segunda-feira, outubro 06, 2014

"Porque te amo demais!": Amor e Dependência (II)



Podemos pensar o amor maduro como implicando duas direções em equilíbrio dinâmico. Primeiro, é um amor autodirigido e, depois, dirigido ao outro. A auto-consideração, a capacidade de cuidarmos de nós próprios e de nos valorizarmos são expressão natural do amor-próprio, autoestima ou autoconsideração. Esse amor existe dentro de nós no presente porque foi continuamente e/ou suficientemente transmitido para nós no passado, durante os anos formativos da personalidade. O amor dos cuidadores transforma-se em amor próprio no presente.

O amor-próprio, como por exemplo uma boa autoestima, coexiste habitualmente com a capacidade saudável de amar. A pré-condição é a de que na base da autoestima esteja um desenvolvimento psicoafetivo saudável e que as necessidades de dependência tenham ficado adequadamente vividas e plenamente satisfeitas na história do desenvolvimento da personalidade de cada um de nós. Isto é, importante que uma criança, no seio da sua relação com os seus cuidadores, sinta que são adequadamente satisfeitas as suas necessidade afetivas, de atenção, de se sentir importante, de receber apoio, de sentir o envolvimento e a preocupação dos cuidadores.

O amor maduro é um amor generoso, que dá sem pedir em troca
-  claro que é necessário recebermos amor de volta, ainda que não necessariamente "em troca". Numa relação amorosa genuína, madura e saudável não deve existir medição de afetos ou de cuidados, registos do que se dá e do que se recebe, ou cobranças. Esta relação deve existir e decorrer enquanto um fluxo contínuo e livre de dar e receber. É um amor que surge mais pleno quando a robustez psicológica permite a autorregulação do amor-próprio (ou autoestima), sem obstáculos ou dificuldades internas acentuadas, e na maioria das situações da vida. O contrário é a dependência de algo ou outros exteriores para fins de regulação da autoestima.

O amor maduro é um amor que permite liberdade na relação. É maduro porque nasce dentro de nós, pode ser dado continuamente e repõem-se autonomamente. Não depende de terceiros. É um amor que amadureceu a esse ponto, porque quem o têm precisou primeiro de recebe-lo adequadamente durantes os anos formativos da personalidade. Este amor maduro protege-nos das relações insatisfatórias pela capacidade que nos confere de cuidarmos de nós mesmos e pela auto-preservação que daí resulta. Do outro lado temos o "aguentar" da insatisfação contínua e crescente nas relações, que conduz à deterioração emocional gradual e contínua, que muitas vezes tem por base um amar de dependência.

O "amor" dependente é diferente. Ele obscurece e ilude a insatisfação numa relação, procurando assim preserva-la a todo o custo. Aprisiona a pessoa à relação e à necessidade que essa relação seja e se torne naquilo que se precisa ou se idealizou - naquilo que outrora se precisou, noutras circunstâncias, noutros tempos e com outras figuras importantes, nomeadamente os cuidadores da infância precoce. Assume muitas vezes o rosto de um amor exigente, alicerçado na necessidade premente de se receber amor, atenção, valorização, cuidados e/ou recursos e outros "alimentos emocionais" que possam preencher a falta (muitas vezes crónica) de afeto, validação ou mesmo de vida interior.

O amar dependente é expressão de algo que outrora não se pôde viver e receber nas primeiras relações que a vida ofereceu, ou de algo que se recebeu insuficientemente, algo que se perdeu precocemente. Fica o sentimento de algo que está em falta, e se procura no contexto da intimidade com alguém. É uma falta emocional ligada à qualidade do desenvolvimento psicológico precoce e exerce constante pressão na psicologia da pessoa no sentido de ser colmatada. As relações amorosas são muitas vezes a preocupação central na vida da pessoa aquando de quadros de dependência. As relações amorosas são ansiosamente procuradas ou preservadas, mesmo quando se tornam insatisfatórias a curto ou a médio prazo. Transformam-se muitas vezes num reencenar contínuo de padrões relacionais conflituais, pois os mesmos problemas tendem a repetir-se sistematicamente, frequentemente enquanto expressão irónica da relação primária que originalmente gerou o(s) problema(s). Falta interna e padrões relacionais internalizados patológicos interligam-se entre si. Condensam-se e revivem-se no vínculo e no palco da vida amorosa.

Por via da dependência as relações amorosas passam a estar ao serviço de necessidades psicológicas e emocionais próprias de um período de vida anterior onde os vínculos eram de natureza essencialmente diferente daqueles que formam o amor adulto, próprio da vida adulta. Os vínculos de dependência, próprios do período da infância, implicam a necessidade de depender e de receber. Isto é, num primeiro período da formação da capacidade de amar madura, o dar (afeto, por exemplo) faz-se acompanhar necessariamente de um interesse em receber - atenção, disponibilidade, afeto, apoio, cuidados emocionais básicos. Tal forma de amar (de dar) é esperado no decurso dos primeiros anos de vida.

A dependência conduz muitas vezes ao "aguentar" de uma má relação, frequentemente em nome do "amor", em prol de um amanhã mais feliz - que nunca chega, ou quando chega sabe a pouco e não satisfaz realmente -, ou em prol de uma certa relação que só a própria pessoa consegue (pre)ver, contra tudo e contra todos (os aspetos da realidade). "Mais vale mal acompanhado(a) do que só" - realidade que em clinica é constatada vez após vez. É a expressão de algo que algo está mal. Expressão de que algo necessita ser reparado ou ultrapassado, e expressão do medo de tal não acontecer e do medo de se ficar sozinho(a), por exemplo. É também expressão de outras dinâmicas internas (paralelas) que funcionam como amarras a relações que não têm o potencial para reparar feridas, preencher vazios ou ajudar na emancipação dos obstáculos interiores, paredes e correntes que nos arrastam para longe da possibilidade de conseguirmos encontrar e manter relações íntimas, estáveis e verdadeiramente satisfatórias.


No próximo artigo discutiremos um pouco sobre como a psicoterapia psicanalítica lida e se dirige com eficácia à resolução da dependência afetiva e padrões de dependência nas várias relações.

terça-feira, setembro 30, 2014

Homens e mulheres

Os papéis dos homens e das mulheres, e quem é quem, dão lugar a momentos de humor. A importância relativa de um dos membros do casal, consoante as perspectivas, pode ser divertida.
A propósito do casamento de George Clooney com a advogada Amal Alamuddin, vejam como está redigida a notícia na Business Woman:


segunda-feira, setembro 29, 2014

Palavras e imagens




Ansel Adams, Aspens, Dawn, Autumn, Dolores River Canyon, Colorado, 1937  






"Porque te amo demais!": Amor e Dependência (I)

 
"Mas porque é a infância de uma pessoa é assim tão importante?"; "Não entendo, nós temos tantas relações ao longo da nossa vida que é natural irmos recebendo de cada uma delas aquilo que precisamos... é uma questão de encontrarmos a pessoa certa".

Ora bem, neste argumento há sem dúvida o reconhecimento da realidade de uma necessidade - "aquilo que precisamos". Acrescentaríamos até, "aquilo que precisamos das e nas relações, por parte de com quem nos relacionamos". Isto, claro, implica já o reconhecimento de uma certa dependência em relação aos demais e algo que eles nos podem oferecer de que nós necessitamos, e logo, o reconhecimento de que as relações são importantes para nós, para o nosso equilíbrio emocional e psicológico.

A grande verdade do argumento introdutório deste artigo está ligada à importância para a nossa saúde emocional de vivermos várias (e diferentes) relações ao longo da vida. A diversidade nas relações é estimulante, torna mais abrangente a nossa forma de ver e de pensar a vida, abre-nos as portas a novas realidades e experiências, e eventualmente traz-nos novas soluções para problemas antigos (já para não falar de que também nós nos podemos tornar disponíveis para podermos dar tudo isto ao outro).

No entanto, o argumento entra em falha pela desconsideração de 3 grandes realidades psicológicas humanas:

1) A natureza dos vínculos humanos é diversa, ou seja, existem vários tipos de vínculos bem distintos - vínculos parentais, vínculos fraternos, vínculos de amizade, vínculos conjugais, etc. - nos quais se jogam necessidades e vontades humanas diferentes. Por tal, diferentes tipos de vínculos têm impactos diferentes na nossa psicologia ou no nosso desenvolvimento psicológico. Isto implica que determinadas necessidades psicológicas e afetivas, bem como determinados contextos de relação, sejam aspetos que pertencem e caracterizam os vários vínculos que formamos com os demais. Dito de outra forma, regra geral não saímos "para os copos" com as nossas mães, não esperamos que os nossos amigos nos paguem os estudos superiores e não partilhamos com o nosso vizinho a intimidade que partilhamos por exemplo, com o nosso médico de família, ou psicólogo. As exceções ou sobreposições de vínculos existem, mas devem ser consideradas e ponderadas caso a caso.

2) Os primeiros vínculos, os vínculos com os nossos cuidadores durante o período da infância - sobretudo durante o 1º ano de vida -, são os mais importantes e críticos para o desenvolvimento da nossa personalidade. Logo no início de vida eles são o meio que vai mediar as necessidades primárias humanas, geneticamente determinadas, com que todos nascemos à priori, e que estão relacionadas com o desenvolvimento psicofisiológico dos primeiros tempos de vida. Falamos de um período em que a nossa psique (enquanto bebés) é ainda extremamente frágil e vulnerável, incapaz de se proteger adequadamente contra a angústia e a frustração. O bebé recém-nascido traumatiza facilmente com a exposição precoce contínua ou prolongada à privação e à angústia resultante. O bebé não tem a mesma capacidade de fazer face à angústia que um adulto têm, nem mesmo a capacidade que tem uma criança já com acesso ao pensamento e à linguagem, capaz de articular e expressar por palavras as suas emoções, por exemplo. Estas experiências de exposição à angústia prolongada ou contínua durante os primeiros tempos de vida relacionam-se frequentemente com aquelas que são as psicopatologias e perturbações de personalidade consideradas as mais graves nos períodos posteriores de vida - por exemplo as psicoses, as perturbações psicossomáticas, as perturbações borderline e narcísicas de personalidade.

3) Quando as primeiras relações não satisfazem adequadamente certas necessidades fundamentais da criança, então a dependência - ou o "amor infantil" -, própria deste período de vida, permanece muitas vezes instalada na personalidade enquanto forma central ou preponderante de amar e de funcionar mais tarde na vida adulta e na relação amorosa/íntima (independentemente da pessoa com quem se estabelece tal relação). A não resolução da dependência infantil implica a limitação do acesso ao amor maduro, um amor não exigente, paciente, que investe o outro sobretudo por quem o outro é - amor oblativo - e não por aquilo que o outro nos dá ou pelas vantagens que a associação ou proximidade com ele nos pode trazer - amor narcísico. Neste último caso, as relações amorosas na vida adulta tendem a ser procuradas (ainda que inconscientemente) no sentido de, por exemplo, evitar o contacto com a dor da carência precoce instalada no âmago da personalidade, são necessárias para a manutenção da autoestima, para tentar colmatar um "vazio", ou mesmo usadas como antidepressoras, no sentido de "tapar" a dor emocional e/ou a confusão mental. O vinculo amoroso (re)ativa tudo o que está ligado à própria capacidade de vinculação afetiva, ou seja, tudo o que foi ou não vivido nos vínculos primários de infância. Problemas de "vazio", de faltas afetivas, de contenção, de compreensão, de validação e outros problemas psicológicos e relacionais instalados precocemente na própria natureza e dinâmica vinculativa infantil emergem aqui. São também reativadas e/ou reforçadas muitas vezes defesas psicológicas contra essa faltas e problemas, podendo tal gerar sérios problemas de estabilidade emocional e relacional.

A relação amorosa e o vínculo de amor maduro transformam-se no veículo de retoma dos vínculos de infância, e na reativar do vínculo de dependência - o amor dependente. É como que uma regressão (parcial) a uma etapa anterior do desenvolvimento psicoafetivo que não ficou bem resolvida. Acaba por surgir um conflito e muita confusão à mistura: por um lado há uma relação amorosa adulta e um outro que é companheiro adulto ou companheira adulta, e, por outro lado, estabelece-se uma relação de dependência por ativação do vínculo de dependência que está ainda para ser resolvido. Tal não é possível porque as relações amorosas ou as amizades não são relações estruturantes da personalidade, tal como o são (ou deveriam ser)   as relações parentais (ou a figura do psicoterapeuta e a relação psicoterapêutica).

Muitas vezes estas sobreposições/confusões de vínculos maduros e de dependência não são totalmente conscientes. Formam-se expetativas desajustadas sobre as relações amorosas e sobre o papel do(a) companheiro(a). Quando essas expetativas pessoais - conscientes ou não - não são satisfeitas tal gera muitas vezes uma frustração intensa, dificilmente suportável, com expressões emocionais e comportamentais de fúria e irritação dirigidas ao companheiro ou companheira. Em certos casos estas reações emocionais e comportamentais fazem-se acompanhar de estratégias de controlo, culpabilização, manipulação, etc. da outra pessoa. A finalidade é que esta outra pessoa corresponda (ou regresse) às expetativas - conscientes ou não - que recaem sobre ela. Aqui surge muitas vezes um fenómeno de "cadaverização" do outro. Ou seja, o outro fica limitado na sua liberdade de ser quem é, tornando-se como que numa extensão narcísica do primeiro, alguém que deve acima de tudo desempenhar um papel e uma função para essa primeira pessoa. Se não corresponde a esse papel, então é (erradamente) transformado e percebido como a fonte de todo sofrimento pessoal.

Enquanto seres humanos, temos uma tendência natural e inconsciente de selecionar parceiros que de alguma forma dão expressão aos nossos problemas não resolvidos. Isto significa que muitas vezes o outro também carrega o mesmo problema ou problemas, ainda que o que possa estar mais em evidência num primeiro momento seja a defesa contra o problema (que facilmente se pode confundir com a sua resolução). Assim, geram-se rapidamente dinâmicas relacionais patológicas, bastante difíceis de desmontar e quebrar, pois as faltas emocionais e de autoestima, as zangas com origem nas relações precoces, e as internalizações patológicas de parte a parte formam um conluio no seio do casal que interprende ambos em algo que tendencialmente é mais forte que o amor - a união na loucura. Mais forte que o amor, pois clinicamente se verifica que o amor (maduro) é livre, enquanto que a dependência e a patologia acorrentam as pessoas umas às outras.

No próximo artigo discutiremos um pouco mais sobre amor maduro e "amor" dependente.

quinta-feira, setembro 25, 2014

terça-feira, setembro 23, 2014

Humildade e Maturidade Psicológica


A integração psicológica ou da personalidade significa sermos capazes de aceder às mais diversas partes de nós mesmos e da nossa experiência, por mais difíceis ou penosas que estas possam ser. Quando não há tolerância a estes conteúdos internos, eles ficam dissocidos da personalidade, desintegrados, e logo, não podemos usar essa informação interna para aprender com ela, ou seja, não podemos aprender com a experiência.

Quanto melhor nos conhecermos, quanto mais informação sobre nós estiver à nossa disposição, ao nosso acesso ou alcançe consciente (ou pré-consciente), melhor conseguimos cuidar de nós, melhores as escolhas que fazemos para na vida e melhor conseguimos compreender os demais e o mundo à nossa volta. Em suma, melhor as coisas correm para nós.

A humildade parece ser uma forma particular de expressão de maturidade psicológica e de saúde mental. Quando é genuína, ela parece transparecer uma certa atitude de tranquilidade interior, mais ou menos de paz ou de algum modo termos feito as pazes connosco mesmos e com a vida. Parece estar associada a uma capacidade de podermos apreciar realisticamente as nossas vulnerabilidades e fragilidades, de poder falar delas e até partilha-las (até certo ponto). Podemos mesmo desenvolver uma capacidade de apreciação lúdica dessas mesmas vulnerabilidades e fragilidades, isto é, o podermos achar graça ou nos podermos rir - de forma considerativa e não depreciativa, claro - de algo que fazemos ou fizemos menos bem, de alguma "azelhiçe" que possamos ter cometido. Parece também implicar a capacidade de podermos empatizar com as dificuldades, vulnerabilidades ou "azelhiçes" alheias.

Podemos pensar a humildade enquanto uma expressão de tolerância interna ás partes da personalidade mais vulneráveis, frágeis, desleixadas ou "socialmente desafinadas". È uma expressão de força da personalidade -  capacidade de tolerância de aspetos mais vulneráveis e potencialmente dolorosos de nós mesmos e da nossa experiência interna, sem nos livrarmos desses conteúdos via dissociação e/ou projeção. Quando existe paz relativamente ao nosso mundo interior, também teremos paz para ofercer aos demais, capacidade de cuidar (entender, tranquilizar, acalmar, aconselhar competentemente) os demais.

No polo oposto parece estar o perfecionismo (diferente de rigor), a vergonha, a necessidade de enaltecimento frequente do eu, e a critica ou desprezo dos demais. São frequentemente estratégias e consequências de uma intolerância interna ás partes mais vulneráveis da própria personalidade. O perfecionismo contra o medo de falhar e como esse medo é vivido pela pessoa; a vergonha enquanto medo da exposição das partes vergonhosas ou intoleradas perante os demais e receio do ataque critico ou da exclusão do grupo; o enaltecimento do eu enquanto negação das vulnerabilidades pessoais; e o desprezo simultaneamente enquanto projeção sobre os outros das partes intoleradas (rejeitadas e repudiadas) e subsequente ataque critico ao outro (agora confundido com as partes internas projetadas).

Em condições normativas de saúde mental a expressão e partilha pessoal da vulnerabilidade deverá suscitar uma resposta empática e algumas vezes de cuidados por parte dos outros. No entanto, a pessoa humilde parece deparar-se com dificuldades quando perante uma personalidade mais estruturada no sentido do evitamento ou negação das vulnerabilidades (as personalidades mais narcísicas, por exemplo). Nestas circunstâncias, uma atitude de à-vontade de expressão da vulnerabilidade pode a ameaçar a psicologia alheia de quem se estrutura no sentido de se defender contra a experiência da vulnerabilidade. Estas defesas psicológicas funcionam no sentido do descarte ou do ataque à expressão da humildade, e mesmo da pessoa que expressa ou apela à humildade - toda a fragilidade e expressão é intolerada e intolerável pois suscita, via da identificação, angústias insuportáveis.

Mediante certas circunstâncias, é também possível que uma pessoa humilde consiga surtir um efeito verdadeiramente transformador e psicoterapêutico na pessoa que mobiliza tais defesas face à expressão da vulnerabilidade (do desleixo, do não-saber, do ser-se pouco competente, etc.). Todavia, manter proximidade com alguém que apenas despreza e critica, e esperar transformações psicológicas profundas e genuinas aquando de um meio relacional de ataques críticos sistemáticos à nossa pessoa e à nossa boa vontade estará mais proximo do masoquismo clinico do que de uma atitude saudável.

A sintonia empática, o interesse e o não julgamento do psicoterapeuta (e também a sua experiência clínica e de vida!) criam e estruturam gradualmente na outra pessoa pessoa a experiência e sentimento de receber verdadeira e profunda compreensão. O extremo respeito e cuidado do psicoterapeuta com as fragilidades de quem está sob os seus cuidados vai incrementando e reforçando a tolerância interna à fragilidade (e o seu reconhecimento). A interiorização gradual da figura empática, compreensiva e não critica do psicoterapeuta vai de igual modo mitigando a parte interna critica e intolerante da pessoa. Tendencialmente esta instância c´ritica interna conduz à perda da "internalidade" - desintegração/dissociação psicológica ou da personalidade -, o que instala tendencialmente uma série de outras angustias, sintomas e problemas de autoestima e relacionais.

quinta-feira, setembro 18, 2014

Caminhos para a Mudança: O Auto e o Heteroconhecimento


Podemos aqui considerar dois tipos de conhecimento sobre nós próprios. Aquele mais racional, que fica à superficie e não provoca mudança - ainda que possa ser um conhecimento verdadeiro - e aquele que consegue integração na personalidade, ou aquele que produz efeito de mudança sobre as dinâmicas de funcionamento da personalidade, atitude e comportamento. Aquele que conduz ao "agir em conformidade".

Este segundo conhecimento tem a particularidade de ser um conhecimento que consegue ressonância, validação e integração emocional dentro de nós, que mobiliza aquilo a que poderiamos chamar como  a "função inata de auto-transformação e auto-atualização da personalidade". É o verdadeiro "insight", que muitas vezes se faz acompanhar pelo sentimento de se ter descoberto algo precioso e importantíssimo sobre nós. É o conhecimento que tem o potencial para provocar mudanças - conhecimento integrado na personalidade, que nos faz passar a agir em conformidade com a descoberta interior. Mas por vezes é preciso mais para provocar essa mudança.

Por vezes é preciso que consigamos ver determinadas realidades das nossas vidas por vários angulos, através de vários óculos e a partir de várias posições para que finalmente "aquilo" bata dentro de nós e propulsione a mudança. A psicanálise é um processo contínuo de análise, ou de "massacre" ás resistências à mudança, aos "boicotes" interiores. Todos os temos, caso contrário seria muito fácil mudarmos... imagine-se o efeito que a publicidade teria então sobre cada um de nós...

A interpretação sistemática em psicoterapia ou psicanálise têm esse efeito, de por exemplo nos levar  a um ponto em que ao adotarmos determinada atitude ou comportamento nas nossas vidas, subitamente dizemos para nós mesmos: "Bem, e lá estou eu outra vez nisto!". Esse ganho indica já progresso no  gradual  abandono de atitudes e comportamentos insatisfatórios e desadaptativos.
 
Será talvez mais preciso aqui falar de uma predisposição para a integração do conhecimento sobre nós próprios na nossa personalidade, nas nossas dinâmicas de funcionamento interior (percepção, gestão emocional, atitude, comportamento, etc).

Conhecimento sem integração na personalidade é qualquer coisa como estudar uma disciplina que pode ser interessante do ponto de vista da curiosidade intelectual, mas que não têm um sentido ou aplicação prática para nós ou para a nossa vida. Temos o conhecimento mas não podemos fazer uso prático dele. Desconforto, angustia e sofrimento são na verdade mobilizadores do pensamento e da função de auto-tranformação/auto-atualização da personalidade, apelam à motivação para a mudança e estimulam por isso a predisposição para a integração (recuperação de partes dissociadas, anteriormente não pensáveis, ou intoleradas e rejeitadas da personalidade, com integração em profundidade na personalidade).

Em psicoterapia é frequentemente conseguida, logo nas primeiras sessões, uma compreensão relativamente profunda da psicologia de uma pessoa. Contúdo partilhar essas informações sob forma de interpretações eficazes dependerá da proximidade desses conteúdos em relação ao consciente de algúem. Caso contrário a partilha precoce destas informações importantes pode perder-se (bem como o efeito dirigido à mudança). Encontram-se casos de pessoas que passaram por terapias anteriores e que relatam como lhe foram revelados muitos aspetos profundos delas próprias mas que só posterioremente (frequentemente através de outras psicoterapias) é que conseguiram "perceber" esses aspetos.

Existem também "auto-entraves" ao autoconhecimento. Por vezes temos consciência de uma parte de nós próprios que interfere com a nossa vida ou nos causa sofrimento. Pode tratar-se de um autoconhecimento parcial ou incompleto, ou mesmo servir enquanto forma de nos "atirar areia para os olhos" para não tomarmos consciência de uma eventual vantagem que isso possa ter para nós e para a nossa vida. São benefícios secundários dos sintomas, e logo, resistências à mudança. Há muito de nós que frequentemente não conseguimos ou não estamos preparados para reconhecer... É mesmo assim a natureza da psicologia ou da mente humana.

Há ainda, por exemplo, personalidades cujo espaço interior emocional é (tornou-se) impermeável e logo, a mudança ou a integração não são possíveis (sem que primeiro esse problema seja identificado e trabalhado e psicoterapia, o que não se faz de um dia para o outro...). É o caso de personalidades quem funcionam a partir de um falso eu,  uma formação defensiva complexa.

- O maior autoconhecimento surge da relação com o heteroconhecimento

O autoconhecimento precisa de ser alimentado por um hetero-conhecimento sobre nós mesmos, pois na verdade perde-se muito de nós pela ausência de um outro capaz de nos ajudar e gerir determinadas emoções e a organizar devidamente o pensamento. É das mais comuns experiências em psicoterapia ouvirmos alguém dizer: "De facto nunca tinha pensado nisso...", "Bem... nunca tinha pensado dessa forma..." ou "Puxa, é verdade... nunca me tinha apercebido disso...". 
 
Quando uma outra mente pensa connosco, há um acesso a outros conteúdos, a outras perspectivas, e um ganho de profundidade e de sentido diferente sobre nós próprios. Permite que o nosso autoconhecimento seja frequentemente restruturado, atualizado e muitas vezes desbloqueado. A mera presença na nossa vida de um espaço de estimulação à auto-reflexão conjunta (ou pelo menos em que sentimos que o outro está recetivo, interessado, envolvido e capaz de pensar connosco e de nos oferecer perspetivas independentes) permite-nos chegar a conclusões que de outro modo muito dificilmente conseguiriamos sozinhos. Isto é um facto incontornável do qual a psicoterapia faz uso fundamental.

Não se trata de uma absorção e incorporação do conhecimento que vêm do terapeuta ou do analista. É um autoconhecimento filtrado, continuamente refinado e que se constroi a dois, a "duas luzes", uma interior e outra exterior. Esta luz exterior enquanto uma luz dedicada a iluminar e revelar "a retaguarda" e a intensificar a luz própria.
 
A jornada do autoconhecimento é interminável, feita ao longo de toda a vida. Os percurso interiores para esse auto-conhecimento estão cheios de auto-ilusões.

O ganho do autoconhecimento e sua expressão ao nível das mudanças profundas na personalidade e na vida de uma pessoa são o motivo pelo qual quem faz uma psicanálise completa permaneça em média 7 anos no divã, a uma frequência de 3-5 sessões semanais. As ferramentas e recursos que a psicanálise vai criando internamente numa pessoa (por exemplo a capacidade de nos autoconhecermos continuamente e trabalharmos os "boicotes" e auto-ilusões interiores) tendem a permanecer ao longo de toda a vida, e logo os ganhos e benefícios conseguidos durante a psicanálise continuam a surgir na vida da pessoa mesmo após o fim do processo.

sexta-feira, setembro 12, 2014

Quanto mais nos conhecermos, mais felizes podemos ser



Uma psicanálise, e também uma psicoterapia psicanalítica, podem ser definidas como especialidades psicoterapêuticas de alta potência, dirigidas à reestruturação de personalidade. De um modo geral, o objetivo é conseguir alterações na organização, estrutura e funcionamento da personalidade no sentido de uma mais saudável e vantajosa adapatação à realidade (no mundo e nas relações), uma maior capacidade de atingir objetivos pessoais - a auto-realização - e a potenciação de estilos de vida satisfatórios.

Integrado nestas categorias gerais está o trabalho da psicoterapia no sentido da integração de personalidade. Isto significa a potenciação do acesso a, ou recuperação de, partes da personalidade que se encontram inicialmente inconscientes, dissociadas, não elaboradas/pensadas, ou não pensáveis (que ainda não puderam ser pensadas, por vários motivos).

A importância ou o papel da integração de personalidade para os objetivos gerais de uma psicanálise ou psicoterapia psicanalítica prende-se com a realidade intuitiva de que quanto mais soubermos sobre nós próprios, melhores as escolhas que fazemos para nós e para a nossa vida.

A consciência que temos de nós mesmos existe em função de quem nós nos percebemos ser na relação com os demais e no mundo. Esta natureza relacional intrínseca da nossa psicologia/personalidade resulta do facto de que o nosso espaço psiquico nasce, ou melhor dito, desenvolve-se, na relação. A primeira e mais estruturante de todas essas relações é, na perspetiva do desenvolvimento ontogénico do ser humano, a relação entre a mãe e o bebé - entre os cuidados de uma mãe (ou substituto materno) disponivel, tranquila e sintónica com as necessidades do bebé e essas mesmas necessidades e vulnerabilidades.

Dito de outro modo, da nossa relação progressiva com o mundo e através da relação, surge a nossa essência psicológica - os nossos sentimentos e pensamentos, as nossas necessidades (algumas destas inatas), desejos, medos e angustias, fantasias, desejos, ideais, sonhos, etc..

Esta nossa essência interior, psicologia, ou personalidade), condiciona por sua vez a forma como percepcionamos a realidade fora de nós, ou a forma como recebemos, interpretamos e moldamos as informações do exterior. A percepção da realidade acaba por moldar as nossas atitudes e os nossos comportamentos, e estes são a base das nossas escolhas e decisões na vida - escolha da profissão, escolha do companheiro ou companheira, escolha de curso de carreira, do estilo de vida, dos gostos pessoais, e uma série complexa de outras escolhas e microescolhas, decisões e microdecisões, presentes nas mais diversas áreas da nossa vida.

Por exemplo, uma criança pode crescer com cuidadores que sejam figuras criticas das suas competências intelectuais, que não as valorizem ou que acreditam pouco nelas e na possibilidade de desenvolvimento das mesmas - há mesmo quem acredite que a inteligência é um atributo fixo e imutável desde nascença, ou que a criança sai ao pai ou à mãe, ou que simplesmente é "limitada". Neste caso esta criança pode crescer com fortes condicionamentos internos relativamente ás escolhas de vida que vai fazendo ou sente que pode fazer à medida que cresce, e depois o mesmo quando se torna adulta. As dificuldades académicas poderão ser sentidas enquanto confirmação dolorosa das limitações pessoais - tão acentuadas já internamente pela experiência da família. Perde-se a possibilidade de tolerar a dificuldade, aqui enquanto aspeto próprio de momentos e situações que apelam ao esforço intelectual no sentido da resolução do problema e consequente adquirir de maior destreza intelectual. Isto claro implica também alguém que acredite à priori na criança e que a apoie nas suas dificuldades. Caso contrário pode mesmo deixar de existir motivação para o estudo, para o saber, e pode mesmo surgir um desinvestimento do esforço e da curiosidade intelectual de uma forma mais abrangente, pois a criança fica presa na experiência contínua da confirmação interna da limitação interiorizada. O performance académico fica limitado, e posteriormente as escolhas de carreira ficam mais limitadas.

A vida vai ficando limitada, e internamente cresce o sentimento de nunca se ter antingido muito e não se ser capaz de mais. È o sentimento de ser ser menos capaz, de se ter poucos recursos ou competências, e eventualmente também de se ser pouco merecedor do afeto e do investimento do outro nas relações. É a fantasia de que o outro será sempre alguém que dará pouco, investirá pouco, amará pouco, porque mais não se merece e não se pode esperar ou exigir. Á luz desta percepção se si no mundo e nas relações, as relações amorosas podem acabar por ser inconscientemente escolhidas e orientadas em linha com estas fantasias (e não só), confirmando-as então na prática e reforçando o mundo interno de limitação e de precariedade. Gradualmente vão surgindo então as pertubrações emocionais e das realações, ansiedade, depressão, alcoolismo e outro tipos de estados emocionais de angustia e/ou comportamentos desadaptativos.

A consciência daquilo que se viveu no inicio de vida não estaria aqui integrada na personalidada, disponível à consciência de modo a que essas experiências preoces pudessem ser elaboradas e ficar "arrumadas", livrando-se a pessoa do destino limitador e de limitação. As partes dissociadas ou não passíveis de serem pensadas mantêm-se neste estado, uma vez que é a relação com um outro que ajuda a  gerir ou a elaborar as emoções dificieis e dolorosas por detrás destas vivências e que ajuda na organização do pensamento - uma mãe, um pai, um psicoterapeuta... - aquilo que na prática constitui a pré-condição para a construção de uma mente que consegue fazer essa elaboração ou "digestão emocional" cada vez mais autonomamente. Na falta desta capacidade - sistemáticamente trabalhada e desenvolvida em psicanálise e psicoterapia psicanalítica - as crenças desadaptativas sobre a vida e sobre o mundo mantêm-se fora da consciencia. As escolhas de vida adquirem assim um caráter mais ou menos automático, irrefletido, e muitas vezes resultando na manutenção de situações desagradáveis e penosas, independentemente da vontade ou da intenção da pessoa.