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segunda-feira, janeiro 04, 2016

Experiências Adversas na Infância: Alterações cerebrais críticas ao longo da vida


Em continuidade com o artigo anterior enunciamos algumas das mais importantes alterações cerebrais ligadas às experiências adversas de infância (EAI), das quais resultam quase sempre o trauma, a psicopatologia e as perturbações de personalidade, mas mais concretamente, a dificuldade crónica em lidar com o presente e com o futuro ao longo da vida.


1. Alterações Epigenéticas

Quando somos sistematicamente empurrados para situações indutoras de stress durante a infância ou a adolescência, a nossa resposta fisiológica ao stress muda para um estado exacerbado, e perdemos a capacidade de responder apropriadamente e eficazmente a futuros stressores – 10, 20, e até 30 anos depois. Isto acontece devido a um processo conhecido como metilação de genes, no qual pequenos marcadores químicos, ou grupos de metilo, aderem aos genes envolvidos na regulação da resposta ao stress, e previnem esses genes de desempenharem as suas funções. À medida que a função destes genes é alterada, a resposta ao stress torna-se reconfigurada para “alta” para a vida, promovendo inflamação e doença.
Isto pode tornar-nos mais propensos a reagir exageradamente aos stressores da vida diária que encontramos na vida adulta – uma conta inesperada para pagar, um desacato com o companheiro, ou um carro que se coloca à nossa frente na auto-estrada, gerando mais inflamação. Isto, por sua vez, predispõe-nos a um corpo de doenças crónicas, incluindo as doenças auto-imunes, doença cardíaca, cancro e depressão.

Os investigadores de Yale descobriram recentemente que as crianças que sofreram stress crónico e tóxico demonstravam alterações “ao longo de todo o genoma”, em genes não apenas responsáveis pela regulação da resposta ao stress, mas também em genes implicados num vasto leque de doenças do adulto. Esta nova pesquisa sobre trauma emocional precoce, alterações epigenéticas, e doenças físicas do adulto quebra demarcações duradouras entre aquilo que a comunidade médica tem sempre considerado ser a doenças “física” em contraposição com aquilo que é “mental” ou “emocional”.

2. Tamanho e Forma do Cérebro

Os cientistas descobriam que quando o cérebro em desenvolvimento é cronicamente sujeito a stress, liberta uma hormona que na verdade reduz o tamanho do hipocampo, uma área do cérebro responsável pelo processamento da emoção, da memória e da gestão do stress. Estudos recentes a partir de técnicas de ressonância magnética sugerem que quanto mais alto o indicador de experiências adversas de infância (EAI), menor a quantidade de matéria cinzenta ele ou ela apresentam noutras áreas-chave do cérebro, incluindo o córtex pré-frontal, uma área relacionada com a capacidade de tomada de decisão e capacidades de auto-regulação, e a amígdala, ou centro de processamento do medo. As crianças cujos cérebros foram alterado pelas EAIs são mais propensas a tornarem-se adultos que reagem excessivamente a stresses menores.

3. Poda Neural

As crianças têm uma sobreabundância de neurónios e ligações sinápticas; os seus cérebros estão fortemente a trabalhar, a procurar fazer sentido do mundo à volta delas. Até à bem pouco, os cientistas acreditavam que a perda de neurónios em excesso e ligações resultava somente da não utilização dos mesmos, mas um novo advento surgiu, relacionado com o desenvolvimento do cérebro: as células não-neuronais do cérebro, conhecidas como microgliócitos, que constituem um décimo de todas as células do cérebro, e são de facto parte do sistema imunitário – participam no processo de poda neural. Estas células também engolfam e digerem celular inteiras e detritos celulares, desempenhando portanto um papel fundamental de “limpeza da casa”.

Todavia, quando uma criança enfrenta stress crónico inesperado, ou EAIs, os microgliócitos podem passar a funcionar mal e expelir neuroquímicos que resultam em neuroinflamações. Esta neuroinflamação crónica que passa facilmente despercebida pode conduzir a alterações que reconfiguram o tom do cérebro para toda a vida.

Isto significa que as crianças que chegam à adolescência com um historial de adversidade e lhes falta a presença de um adulto consistente e cuidador que os ajude na adversidade, podem tornar-se mais propensos a desenvolver perturbações do humor ou sofrerem comprometimentos nas capacidades de funcionamento executivo e de decisão.

4. Telomeres

O trauma precoce pode dar aparência mais “velha” a uma criança, em termos emocionais, relativamente aos seus colegas da mesma idade. Neste momento, cientistas da Universidade de Duke; Universidade da Califórnia em São Francisco; e da Universidade de Brown descobriram que as EAIs podem envelhecer prematuramente as crianças igualmente a um nível celular. Adultos que enfrentaram traumas precoces demonstram uma maior erosão naquilo que se chamam os telomeres – os invólucros protetores que se encontram no final das cadeias de ADN, como os invólucros dos atacadores de sapatos, para manter o genoma saudável e intacto. À medida que os nossos telomeres se desgastam, ficamos mais propensos a desenvolver doenças, e as nossas células envelhecem mais rapidamente.

5. Rede neural em modo padrão (Default Mode Network)

Dentro de cada um dos nossos cérebros, uma rede de neurocircuitos, conhecida como o “rede neural em modo padrão”, ressoa silenciosamente, como um carro parado em frente a um semáforo. Une áreas do cérebro associadas com a memória e integração do pensamento, e está sempre em standby, preparada para nos ajudar a perceber o que fazer em seguida. “A conectividade densa nestas áreas do cérebro ajudam-nos a determinar aquilo que é e não é relevante, para que possamos estar preparados para o que quer que o nosso ambiente nos solicite”, explica a neurocientista Ruth Lanius.

Quando as crianças enfrentam adversidade precocemente e são rotineiramente impulsionadas a um estado de luta ou fuga, a rede neural em modo padrão começa a desligar; não ajuda mais a criança a perceber o que é relevante, ou o que precisam fazer em seguida. De acordo com Lanius, as crianças que enfrentaram traumas precoces apresentam menor condutividade na rede neural em modo padrão – mesmo décadas após a ocorrência do trauma. Os seus cérebros aparentam não entrar na posição saudável de prontidão – e por tal, elas podem ter problemas em reagir adequadamente ao mundo em redor.

6. Ligação Cérebro-Corpo

Até há bem pouco tempo, era cientificamente aceite que o cérebro estava separado do sistema imunitário do corpo. Mas parece que tal não é o caso, de acordo com um estudo revolucionário levado a cabo por investigadores da University of Virgina School of Medicine. Os investigadores descobriram que existe um caminho esquivo entre o cérebro e o sistema imunitário, via dos vasos do sistema linfático. O sistema linfático, que incorpora o sistema circulatório, transporta “a linfa” – um liquido que ajuda a eliminar toxinas, e move células imunitárias de um local do corpo para outro. Agora sabemos que o percurso do sistema imunitário inclui o cérebro.

Os resultados deste estudo têm profundas implicações para a pesquisa das EAI. Para uma criança que viveu adversidade, a relação entre o sofrimento mental e físico é forte: os químicos inflamatórios que inundam o corpo da criança quando ela é cronicamente exposta a stress não estão confinados somente ao corpo.

7. Conectividade Cerebral

Ryan Herringa, um neuropsiquiatra e professor assistente de psiquiatria da infância e adolescência, descobriu que as crianças e os adolescentes que vivenciaram adversidade crónica na infância demonstravam ligações neuronais mais fracas entre o córtex pré-frontal e o hipocampo. As raparigas demonstravam também ligações mais fracas entre o córtex pré-frontal e a amígdala. A relação córtex pré-frontal – amígdala desempenha um papel essencial em determinar o quão emocionalmente reativos tenderemos a ser face àquilo que sucede connosco no nosso dia-a-dia, e o quão provável será percebermos essas situações como ansiogénicas ou perigosas.

De acordo com Herringa:

“Se você é uma mulher que enquanto menina vivenciou EAIs, e tal enfraqueceu estas ligações cerebrais, poderá esperar vivenciar um maior nível de medo e ansiedade em quase todas as situações ansiogénicas que encontrar ao longo da vida.”

Estas ligações enfraquecidas relacionam-se com um maior risco de desenvolvimento de ansiedade e depressão durante a adolescência tardia. Isto explica, em parte, o porquê das raparigas apresentarem um risco em dobro de desenvolver perturbações de humor, quando comparadas com rapazes.

Esta ciência pode ser avassaladora, especialmente para aqueles de nós que são pais. Portanto, o que podemos fazer caso você ou um filho que ame foi afetado pela adversidade precoce? As boas notícias são que, à medida que o nosso conhecimento científico aumenta na área da afetação do desenvolvimento cerebral mediante a adversidade, também aumenta o nosso insight científico sobre como oferecer aos nossos filhos uma parentalidade resiliente, e como podemos todos tomar pequenos passos para curar o corpo e a mente. Tal como as feridas e as nódoas negras se curam, tal como podemos reabilitar a tonalidade muscular, também podemos recuperar a função em áreas do cérebro sub-conectadas. O cérebro e o corpo nunca são estáticos; eles encontram-se permanentemente num processo de tornar-se e mudar.

"Tradução livre da Psicronos"

sexta-feira, novembro 13, 2015

Experiências Adversas na Infância: Ligação científica com a doença física e redução da longevidade do adulto



O trauma emocional precoce muda quem nós somos.

Se alguma vez se perguntou porque se têm debatido tanto durante tanto tempo com problemas crónicos de saúde física e emocional que simplesmente não desaparecem, sentindo-se como se estivesse a nadar contra uma corrente invisível que nunca cessa, então uma nova área da pesquisa científica pode oferecer esperança, respostas e perspetivas de cura.

Em 1995, os médicos Vincent Felitti e Robert Anda lançara um estudo epidemiológico em larga escala que visou sondar as histórias de 17.000 crianças e adolescentes, comparando as suas experiências de infância com os seus registos de saúde mais tarde na vida adulta. Os resultados foram chocantes: Quase dois terços dos indivíduos tinham sofrido uma ou mais experiências adversas de infância. Estas experiências adversas de infância - EAI. (Adverse Childhood Experiences - ACE) compreendem situações crónicas, imprevisíveis e indutoras de stress que algumas crianças enfrentam. Estas incluem crescer num ambiente familiar em que um dos pais sofre de doença mental (depressão, por exemplo) ou consumo de substâncias (álcool); perda de um dos pais por divórcio ou outras causas; ou sofrer humilhações crónicas, negligência emocional, ou abuso físico ou sexual. Estas formas de trauma emocional ultrapassam os desafios típicos do crescimento.

O número de EAIs que cada individuo viveu predizia com precisão surpreendente a quantidade de cuidados médicos que essa pessoa iria necessitar enquanto adulta.

- Pessoas que tinham sofrido 4 ou mais EAIs apresentavam duas vezes mais probabilidade de serem diagnosticadas com cancro em comparação com as pessoas que não apresentavam historial de EAI.

- Para cada EAI uma mulher apresentava um risco acrescido de 20% relativo à necessidade de hospitalização devido a doença autoimune.

- Alguém com um historial de 4 EAIs mostrava-se 460% (quatrocentos e sessenta por cento) mais propensos a sofrer de depressão que alguém sem historial de EAIs.

- Um historial de 6 ou mais EAIs demonstrou reduzir a vida da pessoa por quase 20 anos.

Este estudo demonstra que a vivência de stress tóxico imprevisível e crónico na infância nos predispõe a uma constelação de condições crónicas na adultícia.

Atualmente os neurocientistas estão a conseguir identificar e entender, a um nível bioquímico, exatamente como o stress que enfrentamos enquanto somos jovens nos afeta enquanto adultos, alterando os nossos corpos, as nossas células e mesmo o nosso ADN.

Algumas destas descobertas científicas podem ser um pouco assustadoras de contemplar. Elas levam-nos a restruturar a nossa visão sobre como a saúde emocional e física se encontram íntima e indissociavelmente ligadas.

Na 2ª parte do artigo abordaremos 7 alterações cerebrais concretas que as EAIs induzem, ligadas à deterioração da saúde física e redução da longevidade na vida adulta.

"Tradução livre da Psicronos"

Artigo original em:
https://www.psychologytoday.com/blog/the-last-best-cure/201508/7-ways-childhood-adversity-changes-your-brain

Estudo “Adverse Childhood Experiences” - Center for Disease Control and Prevention:
http://www.cdc.gov/violenceprevention/acestudy/


sábado, outubro 17, 2015

Amor romântico e amor genuíno (Budismo, Psicanálise, Narcisismo e Amor)





Enquanto alguém que pratica e estuda filosofia budista e psicanálise, acho que ambas as disciplinas se debruçam bastante sobre este tema. Gosto particularmente de como a psicanálise organiza estas ideias.

"Amor (love)" e "Apego(attachment)" para a psicanálise não são contraditórios de facto. Outro termo para "attachment é "vínculo". No principio um bebé é amado (o banho de sedução mútua que o bebé interioriza pelo olhar de amor e fascínio da mãe, por exemplo). Depois passa a amar-se. Finalmente, ama. No fundo falamos de narcisismo, da evolução do narcisismo, do amor narcísico, interesseiro, para o amor oblativo, generoso. 

Freud falava deste mistério em como nas relações amorosas investir no outro levaria a um empobrecimento do Eu, porque a nossa energia deixava em grande medida de estar em nós e passava para o outro. Depois constatou que para não nos esvaziarmos, o investimento amoroso no outro tem de ser recíproco. É o amor do outro que nos alimenta numa relação amorosa. 

Contudo, o amor maduro implica sempre um investimento em nós (narcísico-normativo) e no outro em simultâneo. Pelo que para um amor maduro, há que ter um narcisismo saudável (um amor próprio ou auto-consideração maduros e auto-reguláveis, entre outras coisas). Nas relações em que um dá muito e o outro dá muito pouco, temos uma economia depressígena - aquele que recebe pouco ir-se-á esvaziando e tal conduz à depressão (ou o reavivar da depressão latente). 

Amor sem interesse é generosidade, base da capacidade de amar, e requer um bom desenvolvimento do narcisismo com acesso à capacidade de gratidão. 

Todavia os vínculos amorosos saudáveis implicam a entrega, e por tal, isso implica que ao nos entregarmos, também estamos a abrir-nos a receber do outro. Não vivemos ou podemos sobreviver isolados dos afetos dos outros, sobrevivemos disso, e a falta de tal marca a psicopatologia. Aqui sim, quando o narcisismo é deficitário, quando o bebé e a criança não recebem na medida daquilo que necessitam, o amor narcísico, interesseiro, pode ser a única modalidade de amor que fica acessível na idade adulta, enquanto expressão de problemas oriundos de uma época de vida em que se precisou de algo mais, mas não se consegui receber o suficientemente, por algum motivo. Aqui o "attachment" é "grasp" (apego), é dependência porque se procura no outro algo que outrora não se recebeu. Nem se pode receber deste outro (quando a falta/falha é significativa e persistente), pois tal a carência remete para questões ligadas ao desenvolvimento psicológico e da personalidade, e tal dimensão da experiência humana não pertence às relações amorosas, mas às relações parentais ou às relações psicoterapêuticas. 

Estas faltas são dos maiores contribuintes para o medo acentuado da perda. Ama-se interesseiramente, ama-se para se ser amado ou admirado, ou para estar associado àqueles que são alvo de admiração e prestígio. Ama-se para se ser amado ou para não se ser abandonado. Ou ama-se meramente enquanto reforço para a identidade (o outro tem características que nos conferem um sentido de identidade reforçada quando nos associamos a ele). Procuramos então encher-nos tornando os outros apêndices de nós mesmos. Muitas vezes o orgulho ou a vergonha no companheiro atestam bem esta realidade. O outro serve (ainda que por vezes não exclusivamente, e apenas em parte) uma função de restaurar e repor a autoestima. 

Neste terreno do amor narcísico é também onde surgem as idealizações mais patológicas. O amor implica uma certa idealização inicial, contudo no amor narcísico a idealização é forte e não tolera nada bem a realidade do outro, que não pode ser amado tal como é mas apenas ou sobretudo pela função que desempenha. Tal é o caso, por exemplo, das mães e pais que desaprovam dos filhos toda a vez que estes não correspondem às suas expetativas, ou se desiludem constantemente com eles. Filhos que acabam por não poder ser muitas vezes eles próprios (aceites, validados e amados enquanto tal), herdando uma ferida narcísica profunda. 

No caso dos filhos há sempre um amor narcísico à mistura, ainda que possa predominar o amor oblativo, pois na prática os filhos são mesmo extensão dos pais, partilham o mesmo ADN! É uma realidade normativa ainda que implique, de forma a que mantenha os contornos saudáveis desejados, uma capacidade de diferenciação dos desejos dos pais e da autonomia, identidada e desejos dos filhos. Tal como também são normativas certas necessidades narcísicas humanas, que perduram ao longo da vida - pertencer a grupos com os mesmos interesses e valores, sermos validados no trabalho, sermos compreendidos pelos amigos. 

Amar oblativamente sem exigir nada em troca é o ideal, contudo apenas é possível se em troca recebermos o mesmo tipo de amor. Parece contraditório pois há uma expetativa de retorno, que poderíamos apelidar de narcísica, ainda que, mais uma vez, nós de facto vivemos de afetos e sem eles afundamos na depressão, ou pior. O amor sem exigir - "amo-te e por tal quero que sejas feliz"- para se manter subentende a entrega genuína e o encontro com um outro que também esteja disposto a amar sem exigir. Mas também podemos pensar que no ideal maduro de alguém que ama genuinamente está gravado o valor de fazer o companheiro feliz, e desta forma, dar felicidade ao outro também nos dá felicidade, de um modo narcísico, mas saudável, pois é a realização de um ideal nosso, um valor nosso ideossincrático. Ao mesmo tempo vamos também captando o amor que o outro nos dá. Por sua vez quando recebemos sentimos gratidão e tal dá azo à generosidade, ou seja à vontade de dar mais amor ainda! É uma espiral de amor que se gera, sem exigência, baseada num bom desenvolvimento do narcisismo de parte a parte e no crescente desejo de dar que advém da experiência do receber.

quinta-feira, outubro 30, 2014

Amizades que Duram e Amizades que Torturam


O que são boas amizades? O que as distingue de outro tipo de amizades? Como perceber quais as amizades que poderão amadurecer e aquelas que não?

Bons amigos são aqueles com quem há partilha de interesses e vivências, com quem podemos contar, que nos dão (ou tentam dar) bons conselhos e que estão lá para nós muitas vezes quando ninguém mais nos atura!

Para além disso podemos acrescentar, por exemplo, amigos que não se deixam abusar e conseguem transmitir limites e fronteiras de forma assertiva, amigos que nos dão uma visão ponderada - empática e analítica em simultâneo - sem assumir imediatamente o nosso lado de forma incondicional, e amigos que nos fazem sentir gratos pela presença deles nas nossas vidas. Às vezes um amigo é alguem que nos dá o que precisamos, e não tanto o que queremos ou achamos que queremos. Há alguns amigos e amizades que não deixam de ter um efeito clarificador e restruturante do nosso pensamento, das nossas atitudes e comportamentos. São atos psicoterapeuticos que acontecem nas relações, e todos nós precisamos e beneficiamos disso. 

Estas amizades conquistam-se, perdem-se e reencontram-se ao longo da vida.

Mas existem outras amizades. Amizades mais voláteis e mais instáveis, umas que duram muito pouco, outras que se mantêm instáveis durante muito tempo, sendo estáveis na instabilidade periódica. 

As amizades (e outros tipos de relações) que envolvem pessoas com estruturas de personalidade mais vulneráveis podem ser difíceis de gerir e pouco gratificantes. Podemos pensar aqui em alguém - que todos nós com certeza já conhecemos num ou noutro momento das nossas vidas - com tendencia a ficar  ofendido, ou a "levar a peito" comentários ou situações que para a maioria das outras pessoas são relativamente banais. São por vezes pessoas em que num primeiro momento nada denuncía que possam reagir de determinadas maneiras, podendo mesmo aparentarem ser pessoas particularmente fortes. Lado a lado com esta característica podem ser pessoas com dificuldade em perdoar e mesmo com hábito (ou capazes) do abandono súbito de amizades de longos anos, e a propósito de ocorrências relativamente pouco graves.

Podem sentir-se facilmente injustiçadas e quando em conflitos podem por vezes adotar atitudes inflexiveis, que são sentidas pelos demais - ou mesmo afirmadas pela própria pessoa - enquanto posições rígidas e inflexíveis de "ou estás comigo ou estás contra mim!".

Falamos muito em torno de um funcionamento psíquico (organização, estrutura e funcionamento de personalidade) particularmente vulneravel ao stress (despoletanto muitas vezes zanga intensa). Nesses momentos, e de forma mais temporária ou mais permanente, a pessoa perde o contacto emocional (se bem que nem sempre racional) com:

1) A totalidade da  história entre ela própria e a outra pessoa, e de todos os bons momentos vividos na companhia dessa pessoa;

2) Tudo de bom que se recebeu daquela pessoa ao longo do tempo da relação;

3) A afabilidade, bem-querer, boas intenções, e até o amor genuíno por parte da outra pessoa.

Não são apenas as relações de amizade que sofrem neste caso, mas também as relações amorosas e as relações familiares, caracterizadas muitas vezes por conflitos intensos e instabilidade frequente. Ou mesmo por dinâmicas sado-masoquistas em que um ataca e o outro se mostra passivo (podendo eventualmente dar-se uma inversão de papeis, mais pontual ou mais sistemática).

O nível de organização e a estrutura particular de personalidade de cada um de nós condiciona a experiência da ansiedade nas mais variadas circunstâncias, bem como a forma que temos de lidar com essas ansiedades. É de considerar, claro, que existem experiências que provocam abalos psíquicos mesmo em personalidades bem estruturadas. A experiência das relações é uma das principais realidades afetadas pela organização, estrutura e funcionamento psiquico específicos de cada pessoa (falamos de organizações neuróticas, borderlines, psicóticas; estrutura fóbica, obsessiva, compulsiva, histérica, depressiva, masoquista, maníaca, bipolar, narcisica, paranóide, esquizóide, psicopata, sádica, sado-masoquista, dependente, etc., ou mesmo uma combinação entre diferentes estruturas e/ou traços de estrutura).

Será efetivamente muito importante o trabalho de reestruturação de personalidade em psicoterapia, pois possibilita a alteração em profundidade da experiência subjetiva da ansiedade e das formas de lidar com a mesma. Consequentemente abre também portas para uma maior estabilidade nas relações a todos os níveis e para o bem estar e plenitude que dai advêm.

sexta-feira, maio 23, 2014

Águas de Um Lago Interior


Dentro de cada um de nós existe um lago...

Esse pode ser um lago de águas calmas e cristalinas, de águas turvas e agitadas, ou até de águas poluídas. Pode ser um lago mais vazio ou em vias de extinção, ou mesmo a reminiscência de que outrora um lago ali existiu. Esse lugar pode ainda ser o lugar de uma paisagem assombrada, inóspita e acidentada, que jamais acolheu qualquer tipo de águas ou formou noção do que acolher algo semelhante poderia ser.

O lago interior toma forma a partir do que dentro de nós existe, e em que circunstâncias isso existe - de que forma e em que estado. Retrata quer a dança harmoniosa e a parceria cooperante, quer a luta afincada e a irremediável reconciliação entre os mais variados aspetos que habitam dentro de nós, ou entre os vários lados de um mesmo aspeto. O lago interior é também o que lá foi depositado pelo outro e o que se fez com isso. È o próprio observador que observa e a condicionante que o condiciona, na forma como ele é, como se sente e como se percebe perante si mesmo, perante o outro, no mundo e na relação. È a harmonia e/ou desarmonia entre tudo isso.

O lago de águas calmas e cristalinas cativa o olhar contemplativo e curioso, o olhar que varre a superfície das águas espelhantes e transporta para o íntimo de quem observa o sentimento do sereno e do sublime.

À luz do sol, o lago cristalino convida o mesmo olhar ao mergulho quase que irresistível na intimidade das suas águas. Elas aliciam pelo privilégio de poderem ser atravessadas e reconhecidas na sua translucidez resplandecente e nas formas, feitios, cores e movimentos que se revelam nas suas profundidades. Assim, o lago de águas cristalinas desvela a sua identidade.
As águas calmas ilustram harmonia, formam a unidade espelhante em que se converte a superfície de um lago, que retrata então fielmente o “lá fora” envolvente, e sem distorção devolve-lhe a sua beleza. Ou a sua fragilidade, pois águas calmas não distorcem, não mentem, apenas refletem.
O lago de águas turbulentas não forma o reflexo do circundante à sua superfície. Águas agitadas não criam condições para mais que formas abstratas, distorções daquilo que é. O que nestas águas habita fica ofuscado pelos choques de correntes e contra correntes internas. Outras vezes águas turbulentas significam mudança, e trazem consigo a promessa de algo novo, de diferente, de necessário.
O lago de águas turvas, poluídas (muitas vezes agitadas)... Pouco capaz de se olhar e se reconhecer como de facto é, tampouco consegue purgar o agente corruptor das suas águas. O agente oculto e que se oculta, deixado pelos rios que noutros tempos ali desaguavam (e que algumas vezes também deixavam coisas boas), perpetua atrocidades sobre as águas do lago, sobre tudo o que elas acolhem e sobre tudo o que as rodeia - a própria paisagem e natureza em que se enquadram. Incapazes de se auto-filtrarem, as águas vêem-se transmutadas para o inóspito. Para a ele sobreviver, dividem-se (toscamente), convencem-se que não sao elas mas sim os outros lagos e rios que detêm tudo aquilo que de mais deplorável existe nelas. E assim, convencidas da sua limpidez, julgam e desprezam na crença mais que convicta (não fosse por ventura surgir a dúvida aterradora!) de que é o alheio que alberba todos esses aaspetos e agentes repudiáveis e vergonhosos que, na ilusão, não lhes são próprios, nem jamais lhes puderam alguma vez ter pertencido ou podem vir a pertencer. Agitado e sob ameaça incogniscivél, o lago ergue massivas comportas internas e corta ligações com as suas fontes.  E assim o lago irá secar, até não sobrar senão um solo marcado por poças disformes de água estagnada.
Na fuga a ele próprio e na procura de um lugar para existir, alguns lagos cosneguem ainda  juntar-se a outros lagos, mutias vezes por afinidades ou complementaridades quase que intuitivas, não entre águas, mas entre agentes de poluição e corrupção interior.

Aqueles mais turvos e poluídos são por vezes os que se convencem e se passam como os mais límpidos e cristalinos. Ponderar que pudessem alguma vez precisar de rio algum ou do que estes lhes pudessem oferecer é pura heresia - e ai do rio que se julge maior que eles! Muitos são já poças de água tão pequenas, tão secas e tão ameaçadas de estinção que se mascaram de grandes e ilustres rios (e até oceanos), para não perceberem a dor da necessidade ligada à falta da fonte ou do rio disponível e provedor. Mascaram-se porque receiam abrir as suas comportas a qualquer tipo de correntes externas - o derradeiro perigo.

Diogo Gonçalves
Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

sexta-feira, janeiro 24, 2014

Quando o Passado Inconsciente Dita a Escolha do Parceiro


Há quem diga que no momento em que escolhemos o nosso companheiro ou a nossa companheira, já sabemos, ainda que inconscientemente, como irá ser ou como irá terminar essa relação.

De facto, a psicanálise e a experiência clínica mostram-nos como isto é particularmente verdadeiro quando existe psicopatologia das relações de objeto internalizadas. Isto é, a interiorização profunda (e não voluntária ou consciente) de relações e padrões relacionais disfuncionais ou desadaptativos com os nossos cuidadores principais durante os primeiros anos de vida. Falamos aqui da forma como sentimos que fomos cuidados (sobretudo durante um período no qual ainda não conseguíamos formar memórias, portanto não há memória senão emocional desse período) e das identificações que fizemos com esses cuidadores e com todo o ambiente envolvente.

Essa experiencia relacional precoce e os respetivos papéis e padrões relacionais interiorizados durante a infância exercem tanto mais força na escolha do companheiro e no curso das nossas relações quanto menos conscientes e elaborados todos estes conteúdos se encontrarem dentro de nós. Nestes casos, o parceiro é frequentemente escolhido de forma inconsciente, apresentando características (atitudes, comportamentos) semelhantes a uma qualquer personagem do nosso passado que nos marcou significativamente, ou então por apresentar uma história de problemas relacionais semelhantes ou muito próximos dos nossos - existe uma identificação com o outro, na medida em que nele nos vemos a nós próprios, sem que muitas vezes consigamos reconhecer esses aspetos identificados no outro enquanto aspetos nossos.

Por exemplo, uma mulher que se queixa insistentemente que os seus companheiros tendem a “transforma-la” numa mãe, apercebe-se gradualmente e durante a sua psicoterapia da sua dificuldade em entrar em contacto com as suas próprias partes carentes, feridas e vulneráveis; da sua tendência na seleção de companheiros com histórias de problemas relacionais e feridas emocionais enquanto uma “expressão” da sua necessidade de contacto (a uma distância segura) com as suas próprias partes carentes e feridas, projetando e identificando essa sua parte emocional vulnerável no outro; de uma dimensão da relação com os companheiros enquanto tentativa de auto-reparação emocional pela reencenação de algo próximo de uma relação mãe-bebé – assumindo ela o papel da mãe que gostaria de ter tido ou que ainda sente precisar; e do facto de tudo isto não só não ter qualquer efeito reparador, como causar vários outros problemas nas suas relações.

Os papéis e padrões relacionais desadaptativos internalizados são inconscientemente ativados nas relações com os nossos companheiros. Esta ativação é ao mesmo tempo acompanhada da indução mútua de papéis complementares a essas relações do passado. Como consequência pode formar-se uma conspiração inconsciente que interprende o casal, configurando uma espécie de “união na loucura” que surge tanto mais poderosa e inescapável quanto a perturbação do casal.

È frequente a experiência de um dos parceiros sentir o outro enquanto um perseguidor implacável, uma autoridade moral que sente prazer cruel em fazer com que o outro se sinta culpado e esmagado; enquanto que o segundo parceiro sente o primeiro como pouco confiável, enganador, irresponsável e traidor, tentando “safar-se com a dele”. Estes papéis são frequentemente permutáveis.

Os parceiros podem ser altamente eficazes em reforçar ou mesmo induzir aquelas mesmas características que mais temem no outro, o que tende a configurar relações sadomasoquistas persistentes. As encenações podem tornar-se altamente destrutivas, por vezes simplesmente porque elas despoletam reações circulares que engolfam a vida amorosa do casal para além das intenções do casal e da sua capacidade de conte-las.

Caso os conflitos precoces em torno da agressão tenham sido severos, surge a possibilidade de reencenar imagens de mãe-pai primitivas/precoces (imagens construídas pelo funcionamento próprio da mente de uma criança de poucos anos de idade) e combinadas em fantasia que comportam pouca semelhança às características reais dos cuidadores do passado.

Transformação e libertação do padrão de escolha inconsciente

No polo da saúde mental prevalece a interdependência livre e flexível, própria de pessoas que experienciam o outro e são experienciadas por esse outro enquanto “pessoas separadas”, ou seja, pessoas não confundidas com figuras e vivências relacionais internalizadas patológicas de um passado longínquo do parceiro.

A exploração, compreensão e dissolução gradual de identificações problemáticas com figuras do passado e de padrões relacionais desadaptativos internalizados no passado é uma das características exclusivas da psicanálise e da psicoterapia psicanalítica. A relação com o terapeuta permite e estimula a reativação de toda a problemática internalizada, agora encenada pelo paciente na relação com o psicoterapeuta. Este, por sua vez, deverá manter a sua atitude empática, serena e compreensiva, ajudando a pessoa a ir tomando consciência do que está a acontecer naquele momento na relação entre os dois, e eventuais ligações que isso possa ter com figuras e padrões relacionais do passado. A identificação das vivências internas da pessoa, lado a lado com a atitude receptiva, empática e compreensiva do psicoterapeuta, conduz à internalização gradual desta nova experiência relacional e simultaneamente à dissolução gradual das experiências relacionais patológicas.

A transferência contínua para as relações do presente dos papéis complementares e padrões relacionais patológicos internalizados do passado interfere seriamente com os objetivos da própria de conseguir uma vida amorosa ou conjugal satisfatória. O desejo inconsciente de reparar as relações patogénicas dominantes do passado e a tentação de as repetir nos termos de necessidades agressivas e vingativas não gratificadas resultam na sua reencenação contínua com o parceiro amado.

Por Diogo Gonçalves
Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta