Na revista Sábado desta semana vem uma entrevista com o filosofo Lou Marinoff. Este filósofo é considerado o pai do aconselhamento filosófico ou filosofia clínica e autor "Mais Platão, Menos Prozac!".
Encontrei também num quiosque de revistas à venda o primeiro número de uma nova revista de Filosofia (brasileira) que também dá um enorme destaque à Filosofia Clínica. Parece ser uma modalidade de ajuda psíquica que começa a ter alguma aceitação e que na minha opinião poderá estimular algumas reflexões.
A Psicologia e a Filosofia são parentes próximos. A Filosofia é a mãe de todas as ciências, mas nos últimos anos tem vindo a perder, infelizmente, a sua condição de disciplina base na constituição da educação. A psicologia e a grande maioria das psicoterapias são “filhas” da filosofia, no entanto devemos questionar-nos sobre qual poderá ser o efeito de colocar filósofos a fazer o trabalho de psicoterapeutas. Ao ler os artigos que anteriormente referi fiquei “espantada” com a proximidade à psicoterapia existencial, de apoio e também, de forma mais superficial, à psicoterapia psicanalítica.
Poderá o aconselhamento filosófico ser suficiente para resolver os problemas psíquicos? Enquanto psicoterapeuta com mais de uma década de prática clínica, parece-me difícil que o aconselhamento filosófico seja capaz de ajudar pessoas com níveis de angústia muito elevados, mas acho genericamente a ideia interessante. Parece-me que é necessário que as pessoas se interessem mais por reflectir e pensar sobre si próprias e sobre a vida que têm. Se entendi bem, os recursos técnicos da filosófica clínica passam principalmente pelo aconselhamento da leitura de obras filosóficas e posterior analise das mesmas em conjunto com o cliente e a articulação dessas filosofias com a vida pessoal e concreta da pessoa que se sente angustiada. Esta abordagem técnica parece-me ter à partida uma limitação porque a maioria das pessoas não é capaz (leia-se não tem interesse suficiente, ou nalguns casos, a capacidade de abstracção suficientemente desenvolvida) de ler um romance, sendo pois improvável que o façam com uma obra filosófica.
No artigo da revista Filosofia a prática da filosofia clínica aproxima-se bastante do trabalho realizado em psicoterapia psicanalítica influenciado pelo pensamento de Wilfred Bion, mas num nível que me parece ainda bastante superficial e banhado por um optimismo ingénuo. Estará, contudo, a filosofia a fazer uma aproximação à psicologia/psicanalise?
Algumas ideias da Filosofia Clínica:
“As pessoas devem deixar as muletas e arranjar recursos interiores para enfrentar os problemas”;
“Considerando a Filosofia como uma atitude de construção de conceitos a partir de um problema de uma realidade singular, a Filosofia Clínica coloca-se como uma terapêutica centrada na pessoa e no respeito à sua singularidade, dispondo-se a pensar sobre o problema apresentado pela pessoa, a partir do plano da realidade singular dessa mesma pessoa”;
“O filósofo assume a função de cuidador, investido do conhecimento produzido em toda a história da filosofia”.
“Quando um partilhante procura um filosofo clínico, em geral o faz porque algo o incomoda. Em conversa inicial, filosofo clínico e partilhante estabelecem o primeiro momento da cínica: a intersecção, a qualidade da relação entre ambos. Após a conversa, o partilhante preenche uma ficha clínica com dados pessoais, termo de esclarecimento e consentimento para o trabalho clínico. Partindo do principio que nos construímos a partir da história de nossas vivencias, o próximo passo consiste em colher o histórico de vida do partilhante, contado por ele mesmo, cronologicamente e em detalhes. Esse histórico servirá de fonte para a obtenção de dados sobre os três eixos fundamentais: Exames categoriais, Estrutura do pensamento e Submodos.
Enquanto o partilhante conta a sua história, o filósofo clínico limita-se a interferências mínimas, apenas para permitir a intersecção, pedindo continuidade, levando a pessoa a retomar o curso da sua história em caso de este se perder.
O filósofo clínico entende que o partilhante poderá, inicialmente, omitir dados, distorcê-los, mentir, inventar, entre outras coisas. Ainda assim, os dados distorcidos o são a partir de referenciais do partilhante. Sua Estrutura de pensamento desvenda-se ainda que o histórico contenha distorções.
No procedimento seguinte, Divisão, a história do partilhante é recontada, agora com delimitação de períodos, para que sejam feitas correcções e aquisição de mais dados, pois ao contar a história, o partilhante poderá optar por uma linha de raciocínio, contando, por exemplo a sua história familiar, escolar, de trabalho, ou afectiva, deixando de lado muitos outros elementos vividos. O procedimento divisório é repetido inúmeras vezes até que não surjam dados novos.
Terminada a divisão é o momento dos Enraizamentos. Trata-se de um processo epistemológico para pesquisar o conteúdo de termos e estabelecer relações e testar hipóteses clínicas”.
In Filosofia, (1) Ano I, 2006, Ediora Escala. pp. 70-81
Penso que a filosofia clínica é uma corrente com potencial, se bem que ainda esteja numa fase bastante inicial. Será algo a acompanhar com interesse.
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8 comentários:
Não quero atacar os métodos clínicos presentes nesta abordagem uma vez que não possuo conhecimentos para o fazer. Contactei com esta perspectiva dos Marinoff (ao que sei criaram uma empresa especializada neste tipo de intervenção)no último ano de faculdade e penso que esta abordagem nasce do desuso, além contexto educativo, desta ciência tão fundamental. É preciso orientar os "filósofos" em termos de saídas profissionais e este contexto (clínico) assumiu-se como um nicho de mercado em termos de uma possível intervenção filosófica. Concordo que devamos observar atentamente este fenómeno uma vez que, enquanto psicólogos, competimos directamente com esta abordagem, em termos do mercado de intervenção mental clínica. Reafirmo a minha abertura a este tipo de intervenção, apesar desta competição tão directa ao nosso papel na saúde mental. Este post contribuiu para isso mesmo, um caminho em termos de informação sobre o assunto, apesar de me ser dificil, para já, integrar muitos conceitos por eles postulados numa linha de ajuda terapêutica eficaz e económica para o cliente.
Todas estas palavras sempre tão repetitivas, ditas e reditas por quem muito bem as pretende impor, sub-repticiamente como se a vida de um «ditado» se tratasse, perdem-se por aí sem qualquer sentido a caírem em seu beco sem saída, por tão ignóbeis formas de tentar violar o Pensamento em tratados e tratamentos de que psicologias!
E sobre esta matéria, deixo-vos simplesmente com as palavras de Desidério Murcho:
A filosofia clínica é muitíssimo polémica. Não é levada a sério nas melhores universidades, nem tem grande sustentação. Contudo, não me parece mais falha de sustentação do que a psicanálise ou a psicologia. Evidentemente, muitas pessoas deitam-se de cabeça para a filosofia clínica porque é uma saída profissional. Mas isso não é uma boa razão para aceitar a seriedade académica da filosofia clínica.
Questiono-me sobre o que será, na sua essência, a filosofia clínica. Será ainda uma filosofia? Ou uma psicoterapia? Ou nem uma nem outra?
Ou será que é apenas um nome que garante sucesso mercantil?
Não nos esqueçamos que para se ter efeitos terapêuticos não é preciso muito, como nos demonstram os placebos, o hipnotismo de Mesmer, a igreja Maná, etc. Porque é que uma filosofia clínica também não reclamará para si uma parte do bolo?
O que me parece essencial é que existe um hiato insuperável, para mim, entre a psicanálise (e a psicoterapia também, apesar que os pressupostos dos dois saberes são diferentes) e a filosofia. Aliás é esse hiato que as dota de Diferença e não de Mesmidade. Convenhamos não cair na "lógica do batido", apesar de ser essa a lógica capitalista.
E o que é esse hiato senão o inconsciente freudiano?
Como Freud nos alerta, por exemplo, no Esboço de Psicanálise, a própria concepção do que é o psíquico é diferente na psicanálise e na filosofia.
Já tivemos excelentes filósofos, como é o caso de Paul Ricouer, que tentaram a conciliação impossível entre os dois saberes, sempre sob a primazia do sujeito cartesiano, o que implica uma inflexão sobre o ego de um esclarecimento sobre as as suas verdades inconscientes. Aliás, na mesma linha de pensamento, os teóricos da IPA propõem a saída da análise com a identificação ao ego do analista.
Como Lacan demonstrou, a partir de Freud, o sujeito é sempre um sujeito dividido, barrado, não coincidente com ele, não uno, por mais análises ou psicoterapias que faça. É o que ele quer dizer com o seu aforisma "penso onde não sou, sou onde não penso", numa clara alusão ao inconsciente. O inconsciente só é pensável sob o ponto de vista intelectual, filosófico. Aqui se esbarra a passagem da filosofia para a clínica. O inconsciente enquanto experiência, e não masturbação intelectual, necessita de um dispositivo.
Se não fosse assim a psicanálise teria parado no "além do princípio do prazer", permanecendo como uma arte da interpretação, psicanalítica, filosófica, religiosa ou outra. Ora, o que Freud afirma no "Além do Principio do Prazer" é que a picanálise não é uma arte de interpretação. E porquê? Devido à descoberta da Pulsão de Morte, onde Lacan situou o seu importantíssimo conceito de Gozo.
Por outras palavras, a experiência da psicanálise passa, não pela masturbação intelectual, não pela realização imaginária que é identificação ao analista (que seria a porta de entrada para os filosofos), mas pelo oposto, por uma des-identificação, por um encontro violento com o real do gozo pulsional onde existe um saber acéfalo, o que implica que a experiência do inconsciente seja da ordem de um saber-fazer e não de um "saber-retórico".
Implica que o sujeito aprenda que existe um lugar em si que ele é sem o saber, sem o pensar, lugar por onde surge o sintoma como formação do inconsciente que o sujeito, com mais saber que possua, não consegue controlar.
De qualquer forma este é um tema rico demais para ser articulado aqui em poucas linhas, escrito "à pressa" e sem a reflexão que lhe é merecida.
Olá, Alice.
Consigo compreender o seu ponto de vista (pelo menos acho que compreendo), mas na verdade acho a sua posição um bocadinho radical. Não me parece que todos os psi sejam charlatães, mesmo que existam alguns que o sejam, para “desgraça” da nossa classe. Não conheço o suficiente da corrente da Filosofia Clínica para poder ajuizar de forma imparcial. Concordo que poderão ter desenvolvido esta abordagem (clínica) pela pressão que sofrem em termos de saídas profissionais mas todos nós temos que encontrar formas de “ganhar dinheiro” mesmo que essa não seja a tarefa mais nobre.
A necessidade de ganhar dinheiro e de encontrar saídas profissionais pode fazer emergir novas abordagens ao mundo mental e novas formas psicoterapêuticas e, na minha opinião, não devem ser condenadas por isso. Podem ser condenadas por não produzirem os resultados apregoados, por serem “fogo de artificio” ou qualquer outra coisa que as descredibilize em termos técnicos e/ou científicos, mas não, por terem surgido com o intuito de abrir um mercado de trabalho.
Concordo consigo quando ao facto de que seria importante as pessoas lerem e estudarem mais, mesmo como actividade para além daquilo que é “academicamente obrigatório”, mas também me parece que a vida é curta e que na sociedade actual somos pressionados/estimulados/seduzidos a fazer muita coisa e, na verdade, o tempo não dá para tudo e temos que fazer opções. Há quem opte por não ler muito e não se interessar muito pela filosofia ou pelo estudo das culturas clássicas. Respeito essas opções, como respeito muitas outras; talvez essas pessoas que nunca se deram ao trabalho de ler Kant, Nietzsche, Platão, etc. possam beneficiar de uma conversa agradável e intelectualmente estimulante com um filósofo. Não vejo porque não. Eu não me importaria de pagar a um filosofo para ter conversas interessantes sobre temas que ele domina melhor do que eu, não vejo que seja algo de menor valor do que ir ao teatro, apreciar uma obra de arte, ver um bom filme, ler um bom livro.
Penso que chegará o tempo em que uma conversa agradável e estimulante será um bem precioso (nem sempre os nossos amigos estão disponíveis).
Olá, foka_bock.
Concordo que a Filosofia Clínica poderá pretender competir com a psicologia e com as diferentes escolas de psicoterapia; mas, na verdade, sempre houve e penso que sempre haverá muitas formas concorrenciais à psicologia e a psicoterapias, desde a igreja do reino de deus às videntes e astrólogas.
Acho que a concorrência não nos deve assustar. Temos um método próprio e uma abordagem particular que chegará até onde puder chegar. O que verdadeiramente me interessa e preocupa é melhorar as minhas competências e as do modelo que domino com o intuito de atingir o melhor possível os meus objectivos.
Acho que, no que respeita à psicologia, ainda estamos na idade da pedra. Há ainda muito trabalho a fazer. Trabalho de investigação, de elaboração de novas teorias e abordagens e isso só será possível se formos abertos (o que não é o mesmo de sermos acríticos).
Olá, Daniel Sousa.
Bem-vindo ao nosso blog. Espero que tenha sido o primeiro comentário de muitos. Agradeço em particular o seu comentário dado que tem formação complementar em psicoterapia existencial.
Acho muito pertinente o desafio que coloca à psicologia, isto é, o de debater os seus pressupostos epistemológicos. Eu, apesar de tudo, não sou tão optimista quando o Daniel, como dizia num comentário anterior, acho que a psicologia ainda está na idade da pedra e ainda temos um longo percurso pela frente.
Lamento se fui incorrecta ao fazer a aproximação da psicoterapia existencial à filosofia clínica, na verdade, não domino nenhum dos modelos em profundidade e desde já o convido a preparar um post sobre Psicoterapia Existencial. Caso se disponha a aceitar o desafio poderá enviar-me por email o post que eu comprometo-me a publicá-lo integralmente.
Penso que identifica muito bem o aspecto crucial como sendo a relação terapêutica e a importância da mesma para a psicoterapia (ou pelo menos para algumas formas de psicoterapia). Apesar de não ter grandes conhecimentos sobre a Filosofia Clínica, não fiquei com a ideia de que eles façam uma separação cartesiana em pensamento (intelecto/cognição) / afecto e que pretendam apenas tratar do pensamento. Foi precisamente nesse aspecto que eu antevi uma aproximação à teoria bioniana dentro da psicanalise, dado que Bion, articula pensamento e afecto num todo interdependente.
Olá, Vitor Igor Lobão.
É sempre um prazer ler os seus comentários pela pertinência que trazem às discussões e porque me ensina sempre imensas coisas sobre o pensamento de Lacan.
Diz que o hiato que separa a psicanalise da filosofia é o inconsciente freudiano. Não sei se consegui perceber bem o que quer dizer com isso. Claro que o inconsciente conceptualizado por Freud era diferente das noções de inconsciente que a filosofia tinha desenvolvido até à época, penso inclusivamente que até Freud o termo subconsciente seria o mais conhecido.
Penso que também não são bem os teóricos da IPA que propõem a saída da análise com a identificação ao ego do analista, na verdade, nem sequer tenho a certeza de isto ser proposto por alguma escola de forma tão clara, mas a ser defendido por alguma seria, com certeza, pela escola da psicologia do ego. É uma saída (se for efectivamente uma saída) com a qual não concordo. Acho que o analisando deve sair da análise, seja ela qual for, identificado a ele mesmo, isto é, reforçado na sua própria autenticidade. Parece-me que a identificação ao ego do psicanalista dá razão às críticas que Alice Valente tem feito nos seus diversos comentários.
O Vítor tem falado muito nos seus comentários sobre o gozo e neste afirma ser esse conceito fundamental para o pensamento de Lacan. Gostaria de o convidar e elaborar um post sobre o Gozo em Lacan e a publicá-lo aqui no Salpicos. Se aceitar pode enviar-mo por email que eu comprometo-me a publicá-lo exactamente como o escrever. Se preferir publicá-lo no seu blog, aceite este tema como uma sugestão e eu terei imenso gosto em ir lá lê-lo.
Achei interessante esse seu comentário. Gosto da Filosofia. E nunca havia lido algo sobre a parte clinica.É necessário que busquemos saída para qualquer mal estar que venha causar consequencias deságradáveis ao ser humano. Em cada ciência temos um lado critico. Cabe a cada indivíduo analisar o que melhor enquadra a sua personalidade. Afinal de contas cada pessoa é singular.
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