, não existe para relembrar a agressão de que se foi vitima e é mais fácil, num certo sentido, fazer de conta que nada aconteceu. O desaparecimento do agressor através da morte equivale inconscientemente ao desaparecimento da agressão e da violação. Mas, na realidade as coisas não desaparecem com a morte do perpetrador, elas mantém-se e continuam a fazer pressão (a nível inconsciente) para serem “resolvidas”.