- António Coimbra de Matos, psicanalista:
"Na sociedade
atual a vergonha substituiu a culpa"
Foi
um dos primeiros terapeutas a fazer análise em Portugal. Aos 80 anos, continua
a trabalhar dez horas por dia. António
Coimbra de Matos, decano dos psicanalistas, é um otimista nato.
Entrevista de Ana Soromenho (www.expresso.pt)
8:33 Terça
feira, 3 de agosto de 2010
O ponto de partida da conversa era o prazer. E o nosso
interlocutor um homem experiente, doutorado nos mistérios do inconsciente, nas
emoções e nas contradições de que é composta a fibra humana. Mas António
Coimbra de Matos, consagrado decano dos psicanalistas portugueses, não gosta de
respostas taxativas: "Isto é assim, aquilo é assado...". Deixa sempre
uma margem para a dúvida, desvaloriza: estamos melhor numa sociedade que
celebra o prazer do que naquela que vivia na culpa. Diz-se um pragmático. Mas é
sobretudo um otimista. Um psicanalista generoso que acredita nas pessoas e no
que elas sabem sobre si.
Aos 80 anos continua a formar e a ouvir. No seu amplo consultório
- um terceiro andar de um prédio em Lisboa - em frente à secretaria atafulhada
de papéis há um cadeirão desenhado por Charles Eames. É aqui que se senta. Ao
lado, a célebre chaise longue de Le Corbusier. É aqui que deita os
seus pacientes. "O colchão vermelho fui eu que o mandei fazer", diz,
apontando para o divã. "Tive um paciente bastante largo que não ficava
nada confortável aqui deitado. Agora, ficou melhor. Quer experimentar?"
Nas sociedades atuais vivemos obcecados pela ideia do prazer? Penso que
não. É uma ideia que se vende muito mas que não corresponde à realidade.
Quando iniciou a sua vida profissional, nos anos 60, a palavra
prazer não fazia parte do nosso léxico como hoje faz. Deste então ganhou uma
imensa proporção. Nessa
altura, associava-se quase exclusivamente ao prazer sexual. Hoje o prazer de
que as pessoas tanto falam tem sobretudo que ver com usufruto.
O que a revolução sexual veio reivindicar foi precisamente o
prazer no sexo. Passou
a ser um tema. As pessoas passaram a falar e a viver a sexualidade com maior à
vontade. Isto é real. Hoje, mesmo nas patologias, raramente aparecem doentes
por causa de problemas relacionados com sexualidade - e antigamente não era
assim. Mas devo dizer que, apesar de haver um certo exagero nessa necessidade
de procura de prazer, acho que em relação ao tempo em que comecei a exercer é
uma reação bastante benéfica.
Porquê? Era
bem pior quando procurávamos o sacrifício e tudo girava em torno da culpa. A
grande transformação nas sociedades ocidentais foi a de termos passado de uma
sociedade dominada pela culpa para uma sociedade baseada no sucesso.
E como é que isso se traduz nas nossas vidas? Temos três
emoções inibitórias: medo, culpa e vergonha. Sou ainda do tempo em que as
depressões na adolescência tinham, quase sempre, origem na culpabilidade. Hoje
as depressões estão associadas a questões que se relacionam com sucesso e
competência. O que nos move agora é o êxito e o medo de falhar. Nas sociedades
de sucesso, a vergonha substituiu a culpa.
Pode-se então dizer que o prazer também se associa ao êxito na
medida em que é uma recompensa? É
um pouco diferente. Na realização do êxito há uma determinada fasquia que
obriga a sermos bons. Neste sentido há uma grande desvalorização do prazer.
Quando dou uma conferência não me perguntam se tive prazer em realizá-la.
Perguntam-me se tive êxito. Mas ainda a propósito destas questões relacionadas
com as sociedades de consumo e do prazer: penso que hoje há uma tendência para
a procura dos prazeres imediatos e uma certa dificuldade em acertar com o tempo
de espera.
Tudo tem de ser 'aqui e agora'? A
tal incapacidade de aguentar a frustração? Dificuldade de tolerar a frustração,
talvez. Mas neste ponto, tenho uma opinião um pouco diferente da maior parte
dos autores.
Qual é? Há toda uma teoria muito aceite que defende que é preciso
introduzir no universo infantil a frustração, para que as crianças se habituem
a tolerá-la. Não
concordo. A frustração é sempre negativa, não se deve procurá-la. O que se deve
introduzir é a capacidade de aumentar o tempo de espera. É uma nuance em relação à ideia de frustração, mas
é uma nuance importante.
O que é a frustração? A
maior parte das vezes confunde-se frustração com privação. Privação é ter sede
e não ter água para
beber, frustração é ter uma garrafa com água e não poder
bebê-la. A frustração é muito mais traumática.
Mas quem nos diz que é preciso ter tolerância à frustração são os
terapeutas. E
a maioria pensa mesmo assim. Também dizem que é preciso estabelecer limites - e
também não concordo. O necessário é ensinar que a realidade tem limites, o que
é uma coisa diferente. Há um autor americano, que conheço pessoalmente e que
aprecio, o Brazelton, que diz que o bebé precisa de amor e disciplina. Não
estou nada de acordo com isso da disciplina. As crianças precisam de ter um
ambiente disciplinado e organizado, o que não é exatamente o mesmo.
Quando se entra num processo de análise procuramos saber o que
sentimos ou quem somos? A
maioria das vezes o que aparece à superfície é o que se sente. Mas depois
começam a surgir os problemas relacionados com as questões identitárias. Muitas
vezes as coisas acontecem ao contrário. Há muitíssimos doentes com fortes
sintomas de inferioridade que aparecem com supercompensações de superioridade.
De uma maneira geral as pessoas exibem o que não têm ou pelo menos julgam que não
têm.
Do ponto de vista da psicanálise o que é inato em nós? Há coisas
genéticas e determinantes. Por exemplo, as questões do bem-estar e do prazer
têm uma tradução neurológica no sistema cerebral. As pessoas mais ligadas ao
prazer imediato funcionam mais no sistema límbico, que é uma parte do córtex
mais antigo. As mais focadas na ideia do bem-estar e capacidade de espera,
funcionam sobretudo no córtex frontal. A maioria dos nossos genes determina
tendências que se desenvolvem, ou não, de acordo com o que se encontra no meio
ambiente
O que é físico e emocional vai-se desenhando no nosso cérebro,
estamos sempre em rede? Tudo
está ligado e desenvolve-se nesta articulação. As hormonas determinam o nosso
comportamento, mas o nosso comportamento também determina a taxa hormonal que
vamos acumulando. Por exemplo, por volta do terceiro mês de uma criança do sexo
masculino processa-se um aumento grande de testosterona que determina aquilo a
que chamamos o cérebro sexual. Se nesta fase, o bebé macho for tratado como uma
rapariga, a taxa de testosterona baixa.
Um século depois de Freud, qual é o modelo de psicanálise que hoje
se pratica? Varia
muito. A maioria dos psicanalistas continua a praticar o modelo clássico, são
bastante ortodoxos. Mas há um grupo mais contemporâneo, e bastante mais
pequeno, que pensa a psicanálise de outra maneira e ao qual eu pertenço.
E como a pensa? Como
em qualquer ciência, tudo deve ser baseado em provas. Portanto as teorias que existem
são provisórias ou falsas. Como em qualquer mistério científico, o que
procuramos são as causas e encontrar solução para essas causas. A base clínica
é a observação.
Mas a matéria que compõe o nosso sentir e o nosso pensar não pode
ser observada em laboratório. Pois
não.
Com que ferramentas trabalha? A
realidade é o próprio doente, trabalho com aquilo que sente. Na psicanálise
clássica, avançava-se com toda uma teoria que comprovasse os sintomas. Agora,
há um novo paradigma, em que se entende que o processo de psicanálise é um
processo que induz mudança. Este movimento tem origem num grupo de
psicanalistas de Boston, com o qual eu me identifico. Baseia-se na ideia de que
um indivíduo, perante as vivências que teve - não só na infância, mas também na
adolescência -, adquiriu uma determinada personalidade ou um determinado estilo
de relação menos saudável e menos produtivo para si. O processo de análise
consiste em ir interpretando este estilo no sentido de resolver e de
estabelecer uma relação mais saudável, de forma a que possa traduzir o que se
passa no consultório para a sua vida real.
Como é que decorre o processo terapêutico? É o mesmo
de sempre. Decorre a partir da conversa entre analista e paciente. A forma de
conduzir é que é diferente. Em vez de termos na cabeça uma teoria que
aplicamos, procuramos observar o que se passa com aquele paciente, vamos
interpretando e construindo hipóteses em conjunto. Para mim, a questão
fundamental é que uma pessoa seja capaz de se autoanalisar e que acabe a análise
com uma capacidade de reflexão sobre si próprio maior do que a tinha.
Conseguir devolver essas ferramentas é o maior sucesso de uma
terapia. E se há um fracasso? Como lida com os seus insucessos? Mal, como
todos nós...
Com culpa? (Risos)
É sempre desagradável. O pior que pode acontecer, e aconteceu-me um pouco
marginalmente, é haver um paciente que se suicida. Tive um paciente com um
diagnóstico de esquizofrenia. Tratei este homem durante 15 anos. Ao princípio
uma vez por semana, no final já só o via de seis em seis meses. Dei-lhe alta.
Precocemente. Passado um ano suicidou-se.
Esquizofrenia e bipolaridade não são doenças irreversíveis?
Podem-se curar sem medicar? Depende.
São doenças mais graves. Mas a esquizofrenia é um espectro. Há casos mais
simples e capazes de ser tratados com relativo sucesso. É preciso que se
apanhem muito cedo. Cerca de 75% dos sintomas de esquizofrenia começam na
adolescência.
Como se revelam? Num
diagnóstico de esgotamento. O indivíduo que deixou de estudar porque a namorada
o deixou... Mas se for tratado nessa altura a maior parte das vezes passa a sua
vida sem ter nada.
E a bipolaridade, de que agora tanto se fala? É um
exagero de diagnóstico. Há naturezas mais alegres ou mais tristes e agora
qualquer pessoa é logo considerada bipolar. Aqui há tempos estava numa reunião
de apresentação de médicos e estava a contar umas histórias e umas anedotas e
alguém me dizia que eu estava sempre bem disposto. Respondi: "Olhe, tive
muita sorte porque na minha infância não havia pedopsiquiatras. Senão teriam
diagnosticado uma síndroma de deficiência de atenção ou hiperatividade. Em
adulto jovem, já fui eu que não deixei o psiquiatra ver-me. Senão ter-me-ia
diagnosticado uma coisa bipolar e hoje estava completamente lixado".
(Risos). Estava a caricaturar, mas é mais ou menos assim.
Acontece-lhe não ter respostas? Há
tempos, num congresso, perguntavam-me se tinha dúvidas. Respondi que quando
percebo cinco por cento do que se passa já fico muito contente. Há uns anos um
paciente, que por acaso era psicólogo, numa sessão em que estive
particularmente calado disse-me: "Hoje está muito calado, deve ter pensado
uma série de coisas sobre mim e não disse nada. Porque o doutor sabe mais de
mim do que eu". Respondi-lhe: "Tem a certeza de que é psicólogo? Acha
que alguém pode saber mais sobre si do que você próprio?". Chegou-se a
este absurdo.
Recorre-se em excesso às terapias? E aos
médicos também.
É um pânico com a ideia do sofrimento? Muitas
vezes é. Somos o país da União Europeia que mais consome psicotrópicos. Os
médicos e os psiquiatras receitam a torto e a direito.
Receita? Raramente.
Os dados que temos sobre a depressão são alarmantes. Revelam-nos
que será a grande doença do século XXI. É mesmo assim? É.
O que é que isto nos diz sobre a forma como vivemos? Várias
coisas. Mas também é preciso dizer que esses dados aparecem porque hoje fazemos
diagnósticos mais corretos e mais precisos. É verdade que muitas vezes também
se abusa, há um excesso de diagnóstico e um excesso de tratamento. Em relação à
sua pergunta, posso dizer que nas sociedades atuais - isto é duvidoso mas mais
consensual - um dos fatores de depressão tem que ver com o facto de as relações
entre pais e filhos se terem tornado mais frágeis, devido ao modo como vivemos.
Outro aspeto é o isolamento. Ao nível dos laços sociais, e talvez esses sejam
os mais importantes, as pessoas são menos solidárias e vivem em excessiva
competição. Não mata mas mói. As pessoas sentem-se menos amadas e mais
desamparadas.
Desamparo, outra expressão muito usada pelos terapeutas. Em que
difere de abandono? Desamparo
é abandono físico. O mais grave é o abandono afetivo. "A minha mãe está presente,
mas está a fazer o doutoramento, tem um novo amigo, etc., e não me liga a ponta
de um corno...". O abandono é a grande causa de depressão, e morde muito
mais do que o desamparo.
Do ponto de vista da psicologia, a infância continua a ser o
território onde tudo acontece? A
saúde mental constrói-se na infância. Os fatores posteriores são menos
importantes. Uma criança teve perdas de afetos na infância, fez uma depressão
infantil que pode ter passado despercebida, estará mais fragilizada na idade
adulta e poderá deprimir facilmente. Se teve uma infância sólida aguentará bem
as perdas afetivas.
Há qualquer coisa de assustador nessa ideia de que os alicerces se
constroem todos ali e se corre mal é irremediável. Não é
irremediável. Há um outro período importante, ao qual durante muito tempo não
se deu grande significado, mas ao qual hoje já damos, que é a adolescência.
Costumo dizer que na adolescência tudo se pode perder, mas tudo se pode ganhar.
A maior parte das vezes, com tratamentos curtos, ou mesmo sem tratamento,
consegue-se dar um salto.
Quando começou a interessar-se pela psicanálise? É difícil
responder-lhe. Quando fiz o curso de medicina todos os professores achavam que
tinha muito jeito manual, o que é verdade, e encaminharam-me para a cirurgia.
Ainda fiz cirurgia geral, depois cardíaca, mas não me interessou muito. Eu
tinha outras coisas. Durante o liceu comecei a escrever, gostava muito de
filosofia, lia muito... Tudo isto levou-me para a psiquiatra. Mas a minha
escolha também teve que ver com outro fator. Na altura abriu um lugar para
psiquiatria no hospital do Porto e eu queria ganhar um salário para poder
casar.
Uma opção pragmática? Exatamente.
Nesse lado saio ao meu pai.
A imagem inicial que tinha sobre a sua família alterou-se muito
depois do seu processo de análise? Tornou-se
mais clara. Sobretudo em relação à minha mãe, que era a personalidade mais
complicada. Com ela, tinha uma certa raiva. Era profundamente beata, e tivemos
grandes conflitos por causa disso. Mas, simultaneamente, também era muito
histérica e portanto havia uma sexualidade sempre presente. Quando fiz a minha
análise percebi que a história de infância dela tinha sido complicada e que
naquela cabeça havia uma grande dose de loucura. Isso levou-me a compreendê-la
melhor. É muito importante saber aceitar. Digo muitas vezes aos analistas que
formo que o pior defeito que podem ter é personalidades narcísicas e estar mais
concentrados em si do que nos outros.
É fundamental haver generosidade sobre o outro? É o mais
importante.
A si nada o choca? Aparentemente
não. Mas há coisas que tenho muita dificuldade em perceber. Uma das
dificuldades de tratar psicóticos é essa. Um esquizofrénico tem uma perturbação
do pensamento bastante diferente da comum das pessoas.
O que aprendeu sobre a condição humana? Da minha
experiência podia dizer que há uma coisa muito desagradável sobre a condição
humana: somos uns animais muito agressivos. Mas também penso que somos animais
extremamente solidários. Se formos capazes de fazer sobressair essa parte nas
pessoas, conseguimos fazer coisas úteis uns pelos outros. A maior parte das
vezes essa agressividade não é nem inata nem espontânea. É reativa e revela
muita dor e sofrimento. Todas as pessoas têm lados positivos e muitas vezes não
o sabem encontrar e nós também temos dificuldade em os desenvolver. É disso que
temos de ir à procura. Na técnica psicanalítica que pratico e que ensino é que
nunca ando atrás do que as pessoas têm de negativo. Procuro o que as pessoas
têm de mais saudável.
Qual é a palavra mais adequada para aquilo que faz? Os médicos
costumam dizer que não tratam doenças, tratam doentes. Digo que nós, os
psicanalistas, vamos mais longe, conversamos com as pessoas. Ajudamo-las a
conhecerem-se um pouco melhor para encontrarem o seu caminho.
Publicado na Revista Única do Expresso de 31 de Julho de 2010