segunda-feira, agosto 06, 2007

A VIDA DEPOIS DA VIDA

É sobre transplantação de órgãos que vos trago alguns salpicos. Não que seja um assunto propriamente sintónico com a sensação de férias que a todos assalta, mesmo aos que de férias não estão. Porém ouso escrever um pouco sobre o assunto nesta altura pois sinto que é sempre hora de pensar a vida e particularmente a vida que se ganha quando quase se perdeu.
Alguém disse na primeira pessoa que "Fazer um transplante é viver de novo sem nunca ter morrido verdadeiramente".
As questões do transplante de órgãos jogam-se na fronteira da identidade do corpo com a identidade do ser. O corpo tem uma identidade, um self biológico que se conhece a si próprio, que representa uma barreira entre o Eu e o Outro – o sistema imunitário. A patologia do self biológico representa a dificuldade de se reconhecer a si mesmo que advém do deficit do sistema imunitário, seja este provocado como no caso do transplante de órgãos ou adquirido como nas doenças auto-imunes. O self poder-se-ia dizer em primeira instância imunológico (Meissner, 1997).
O transplante permite-nos pensar sobre o que acontece quando uma parte estranha é introduzida no corpo, quando algo é acrescentado ao interior do corpo. O novo órgão ao ser introduzido no corpo, alcança imediatamente representação mental e começa a relacionar-se com introjecções já existentes, cujos conteúdos ele activa (Castelnuovo-Tedesco, 1973). O paciente tem então uma experiência que vai para além de receber fisiologicamente um órgão. Não se trata apenas de o corpo aprender a adaptar-se ao novo órgão como se lhe pertencesse. O self experiencia a nova aquisição como algo introjectado, como um objecto ou parte de um objecto que se torna imediatamente bastante activo. Aquilo que anteriormente era não self, começa a ser sentido agora como parte do self (ainda que algumas vezes esta integração ocorra sobre o preço de intensa conflitualidade).
Porém, a aceitação do self biológico acontece sob o preço da indução da sua patologia, a diminuição da capacidade de se reconhecer a si próprio (diminuição da actividade do sistema imunitário), de saber quem é, pois caso contrário ele rejeitaria o não-self proposto, dado ser algo de estranho (o que conduziria à rejeição do órgão transplantado). Considerando o self a totalidade do ser, o seu corpo e a sua mente, a sua carne e as suas emoções, a patologia do self biológico exigirá inevitavelmente uma profunda reformulação do Si. O transplante introduz um corte entre a definição de si próprio relativamente ao passado, ao presente e mesmo na antecipação do futuro. Tornar o transplante uma parte suficientemente integrada da identidade, poderá contribuir para a sobrevivência de um self coeso, para a percepção do transplante como possuidor de significado, propósito e controlabilidade e, paralelamente, para a promoção da saúde. Isto porque "é o sentido do significado de melhoria que se procura pois que a felicidade e a infelicidade são existênciais e o valor da vida não se mede apenas pela capacidade de execução biológica" (Degos, 1993).
Referências
Meissner, W. (1997). The embodied self-self versus nonself. In L.Goldberg (Ed.), Psychoanalysis and contemporary thought. New York: International Universities Press, Inc.
Castelnuovo-Tedesco, P., Torrance, C. (1973). Organ Transplant, Body Image, Psychosis. Psychoanalytic Quarterly, v. 42, p349, 15p. Retrieved September, 13, 2005, from PEP Archive (Psychoanalytic Electronic Publishing) database.
Degos, L. (1994). Os enxertos de órgãos. Lisboa: Instituto Piaget. (Tradução do original em língua francesa Les Greffes d’Organes. (S.I.) : Flammarion, 1993)

3 comentários:

maria inês disse...

Olá Edite!
Fiquei um tanto surpreendida por ver este tema no salpicos, devo acrescentar, agradávelmente surpreendida.
Trabalho directamente com doentes transplantados hepáticos, e ter visto o assunto da transplantação ser abordado de um ponto de vista mais analítico agradou-me particularmente.
Será que me podia facultar alguma bibliografia sobre o tema?

Rui disse...

Cara Edite, esta abordagem à problemática da transplatação de um órgão, bem como ás doenças auto imunes é fantástica!!!!!
A psicoimunologia é uma área fascinate de estudo que vai permitir-nos no futuro, compreender alguns fenómenos que actualmente não conseguimos perceber.
Parece que a psicanálise e a psicologia ainda têm algumas coisas a ensinar à medicina!!!
Como a colega Inês, também eu gostaria de obter mais informação sobre este tema. Aproveito a sugestão que tenho a certeza que vai facultar à colega!!!
Com os melhores cumprimentos,
Rui Costa

Edite Tavares disse...

Inês Mega e Rui,a morosidade da resposta prendeu-se com uma certa viagem a Maastricht por conta da 22ª Conferência da EHPS “Health Psychology and Society”, mas aqui está, tardou mas chegou. De facto não há grande abundância de bibliografia que aborde a questão do transplante na perspectiva psicanalítica. Deixo-vos aqui alguns títulos sobre esse assuntos, bem como sobre os “diálogos” corpo/mente dado o Rui me ter parecido interessado nessas temáticas. Muitos dos títulos poderão ser encontrados nas bases electrónicas de documentação existentes por exemplo nas bibliotecas do ISPA e da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação

Castelnuovo-Tedesco, P. (1978). Ego Vicissitudes in Response to Replacement or Loss of Body Parts: Certain analogies to events during psychoanalytic treatment. Psychoanal. Q., 47:381-397. Retrieved January, 1, 2005, from PEP Archive (Psychoanalytic Electronic Publishing) database.

Castelnuovo-Tedesco, P. (1981). Psychological Consequences of Physical Defects: A Psychoanalytic Perspedctive. International Revue of Psycho-Analises, 8: 145-154.

Castelnuovo-Tedesco, P., Torrance, C. (1973). Organ Transplant, Body Image, Psychosis. Psychoanalytic Quarterly, v. 42, p349, 15p. Retrieved September, 13, 2005, from PEP Archive (Psychoanalytic Electronic Publishing) database.

Coltart, N. (1996). The self: What is it? In V. Richards (Ed.), The person who is me: Contemporary perspectives on the true and false-self (pp.85-92). London: Karnac Books.
Damásio, A. (2000). O erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano (20ª ed.). Mem-Martins, Portugal: Publicações Europa-América. [Tradução do original em língua inglesa Descarte’s error – Emotion, reason and the human brain. (S.I.),1994].

Damásio, A. (2000). O sentimento de si: O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência (7ª ed.). Mem-Martins, Portugal: Publicações Europa-América. [Tradução do original em língua inglesa The feeling of what happens. (S.I.), 1999].

Freedman, A. (1983). Psychoanalysis of a Patient who Received a Kidney Transplant. Journal of the American Psychoanalytic Association, v. 31, p917, 40p. Retrieved September, 21, 2004, from Psychoanalytical Electronic Publishing.

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Stora, J. (2007). When the Body Displaces the Mind : Stress , Trauma and Somatic Disease. Karnacbooks, London.

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