sexta-feira, janeiro 24, 2014

Quando o Passado Inconsciente Dita a Escolha do Parceiro


Há quem diga que no momento em que escolhemos o nosso companheiro ou a nossa companheira, já sabemos, ainda que inconscientemente, como irá ser ou como irá terminar essa relação.

De facto, a psicanálise e a experiência clínica mostram-nos como isto é particularmente verdadeiro quando existe psicopatologia das relações de objeto internalizadas. Isto é, a interiorização profunda (e não voluntária ou consciente) de relações e padrões relacionais disfuncionais ou desadaptativos com os nossos cuidadores principais durante os primeiros anos de vida. Falamos aqui da forma como sentimos que fomos cuidados (sobretudo durante um período no qual ainda não conseguíamos formar memórias, portanto não há memória senão emocional desse período) e das identificações que fizemos com esses cuidadores e com todo o ambiente envolvente.

Essa experiencia relacional precoce e os respetivos papéis e padrões relacionais interiorizados durante a infância exercem tanto mais força na escolha do companheiro e no curso das nossas relações quanto menos conscientes e elaborados todos estes conteúdos se encontrarem dentro de nós. Nestes casos, o parceiro é frequentemente escolhido de forma inconsciente, apresentando características (atitudes, comportamentos) semelhantes a uma qualquer personagem do nosso passado que nos marcou significativamente, ou então por apresentar uma história de problemas relacionais semelhantes ou muito próximos dos nossos - existe uma identificação com o outro, na medida em que nele nos vemos a nós próprios, sem que muitas vezes consigamos reconhecer esses aspetos identificados no outro enquanto aspetos nossos.

Por exemplo, uma mulher que se queixa insistentemente que os seus companheiros tendem a “transforma-la” numa mãe, apercebe-se gradualmente e durante a sua psicoterapia da sua dificuldade em entrar em contacto com as suas próprias partes carentes, feridas e vulneráveis; da sua tendência na seleção de companheiros com histórias de problemas relacionais e feridas emocionais enquanto uma “expressão” da sua necessidade de contacto (a uma distância segura) com as suas próprias partes carentes e feridas, projetando e identificando essa sua parte emocional vulnerável no outro; de uma dimensão da relação com os companheiros enquanto tentativa de auto-reparação emocional pela reencenação de algo próximo de uma relação mãe-bebé – assumindo ela o papel da mãe que gostaria de ter tido ou que ainda sente precisar; e do facto de tudo isto não só não ter qualquer efeito reparador, como causar vários outros problemas nas suas relações.

Os papéis e padrões relacionais desadaptativos internalizados são inconscientemente ativados nas relações com os nossos companheiros. Esta ativação é ao mesmo tempo acompanhada da indução mútua de papéis complementares a essas relações do passado. Como consequência pode formar-se uma conspiração inconsciente que interprende o casal, configurando uma espécie de “união na loucura” que surge tanto mais poderosa e inescapável quanto a perturbação do casal.

È frequente a experiência de um dos parceiros sentir o outro enquanto um perseguidor implacável, uma autoridade moral que sente prazer cruel em fazer com que o outro se sinta culpado e esmagado; enquanto que o segundo parceiro sente o primeiro como pouco confiável, enganador, irresponsável e traidor, tentando “safar-se com a dele”. Estes papéis são frequentemente permutáveis.

Os parceiros podem ser altamente eficazes em reforçar ou mesmo induzir aquelas mesmas características que mais temem no outro, o que tende a configurar relações sadomasoquistas persistentes. As encenações podem tornar-se altamente destrutivas, por vezes simplesmente porque elas despoletam reações circulares que engolfam a vida amorosa do casal para além das intenções do casal e da sua capacidade de conte-las.

Caso os conflitos precoces em torno da agressão tenham sido severos, surge a possibilidade de reencenar imagens de mãe-pai primitivas/precoces (imagens construídas pelo funcionamento próprio da mente de uma criança de poucos anos de idade) e combinadas em fantasia que comportam pouca semelhança às características reais dos cuidadores do passado.

Transformação e libertação do padrão de escolha inconsciente

No polo da saúde mental prevalece a interdependência livre e flexível, própria de pessoas que experienciam o outro e são experienciadas por esse outro enquanto “pessoas separadas”, ou seja, pessoas não confundidas com figuras e vivências relacionais internalizadas patológicas de um passado longínquo do parceiro.

A exploração, compreensão e dissolução gradual de identificações problemáticas com figuras do passado e de padrões relacionais desadaptativos internalizados no passado é uma das características exclusivas da psicanálise e da psicoterapia psicanalítica. A relação com o terapeuta permite e estimula a reativação de toda a problemática internalizada, agora encenada pelo paciente na relação com o psicoterapeuta. Este, por sua vez, deverá manter a sua atitude empática, serena e compreensiva, ajudando a pessoa a ir tomando consciência do que está a acontecer naquele momento na relação entre os dois, e eventuais ligações que isso possa ter com figuras e padrões relacionais do passado. A identificação das vivências internas da pessoa, lado a lado com a atitude receptiva, empática e compreensiva do psicoterapeuta, conduz à internalização gradual desta nova experiência relacional e simultaneamente à dissolução gradual das experiências relacionais patológicas.

A transferência contínua para as relações do presente dos papéis complementares e padrões relacionais patológicos internalizados do passado interfere seriamente com os objetivos da própria de conseguir uma vida amorosa ou conjugal satisfatória. O desejo inconsciente de reparar as relações patogénicas dominantes do passado e a tentação de as repetir nos termos de necessidades agressivas e vingativas não gratificadas resultam na sua reencenação contínua com o parceiro amado.

Por Diogo Gonçalves
Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

3 comentários:

Dr. Fernando Mesquita disse...

Parabéns Diogo, gostei bastante do artigo. Consegues explicar de forma clara e sucinta, um assunto tão complexo. Essa problemática surge frequentemente nas minhas sessões.

O que pensas quanto as relações que começam através de encontros na Internet, sem que as pessoas se conheçam minimamente?

Abraço

Unknown disse...

Olá Fernando, muito obrigado pelo teu comentário !

È um tema interessante que colocas e vou com certeza partilhar contigo umas reflexões rápidas que me surgem imediatamente.

Os motivos que levam à busca de relações pela internet podem ser claros para a própria pessoa e mesmo reforçados por experiências passadas ou incentivados pela partilha de experiências de outras pessoas conhecidas, por exemplo. Pelo vasto que este tema se pode tornar, penso que devo procurar cingir um pouco esta minha reflexão, de forma focar-se primáriamente em situações nas quais esta busca de encontros pela internet se poderá relacionar mais com aquilo que procuro elaborar no artigo.

Todos nós temos necessidades emocionais, algumas destas gravemente insatisfeitas e oriundas já de falhas ao nível da relação com os cuidadores durante a infância, o que pode configurar predisposições internas de grande avidez em relação às relações e pode facilmente conduzir a uma desconsideração pelos critérios de seleção de parceiros. A uma erotização das relações em detrimento do estabelecimento de uma verdadeira intimidade emocional, por exemplo.

Mas todos nós também temos representações internas relativamente a nós próprios, aos outros, ao mundo e ás relações. Podiamos pensar que quanto menos uma escolha de parceiro ou de relação é alicerçada ou desejada a partir de elementos concretos da realidade, maior é a força do inconsciente e da fantasia da pessoa que a leva a procurar tais experiências. Outras vezes a escolha poderá ser apenas parcialmente consciente.

Podemos relacionar esta questão que colocas, por exemplo, com o acolhimento de um novo paciente. A relação que o paciente estabelece com o terapeuta inicia-se bem antes do primeiro contacto, de facto. Inicia-se precisamente pela fantasia que a pessoa constroi sobre aquele com quem irá partilhar o seu sofrimento, os aspetos mais íntimos da sua pessoa e da sua história, e no qual procura uma resposta de ajuda. Essas fantasias podem ser mais facilidatoras da aliança terapeutica ou podem colocar sérios entraves na relação logo desde o início, contúdo são sempre fantasias (crenças, ideias, expetativas) alicerçadas em vivências internas com raiz no passado (consicente ou inconsciente, mais proximo ou mais longínquo) da pessoa.

Alguém, por exemplo, com uma história de cuidadores criticos, humilhantes e instrusivos durante a infância terá muita dificuldade em procurar ajuda, pois a fantasia sobre o(s) psicoterapeuta(s) será consciente ou inconscientemente bem má. Quando em psicoterapia esta pessoa poderá adotar de imediato uma postura apática, fria, de pouca partilha, desconfiada e/ou extremamente ansiosa, pois transfere massivamente para o terapeuta as figuras internalizadas criticas, humilhantes e instrusivas do passado, ainda que este processo possa ser totalmente inconsciente para a pessoa.

Não seria dificil imaginármos alguém com uma psicologia semelhante a enveredar, por exemplo, por relacionamentos sexuais pontuais com outras pessoas conhecidas via internet, conhecendo-se ambos relativamente mal e sem oportunidade para o desenvolvimento de uma verdadeira intimidade. Seria um compromisso por uma lado entre a carência afetiva/emocional e, por outro lado, a percepção, sentimento ou fantasia do outro como perigoso (aquando de uma maior intimidade). Seria um encontro que no fundo acabaria por ser pouco eficaz em satisfazer a eventual avidez afetiva e apenas permitiria ganhar algum tempo até que a necessidade se voltasse a impor, e assim sucessivamente.

No fundo o importante é conhecer aquela pessoa singular que está a nossa frente e explorármos conjuntamente os significados mais profundos dos seus sintomas, emoções, pensamentos, atitudes, comportamentos e ou escolhas que fez e faz na sua vida.

Ps. Desculpa o longo comentário (que daria até para outro artigo!), mas de facto gosto bastante de refeltir sobre estes temas.

Abraço !

Dr. Fernando Mesquita disse...


Diogo, muito obrigado pelo cuidado na tua resposta e pela partilha!