sexta-feira, janeiro 12, 2007

O despertar

Abro os olhos lentamente e olho na direcção da janela. A persiana fechada não me deixa ver se é tarde ou cedo na manhã. Pouco importa. Levanto-me dorida do sofá da sala onde já durmo há mais de 6 meses. Deixei o quarto e a cama para o Álvaro. Prefiro as dores no corpo à insónia a que condenava o seu ressono. Depois, é aqui que ele passa os dias desde que se reformou: sentado a ler. De uma forma estranha sinto-me mais próxima dele aqui do que se dormisse ao seu lado na cama. Houve um tempo em que eu também gostava de ler, mas esse gosto amargou quando me apercebi que, sem dar por isso, tinha perdido o meu marido para os livros. A rotina é sempre a mesma: sai de casa cedo, pé ante pé para não me acordar, e regressa por volta das 11h trazendo debaixo do braço o Público e, dia sim dia não, um saco de uma livraria que, geralmente é a Bertrand. Uma vez por outra passa no Pingo Doce a caminho de casa e traz-me uma ou outra coisa que se apercebeu que faltava, mas é raro. A maior parte das vezes a paragem no supermercado serve apenas de desculpa para comprar aquele queijo especial de que ele tanto gosta, a garrafa de Porto ou de vinho tinto e mais uma ou outra guloseima que eu, por sistema, me abstenho de comprar. Depois, senta-se aqui neste mesmo sofá. Vai cá ficar o dia todo, mas assim que aproxima dos olhos o livro aberto é como se voltasse a sair. Para mim, que fico de fora, é como se desaparecesse para dentro de um mundo onde eu não existo, nunca existi. Do seu rasto neste mundo onde somos casados há 43 anos ficam apenas os livros que ele já leu e que se acumulam pelos cantos da casa depois de terem preenchido por completo as estantes de parede. Ajeito as almofadas do sofá. Um carro apita lá fora. Dobro cuidadosamente a manta que uso para me cobrir durante a noite. A casa está completamente envolta na penumbra e cheira ainda a sono e sonhos. Percorro lentamente o corredor até ao quarto. À porta, chamo baixinho pelo seu nome: "Álvaro?". Silêncio. Acendo a luz e consulto o relógio na mesinha-de-cabeceira: 10h. Já saiu por certo há um bom bocado. Pouco importa.

3 comentários:

Ana Almeida disse...

Olá Andreia.
Bem-vinda! Fiquei curiosa. Este texto faz parte de um conto? Ou de qualquer outra coisa? Podemos esperar voltar a ler coisas sobre o Álvaro e a sua mulher?

Clara Pracana disse...

Olá Andreia e Ana,
Ainda não tinha lido o comment da Ana quando li pela primeira vez o teu post, Andreia. Mas entretanto tive problemas no computador e fiquei sem acesso ao blog. Curiosamente, fiquei como a Ana, com vontade de saber mais sobre estas duas pessoas e a sua vida. Também me interroguei se estavas a pensar escrever um conto. Acho que escreves muito bem. Força e escreve mais para a gente ler!

Ana Eduardo Ribeiro disse...

Olá andreia,

Parece que vou repetir o que já foi dito mas deixa-me dizer que gostei muito muito.
Que senhora esta com tal interioridade! Como é que ela se chama? Dá vontade de continuar a ler mais...