quarta-feira, dezembro 19, 2012

Solidão a epidemia secreta da era da hiperconectividade

Esta semana uma jornalista da revista Saber Viver http://www.saberviver.pt/, Sofia Cardoso, pediu-me uma entrevista porque estava a escrever um artigo sobre solidão. Ela achou o tema interessante após a leitura do livro de Emily White, traduzido para português como o titulo "Solidão a epidemia secreta da era da hiperconectividade" e publicado pela Pergaminho http://www.pergaminho.pt/

Eu própria li o livro e também o achei interessante. É um relato auto-biográfico, a descrição da sua vida, a sua experiência de solidão crónica.

Partilho convosco as perguntas da Sofia Cardoso e as minhas respostas.
A solidão é, de fato, um tema bem interessante e sobre o qual a psicologia e a psicanálise nem sempre se debruçam o suficiente.



Tema: A solidão no feminino

Ângulo:
Em que situações pode ser saudável e a partir de que momento se pode transformar num problema psíquico

Questões:

1. Com o número de divórcios a subir, ano após ano, e as mulheres a investirem cada vez mais na sua carreira profissional, colocando para segundo plano os laços afetivos, surge uma nova realidade social: mulheres entre os 25 e 35 anos que se encontram a viver sozinhas. Quais são os riscos desta «nova solidão»?

Efetivamente o número de pessoas (mulheres e homens) entre os 25 e os 35 anos a viverem sozinhas tem vindo a aumentar. Esta “nova solidão” comporta riscos importantes em termos da qualidade da saúde emocional e mental e, naturalmente, sociais. O maior risco está na possibilidade da pessoa desenvolver um quadro depressivo paralelo, levando-a ao desinvestimento da sua atividade profissional e em situações de maior gravidade ao risco de suicídio. Em personalidades predisponentes, a solidão excessiva pode levar a descompensações psicóticas e ao desenvolvimento de quadros psicopatológicos de gravidade superior ao da depressão. Para além de ser o terreno fértil para o desenvolvimento de um quadro depressivo e/ou ansioso, a solidão a partir de uma certa altura pode promover o isolamento e o isolamento diminui a possibilidade da constituição de família (núcleo das estruturas sociais) e de integração social alargada. Neste sentido as consequências serão também sociais dado que a faixa etária referida é aquela em que habitualmente as pessoas se tornam mães e pais. Estando a viver sozinhas não estabelecem relações de casal duradouras e a procriação fica, num certo sentido, comprometida.  

2. Para algumas mulheres, esta solidão é encarada como uma sensação de liberdade e independência. Nestes casos, podemos falar de uma solidão saudável? Como se caracteriza a solidão saudável?

A capacidade de estar sozinho é bastante saudável. Mas a capacidade de estar sozinho não é a mesma coisa que a solidão. A capacidade de estar sozinho dá conta da existência de uma vida mental rica e profunda e de uma boa relação consigo próprio. Quando a pessoa se encontra em circunstâncias nas quais tem que estar sozinho (leia-se: sem ter a companhia frequente de pessoas que lhe são próximas e intimas), por exemplo, quando tem de ir trabalhar para fora durante um certo período de tempo, ter a capacidade de continuar a sentir-se bem, capacidade para aproveitar o tempo livre e os recursos disponíveis é revelador de saúde mental e emocional, revelando robustez psicológica. Estarmos bem quando estamos sozinhos não é, contudo, a mesma coisa do que vivermos em solidão. Viver em solidão implica longos períodos sem relações de proximidade emocional e ou intimidade, implica a auto-percepção de “não ter ninguém”, o sentimento de isolamento crónico, ter vontade de falar com alguém e não ter ninguém disponível, etc.

O psiquismo tem uma enorme plasticidade e capacidade de adaptação às circunstâncias externas. Quando a pessoa é forçada a longos períodos de solidão e isolamento, o psiquismo tende a adaptar-se, da mesma forma que se adapta quando a pessoa é forçada à pobreza crónica ou a longos períodos de cativeiro, como acontece com os reclusos. O psiquismo tenta adaptar-se e a transformar a perda em ganho. Neste sentido, quando a pessoa fica durante muitos anos a viver sozinha acaba por desenvolver um estilo de vida bastante auto-centrado e fechada sobre si própria. Esta realidade tem implicações nas dinâmicas sociais, a pessoa perde o hábito de fazer cedências (tem, no seu dia-a-dia, apenas que ter em conta a sua própria opinião, prazer, vontade, etc e desabitua-se de ter em consideração outras opiniões, outros gostos, etc.), tende a criar rituais de comportamento (por exemplo: manter a casa arrumada de uma certa maneira, fazer refeições a uma hora fixa, etc). Esta liberdade de ação e a sensação de que não se tem que prestar contas a ninguém é um ganho substancial e num certo sentido, viciante. A comunicação e partilha de afetos profundos exige um certo treino, quando a pessoa passou muito tempo em solidão as competências de partilha e comunicação ficam “enferrujadas” e a pessoa pode sentir dificuldade em iniciar uma conversa mais profunda ou falar de si e face a essa dificuldade opta pelo caminho mais fácil que é ficar calada e dessa forma potencia o sentimento de isolamento e solidão.

A solidão saudável é a capacidade de estar só.

Em longos períodos de solidão a pessoa pode manter-se saudável mantendo uma boa capacidade de estar só e simultaneamente mantendo relações de partilha significativa e profundas com outras pessoas (com amigos, por exemplo). 
   
3. A partir de que momento, deixamos de estar perante uma solidão saudável? Quais são os sinais de alarme que indicam que a solidão passou a ser uma “obsessão” ou um problema psíquico, resultante da dificuldade de integração social?

Sinais de Alarme:
- Sentimentos de tristeza constantes associados ao fato de estar sozinho
- Sentimentos constantes e persistentes de vazio emocional
- Consciência dolorosa de isolamento social e emocional
- Evitar persistentemente ir para casa para não se confrontar com a casa vazia
- Dormir pouco (porque nunca se consegue estar em casa ou não se consegue descansar em casa) ou dormir muito (refugiar-se da consciência da solidão no sono)
- Evitar pessoas por ter a sensação de que já não sabe o que dizer nem como estar
- Passar frequentemente mais de 48horas (habitualmente fins-de-semana para as pessoas que trabalham fora de casa) sem falar com ninguém seu conhecido
- Perda de apetite recorrente quando está sozinho ou inversamente incapacidade de controlar a ingestão de alimentos muito calóricos
- Ficar num estado de grande ansiedade quando está sozinho por períodos prolongados
- Sentir-se mal quando está com pessoas
- Abandonar relações amorosas por se sentir incapaz de fazer cedências ou modificar o seu estilo de vida autocentrado.

4. Tendo em conta a sua prática clínica, quais são as principais causas que estão na origem da solidão nesta faixa etária?

As causas podem ser muito variadas (irei apenas referir algumas porque a lista é demasiado grande e não sei se conseguiria identificar todas):
- Mudança de residência. A pessoa cresceu numa determinada cidade e quando inicia os estudos superiores muda de residência e nunca conseguiu verdadeiramente re-integrar-se no novo ambiente;
- Divorcio e/ou separação acompanhada de um estado depressivo latente que leva a pessoa a retrair-se no contacto e convívio com outras pessoas
- Isolamento e solidão instalada na infância e perpetuada na idade adulta
- Insegurança e baixa auto-estima (que inibem a pessoa de interagir socialmente com liberdade e convicção de vir a ser bem aceite, levando-a a ser excessivamente tímida, retraída, calada, etc.)
- Fobia social (dificuldade em sociabilizar, crises de ansiedade quando está em grupo)
- Autocentração, egoísmo e dificuldade de abdicar dos seus pontos de vista e estilo de vida
- Artificialidade no contacto com as outras pessoas por falta de habito de estar com outras pessoas, por insegurança ou por ter desenvolvido a ideia de que se mostrar como é os outros vão “fugir” dela e então mostra um falso-eu, projeta uma imagem de si que não corresponde à sua personalidade mais autentica;
- Circunstancias externas desfavoráveis à socialização (não domínio da língua -acontece, por exemplo, com emigrantes – dificuldades motoras ou de saúde física que impedem a pessoa de sair e participar em eventos culturais e/ou sociais, desenraizamento em grupo de referencia (as pessoas que conhece não partilham dos mesmos valores, ideias, ~ideais, etc), dificuldades financeiras (pobreza) que não permitem o uso de instrumentos de socialização que implicam gastar dinheiro (viagens, idas frequentes a eventos públicos, festas, etc.)


5. Que consequências pode ter uma solidão a longo prazo?
A consequência mais grave será o suicídio (ou a tentativa de suicídio). O desenvolvimento de quadros depressivos (com maior ou menor gravidade) é frequente. Desenvolvimento de doenças do foro psicossomático (problemas de pele, alterações auto-imunes, etc.). Desinvestimento motivacional na carreira e de uma maneira geral, na vida. Perda de criatividade. Desenvolvimento de sentimentos de raiva, inveja e ressentimento que predispõe a pessoa a quezílias, querelas e litigâncias de uma maneira geral. Perda da oportunidade de criar uma família e ter descendentes.   

6. Podemos falar numa «solidão crónica»? Em que casos?

Sim, penso que sim. Quando a solidão se prolonga por muitos anos e o psiquismo se adaptou a um estilo de vida isolado e solitário, a solidão passou a ser crónica e a pessoa pode, até mesmo, ter deixado de lutar contra ela ou de a identificar como um problema. A solidão e o seu estilo de vida são assimilados pela personalidade e passa a fazer parte da própria pessoa.

7. Sentirmo-nos sozinhas com frequência pode ser o começo de um estado profundo de solidão?

A pessoa pode sentir-se sozinha mesmo estando acompanhada. Quando a pessoa se sente sozinha com frequência significa que a solidão é um problema. Pode ser (ou não) um começa de um estado profundo de solidão, depende da presença de outros fatores. Quando é concomitante com períodos longos de isolamento (meses ou anos), quando não coincide com mudanças de fundo na vida da pessoa (separação, mudança de residência, emprego, etc), quando é acompanhado de resistência ao contacto com os outros e à sensação de “não saber o que dizer ou fazer na presença de outros”, etc.
Sentimo-nos sozinhas com frequência é, em primeiro lugar, um sinal de alarme.

8. Quem são as pessoas mais propensas à solidão?

Mais uma vez irei apenas enumerar algumas situações, mas a lista é demasiado extensa e não tenho, sequer a certeza, de que a conseguisse identificar de forma exaustiva. Pessoas com famílias muito pequenas e que não residem na mesma cidade. Solteiros, divorciadas sem filhos e que desenvolveram estados depressivos latentes após o divórcio; pessoas que não se identificam com os colegas de profissão (ou com a própria profissão), pessoas com poucos recursos e competências sócias, pessoas com baixa auto-estima, inseguras e instáveis emocionalmente. Pessoas com perturbações de personalidade previas, nomeadamente, com tendência natural ao isolamento, com dificuldades de comunicação e interação com os outros, muito desconfiadas, e com dificuldades em estabelecer relações com vínculos profundos. Pessoas com fobia social. Pessoas com orientação sexual homossexual inconsciente (pessoas com tendências homossexuais, mas incapazes de aceitarem essa realidade e que persistem em estabelecer relações heterossexuais que acabam por não ser bem sucedidas)

9. Quais são os principais erros que as mulheres cometem que potenciam esta solidão?

- Dedicarem-se excessivamente à carreira e à profissão
- Não tratarem os estados depressivos latentes pós-divorcio de forma preventiva
- Não trabalharem a sua auto-estima no sentido de a fortalecer
- Não trabalharem as competências de socialização e de comunicação no sentido de as ampliarem e desenvolverem
- Não identificarem tendências para o desenvolvimento de fobia social e não promoverem o tratamento dela atempadamente


10. O facto de comunicarmos cada vez mais pelas novas tecnologias aumenta a probabilidade de nos tornarmos pessoas mais solitárias? De que forma?

As novas tecnologias, na minha opinião, tanto podem aumentar a probabilidade de nos tornarmos pessoas com uma vida social mais ativa como pode, paradoxalmente, ter o efeito inverso. Muitas pessoas encontram através de ferramentas de socialização como o facebook e sites de encontros, novos amigos e recuperam conhecimentos antigos e que se tinham perdido. Tenho tido conhecimento, de vários inícios de namoro e de reencontro de velhos amigos iniciados na internet e que se mantiveram muito para além da internet. As novas tecnologias podem funcionar como uma porta de entrada para estabelecer contactos e potenciar aproximação a grupos de pessoas com interesses e afinidades próximas das nossas e dessa forma permitir uma maior integração social e aumentar as oportunidades de socialização fora do espaço virtual, com encontros e partilhas presenciais. Contudo a possibilidade de se poder socializar sem sair de casa também pode facilitar a solidão e o isolamento. Através da internet a pessoa pode esconder-se, criar uma personalidade diferente da sua (uma espécie de avatar) e distanciar-se cada vez mais de si próprio, pode desenvolver uma socialização de superfície sem verdadeiramente se partilhar ou se dar a conhecer e pode ter a sensação subjetiva de satisfação das suas necessidades emocionais de socialização sem verdadeiramente as satisfazer ou suprimir. É como comer um bolo, pode gerar a sensação de se ter “matado a fome”, mas no fundo o bolo não tem grande capacidade de alimentar o organismo. As novas tecnologias podem, portanto, permitir a sensação de se manter uma socialização mínima, preservando o isolamento.

11. Há pessoas que se sentem “sozinhas” o tempo todo. Porquê? E como podem superar essa sensação?
A sensação de estarem sozinhas mesmo quando acompanhadas habitualmente está relacionada com outras dificuldades psicológicas, dificuldades na entrega e partilha, dificuldades no estabelecimento de vínculos profundos, dificuldades de identificação com os pares, não se sentirem compreendidas e aceites, etc.
A forma de superação depende da dificuldade subjacente. Se a dificuldade é de não identificação com os valores do grupo de pares ou com o não convívio com pessoas que partilhem os mesmos ideias e afinidades, a pessoa poderá tentar superar esse sentimento sendo ativa na procura de pessoas que tenham ideias e afinidades próximas (nestas situações a internet pode ser uma excelente ferramenta para identificação de pessoas com interesses semelhantes). Se a sensação de estar sozinha o tempo todo corresponde a um isolamento social marcado e crónico, a pessoa vai precisar do máximo de apoio para reconstruir (ou construir pela primeira vez) uma rede social. Esse apoio poderá vir da família, ou de estruturas sócias, assistentes sociais, psicólogos, médicos, etc. Quando a pessoa se sente sozinha o tempo todo, o acompanhamento psicológico pode ser extremamente importante quer para evitar o desenvolvimento de um quadro depressivo quer para ajudar a pessoa a modificar a sua personalidade tornando-a mais flexível e sociável, quer estimulando e incentivando os movimentos de procura de outras pessoas e de socialização.

12. Em termos de diagnóstico, a solidão pode ser confundida com a depressão. O que as distingue?
A solidão pode ser um fator precipitante ou de agravamento da depressão. A solidão ser também uma consequência da depressão. Até agora e tanto quanto é do meu conhecimento a solidão não é considerada uma perturbação psíquica. O isolamento social ou a solidão é, como a pobreza, por exemplo, uma característica “ambiental”. A solidão (enquanto sentimento subjetivo) faz parte de vários quadros psicopatológicos e simultaneamente é também um sentimento comum e experienciado por qualquer pessoa psiquicamente saudável. O sentimento de solidão é, num certo sentido, como a tristeza, uma emoção normal e adequada em muitas circunstâncias da nossa vida. Ser o sentimento dominante, ser o pano de fundo sobre o qual a vida acontece é que torna a solidão um problema cuja gravidade poderá variar bastante. Acho que dificilmente a solidão (ou o isolamento social) poderá ser visto como um problema independente e autónomo. Acho que a solidão, mesmo que central na vida da pessoa, deve ser enquadrada numa compreensão mais alargada e profunda do seu funcionamento psíquico.

13. Quais são as terapias que existem para tratar a solidão?

Como a solidão não é identificada como um problema independente não existem terapias específicas para ela. É, com maior facilidade, visto como um problema social e existem vários instrumentos sociais que tentam minimizar os riscos de solidão, principalmente junto de pessoas de idade avançada, e promover o convívio entre pessoas. Os centros de dia para pessoas de idade avançada são um exemplo desses instrumentos sociais.
Na faixa etária sobre a qual o artigo incide, não existem tanto quanto eu saiba instrumentos sociais organizados para fazer face a esse problema. A solidão é habitualmente tratada e trabalhada em qualquer processo psicoterapêutico. O apoio psicológico especializado é fundamental para prevenir que a solidão se torne crónica e para evitar o desenvolvimento de quadros psicopatológicos de maior gravidade, como seja, a depressão ou a fobia social.

14. Que conselhos/dicas práticas podemos deixar às nossas leitoras para evitar o sentimento de solidão?

- Estimule as amizades, cuide delas promovendo convívios frequentes entre si e as pessoas que a rodeiam
- Mostrar-se como é. Nao tente cativar as pessoas mostrando-se diferente daquilo que é, porque esses contactos dificilmente poderão evoluir para amizades mais profundas e autênticas.
- Aprenda a falar de si e dos seus sentimentos com segurança e autenticidade. Não seja demasiado autocentrado, nem gabarolas; mas também não seja lamechas nem massacrante estando sempre a falar dos seus problemas.
- Aprenda a ouvir os outros e a ser empático com eles.
- Abra espaço dentro de si para as pessoas que são diferentes de si.
- Aprenda a respeitar e a valorizar as diferentes formas dos outros serem, os seus estilos de vida, rituais, etc.
- Desenvolva amizades com diferentes graus de profundidade. Poderá abrir-se e expor-se aqueles que lhe são mais próximos e íntimos e poderá manter uma socialização com maior superficialidade com aqueles que estão mais distantes do seu núcleo de amizades. Aprenda a relacionar-se com amigos íntimos, amigos circunstancias e conhecidos.
- Procure pessoas e grupos de pessoas com atividades, gostos e ideias semelhantes ao seus
- Mesmo quando envolvido numa relação amorosa intensa não deixe de estimular e alimentar as amizades
- Evite habituar-se ao isolamento. Mesmo que sinta algum desconforto force-se a aceitar convites, a ir a convívios e quando estiver lá tente retirar o máximo de prazer e satisfação.
- Pense em si de uma forma segura e confiante. Compreenda que nem todas as pessoas poderão gostar de si, mas que encontrará sempre pessoas que gostam de si e que têm afinidades consigo

1 comentário:

esqueci a ana (ex-ana) disse...

Partilhei a questão 3 e sugeri visita.