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quarta-feira, janeiro 07, 2015

Narcisistas, Escândalo e Reality Shows


De um modo geral e para fins de fácil compreensão e assimilação, a psicologia de alguém considerado enquanto "narcisista", ou mais concretamente de alguém que sofre de uma perturbação narcísica de personalidade (ou falha narcísica primária), estrutura-se em torno de uma preocupação ansiosa (patente ou dissimulada) sobre o valor da própria pessoa enquanto tal, perante os outros.

Esta angústia acentua-se sobretudo em situações sociais ou na antecipação das mesmas (quanto menos familiar o contexto ou quanto mais dificil a integração no mesmo, mais acentuada a angústia), bem como em situações de avaliação, de emissão de pareceres, ou face a figuras que detenham esse poder perante a própria pessoa. É o receio acutilante da opinião (crítica) dos outros, da rejeição por parte do grupo social; é a preocupação ansiosa e persistente de se poder vir a ser vítima de exclusão, discriminação, de ataques críticos, provocações ou humilhações na antecipação de situações sociais; é a facilidade com que a pessoa se sente atacada por críticas ou comentários menos favoráveis, por vezes relativamente inofensivos.

A sensibilidade face à apreciação crítica alheia é marcante. Apreciações desfavoráveis (por vezes até relativamente neutras) podem ser sentidas como ataques sádicos intencionalmente dirigidos contra a própria integridade, o que leva a própria pessoa a ser incapaz de se conseguir sentir e manter relativamente indiferente. Estas situações podem ser de tal forma dolorosas que a própria pessoa pode mesmo perder (ainda que temporariamente) a capacidade de pensar e de se acalmar. A própria pessoa pode mesmo passar ao ato - isto é, partir para a agressão física numa tentativa de "destruir" a fonte do sofrimento ou superiorizar-se perante ela pela força da agressão ou do domínio. Estes são já estados graves de perturbação narcísica, quando a pessoa, nas suas relações e nos meios em que se movimenta,  "explode" ou "perde a cabeça" com relativa facilidade, ou entra em estados de "prestes a rebentar", sendo evidente para os demais a dificuldade do próprio em conter ou controlar a própria frustração/raiva transbordante. Há, claro, situações ou encadeamentos de situações na vida das pessoas que têm o potencial de levarem a maioria de nós ao transbordar. São momentos ou fases de vida em que a psicoterapia é críticiamente recomendável!

A ferida narcísica obriga a que a confirmação do valor próprio seja procurado a partir do exterior. Ferida ou falha narcísica significa dificuldade em a pessoa se conseguir erguer internamente quando por algum motivo "vai a baixo". É também a dificuldade na construção e retenção de uma imagem interna realista, estável e complexa de si mesma enquanto pessoa (em oposição a uma imagem oscilante, que varia consoante as situações, ou uma imagem de perfeição ou de falência total), e/ou a dificuldade em ser conseguido um sentimento interno de coesão enquanto pessoa individual, diferenciada e separada dos demais. Tais dificuldades podem conduzir à procura sistemática de angariação de admiração/validação exterior e recursos (através de riqueza, fama, relações amorosas, conquistas sexuais, admiração dos amigos, estatuto, etc). Quando obtidos, a ilação inerna almejada fica aquém do esperado/idealizado, esbatendo-se rapidamente.

Nas perturbações narcísicas surje muitas vezes a necessidade, fantasia ou ideal persistente de pertença a grupos sociais ou socio-económicos priveligiados, socialmente diferenciados pelo prestígio, fama, riqueza, poder, ou outros quaisquer critérios de seletividade social, exclusividade ou elitismo.

As falhas narcísicas são também, e infelizmente, ingredientes-chave nos famosos reality shows, já que a configuração particular das psicologias narcísicas torna as pessoas mais propensas ao conflito, sobretudo em contextos sociais menos familiares. Quem sofre de um narcismo vulnerável facilmente se sente atacado, como também pode facilmente passar ao ataque. Isto aparentemente gera audiências, à custa da exploração e exposição pública de vulnerabilidades psicológicas. É também sabido que quem sofre de problemas narcísicos tende a conflitualizar particularmente com outros que sofrem do mesmo problema, já que o próprio sistema defensivo das estruturas narcisicas de personalidade (superiorização pessoal e crítica/desprezo/ataque ao(s) outro(s), por exemplo) tendem a colocar o dedo na ferida (narcísica) de parte a parte. Alianças de parte a parte também se podem formar, por exemplo, por necessidade mútua de reforço de identidade, por necessidade de aproximação de algum prestígio que é percebido nos demais e o desejo de nele participar, ou por outros motivos. Um reality-show sem pelo menos alguns participantes com algum grau de patologia narcísica não seria a mesma coisa. Contúdo, a própria situação de exposição perante um tão amplo público a que estas pessoas estão sujeitas, o que isso implica, e as próprias dinâmicas específicas dos reality shows, acabam por ser aspetos que num ou noutro momento têm o potencial de destabilizar até os mais emocionalmente estáveis.

Os reality shows são programas que muitas vezes espelham problemas pessoais com os quais é fácil nos identificarmos, mesmo que inconscientemente. Podemos fácilmente assistir a estes programas (pelo menos em parte) num intuíto de procurar perceber como é que os demais resolvem problemas tão pessoais, tão sensíveis, tão complexos, tão intensos e tão persistentes que surgem também nas nossas relações pessoais e sociais, e que por vezes as inundam. São problemas com os quais todos nós nos debatemos ao longo das nossas vidas e que nem sempre somos capazes de lhes dar respostas adequadas, maduras e satisfatórias. Então observamos, analisamos e criticamos, sempre a partir da  distância segura que a TV oferece - "são eles que estão às turras e não eu (ou aqueles que me são próximos e queridos)!".

quinta-feira, dezembro 04, 2014

O conceito de impermanência no Budismo e na psicanálise

Encontrei um texto muito interessante que cruza o budismo e a psicanálise escrito por Alexandre Esclapes (Brasileiro) aqui: http://www.monjacoen.com.br/textos/textos-diversos/309-o-conceito-de-impermanencia-no-budismo-e-na-psicanalise

Transcrevo o texto na sua totalidade.



O conceito de impermanência no Budismo e na psicanálise


Bion seguindo Freud tanto a partir de 1895 no “Projeto” quanto em 1911 com “As duas formas do acontecer psíquico” vai se preocupar com a apreensão da realidade. Influenciado pelos conceitos kleinianos, em textos como “O aprender com a realidade” e “Transformações” vai trabalhar com conceitos como “invariante”, “O”, entre outros, numa clara aproximação tanto de Kant quando do Zen Budismo. O presente artigo não pretende trabalhar os conceitos básicos de Bion mas fazer uma articulação entre alguns deles e o Budismo.
Um dos conceitos mais fundamentais da prática psicanalítica em Bion, a saber, o de invariância – termo emprestado da química, que para Bion indica um pensar que “não varia”, que de alguma forma está congelado. Pode-se entender que um pensamento que não varia se apresentaria “doente”, o que seria causa de sofrimento psíquico.
Bion também vai colocar que o pensamento, está assentado em formas mais primitivas de funcionamento psíquico, dependente de estruturas e formas de funcionar, como as funções alpha e Beta, e que o pensamento lógico está assentado nessas outras estruturas. Fundamentalmente segue Freud quando diz que o Eu não é o dono na sua própria casa, ampliando as estruturas consideradas inconscientes.
Pode-se agora partir para um possível entendimento dos conceitos budistas de impermanência e omnisciência. O primeiro conceito é estritamente ligado ao da variância do mundo – nada é permanente ao longo do tempo, e em algumas leituras desse conceito, nada é permanente mesmo quando se retira o conceito de tempo. Causas e condições variam constantemente e o seu resultado, portanto, também varia. A aquisição desse conhecimento dentro da tradição budista estaria ligada a correta percepção da realidade – aqui entra o conceito de omnisciência. Não se pode confundir omnisciência com aquele que tudo sabe, um dos atributos de uma deidade judaico-cristã, mas de uma capacidade de perceber o aqui e agora em sua plenitude.
Algumas tradições budistas dão grande ênfase a esse caráter da omnisciência, aproximando esse conceito ao de “plena atenção”.  A plena atenção possibilitaria ao seu praticante perceber a impermanência do mundo e assim se libertar de apegos àquilo que em sua essência é variante, e, portanto, causa de sofrimento.
Apesar das duas visões serem muito parecidas, o fato de se introduzir o elemento inconsciente no processo causa grandes modificações na possibilidade de se atingir a percepção da variância do mundo.
A primeira delas é que a apreensão da realidade se dá para Bion, como na tradição psicanalítica,  de dentro para fora. Sem um aparelho para pensar, não existe pensamento. Paradoxalmente, um pensamento está à procura de um pensador. Em outras palavras, o mundo se torna invariante porque a realidade psíquica se torna invariante. Nas pegadas de Winnicott o real é um objeto transicional, nunca chegando a ser puramente real.
Um desafio nessa visão psicanalítica se dá a partir da angustia que a variância causa. O ser, o Eu, por definição é uma estrutura invariante – se modifica ao longo do tempo longo, mas no curto e médio espaço de tempo, se mantém mediamente constante. A completa variância das estruturas psíquicas, portanto causam profunda ansiedade, uma vez que ameaçam o acontecer do Eu no tempo. Se essa angústia for por demais insuportável, um congelamento das estruturas psíquicas acontece, o aprender com a experiência é prejudicado, quando não impedido, e ataques a percepção de uma realidade impermanente são postas em andamento.
Pode-se pensar que a impermanência seja um dos conceito chave tanto para o budismo como para a psicanálise a partir de Bion, com talvez uma diferença de enfoque – na tradição budista a “plena atenção” traria uma visão correta da impermanência, enquanto para Bion, a “plena atenção” seria uma aquisição emocional da modulação das ansiedades envolvidas nesse processo, e somente a partir dessa modulação, seria possível o processo de “atenção plena”. A diferença chave aqui é que em casos onde o aparelho psíquico, ou aparelho para pensar não esteja disponível para receber o pensamento, não basta “desejar” a “plena atenção”, ou “treinar” a “plena atenção”, pois não existe tal aparelho para isso.
Talvez aqui resida o fato de que nos casos onde o processo meditativo não surta os efeitos desejados dentro da tradição budista, a inveja primária, o abandono antropológico, o ódio e principalmente as ansiedades de despersonalização supra citadas evocadas pela prática meditativa como efeito colateral, podem trazer em alguns indivíduos, de um lado transformar a prática em um impasse, levando o seu praticante a desistir da mesma. Ou de outro modo, criar um falso self (Winnicott), um mais adequado à pratica budista e à inserção na comunidade, mas que no fundo esconde estruturas de caráter psicótica, cujo equilíbrio psíquico pode ser facilmente balançado, ou com o passar do tempo, demonstrar que o que se via não eram mudanças verdadeiras, mas falsas.
Pode-se concluir que em indivíduos onde o sentimento de inveja primária seja muito pronunciado, bem como ansiedades de despersonalização, a prática meditativa sem acompanhamento psicanalítico é desaconselhável, pois pode se criar nesses casos no mínimo um impasse na estrutura psíquica do praticante, o que na maioria dos casos pode levar a desistência da prática, mas em alguns casos mais graves ser uma regressão a este estágio psicótico com todas as consequências para o aparelho de tal regressão.
A mesma lógica pode ser seguida para pacientes que estão em tratamento psicanalítico onde os objectivos sejam parecidos. Dependendo do manejo que o terapeuta faça, como o trabalho sobre a  impermanência (ou melhor variância) no aparelho psíquico do paciente, as consequências podem ser idênticas. A apresentação da realidade (plena atenção) é um para os casos neuróticos, mas precisa de adaptações para os casos psicóticos, ainda que o objetivo seja os mesmo. Confundir isso pode provocar sérios retraimentos ou mesmo impasses no tratamento, com eventuais abandonos ou internações desnecessárias.

sexta-feira, setembro 12, 2014

Quanto mais nos conhecermos, mais felizes podemos ser



Uma psicanálise, e também uma psicoterapia psicanalítica, podem ser definidas como especialidades psicoterapêuticas de alta potência, dirigidas à reestruturação de personalidade. De um modo geral, o objetivo é conseguir alterações na organização, estrutura e funcionamento da personalidade no sentido de uma mais saudável e vantajosa adapatação à realidade (no mundo e nas relações), uma maior capacidade de atingir objetivos pessoais - a auto-realização - e a potenciação de estilos de vida satisfatórios.

Integrado nestas categorias gerais está o trabalho da psicoterapia no sentido da integração de personalidade. Isto significa a potenciação do acesso a, ou recuperação de, partes da personalidade que se encontram inicialmente inconscientes, dissociadas, não elaboradas/pensadas, ou não pensáveis (que ainda não puderam ser pensadas, por vários motivos).

A importância ou o papel da integração de personalidade para os objetivos gerais de uma psicanálise ou psicoterapia psicanalítica prende-se com a realidade intuitiva de que quanto mais soubermos sobre nós próprios, melhores as escolhas que fazemos para nós e para a nossa vida.

A consciência que temos de nós mesmos existe em função de quem nós nos percebemos ser na relação com os demais e no mundo. Esta natureza relacional intrínseca da nossa psicologia/personalidade resulta do facto de que o nosso espaço psiquico nasce, ou melhor dito, desenvolve-se, na relação. A primeira e mais estruturante de todas essas relações é, na perspetiva do desenvolvimento ontogénico do ser humano, a relação entre a mãe e o bebé - entre os cuidados de uma mãe (ou substituto materno) disponivel, tranquila e sintónica com as necessidades do bebé e essas mesmas necessidades e vulnerabilidades.

Dito de outro modo, da nossa relação progressiva com o mundo e através da relação, surge a nossa essência psicológica - os nossos sentimentos e pensamentos, as nossas necessidades (algumas destas inatas), desejos, medos e angustias, fantasias, desejos, ideais, sonhos, etc..

Esta nossa essência interior, psicologia, ou personalidade), condiciona por sua vez a forma como percepcionamos a realidade fora de nós, ou a forma como recebemos, interpretamos e moldamos as informações do exterior. A percepção da realidade acaba por moldar as nossas atitudes e os nossos comportamentos, e estes são a base das nossas escolhas e decisões na vida - escolha da profissão, escolha do companheiro ou companheira, escolha de curso de carreira, do estilo de vida, dos gostos pessoais, e uma série complexa de outras escolhas e microescolhas, decisões e microdecisões, presentes nas mais diversas áreas da nossa vida.

Por exemplo, uma criança pode crescer com cuidadores que sejam figuras criticas das suas competências intelectuais, que não as valorizem ou que acreditam pouco nelas e na possibilidade de desenvolvimento das mesmas - há mesmo quem acredite que a inteligência é um atributo fixo e imutável desde nascença, ou que a criança sai ao pai ou à mãe, ou que simplesmente é "limitada". Neste caso esta criança pode crescer com fortes condicionamentos internos relativamente ás escolhas de vida que vai fazendo ou sente que pode fazer à medida que cresce, e depois o mesmo quando se torna adulta. As dificuldades académicas poderão ser sentidas enquanto confirmação dolorosa das limitações pessoais - tão acentuadas já internamente pela experiência da família. Perde-se a possibilidade de tolerar a dificuldade, aqui enquanto aspeto próprio de momentos e situações que apelam ao esforço intelectual no sentido da resolução do problema e consequente adquirir de maior destreza intelectual. Isto claro implica também alguém que acredite à priori na criança e que a apoie nas suas dificuldades. Caso contrário pode mesmo deixar de existir motivação para o estudo, para o saber, e pode mesmo surgir um desinvestimento do esforço e da curiosidade intelectual de uma forma mais abrangente, pois a criança fica presa na experiência contínua da confirmação interna da limitação interiorizada. O performance académico fica limitado, e posteriormente as escolhas de carreira ficam mais limitadas.

A vida vai ficando limitada, e internamente cresce o sentimento de nunca se ter antingido muito e não se ser capaz de mais. È o sentimento de ser ser menos capaz, de se ter poucos recursos ou competências, e eventualmente também de se ser pouco merecedor do afeto e do investimento do outro nas relações. É a fantasia de que o outro será sempre alguém que dará pouco, investirá pouco, amará pouco, porque mais não se merece e não se pode esperar ou exigir. Á luz desta percepção se si no mundo e nas relações, as relações amorosas podem acabar por ser inconscientemente escolhidas e orientadas em linha com estas fantasias (e não só), confirmando-as então na prática e reforçando o mundo interno de limitação e de precariedade. Gradualmente vão surgindo então as pertubrações emocionais e das realações, ansiedade, depressão, alcoolismo e outro tipos de estados emocionais de angustia e/ou comportamentos desadaptativos.

A consciência daquilo que se viveu no inicio de vida não estaria aqui integrada na personalidada, disponível à consciência de modo a que essas experiências preoces pudessem ser elaboradas e ficar "arrumadas", livrando-se a pessoa do destino limitador e de limitação. As partes dissociadas ou não passíveis de serem pensadas mantêm-se neste estado, uma vez que é a relação com um outro que ajuda a  gerir ou a elaborar as emoções dificieis e dolorosas por detrás destas vivências e que ajuda na organização do pensamento - uma mãe, um pai, um psicoterapeuta... - aquilo que na prática constitui a pré-condição para a construção de uma mente que consegue fazer essa elaboração ou "digestão emocional" cada vez mais autonomamente. Na falta desta capacidade - sistemáticamente trabalhada e desenvolvida em psicanálise e psicoterapia psicanalítica - as crenças desadaptativas sobre a vida e sobre o mundo mantêm-se fora da consciencia. As escolhas de vida adquirem assim um caráter mais ou menos automático, irrefletido, e muitas vezes resultando na manutenção de situações desagradáveis e penosas, independentemente da vontade ou da intenção da pessoa.

quinta-feira, junho 12, 2014

II Congresso Luso-Brasileiro sobre o Pensamento de Donald W. Winnicott


Divulgamos hoje no nosso blog o II Congresso Luso-Brasileiro sobre o Pensamento de Donald W. Winnicott, subordinado ao tema “A Retomada do Amadurecimento”, organizado pela AP – Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, em colaboração com a Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana e a International Winnicott Association, e que irá decorrer nos próximos dias 20 e 21 de Junho, no ISPA.


Estarão presentes especialistas internacionais, tais como Elsa Oliveira Dias, Zeljko Loparic, Roseana Garcia e Cláudia Dias Rosa, representantes da Sociedade Brasileira  de Psicanálise Winnicottiana, e Laura Dethiville, representante da International Winnicott Association, bem como com especialistas portugueses, tais como António Coimbra de Matos, Carlos Amaral Dias, João Gomes Pedro, entre outros.


O Congresso contará com conferências, apresentação e discussão de casos clínicos, bem como mesas redondas, em que se perspectivam "diálogos com Winnicott" e dirige-se a profissionais das áreas da psicanálise e psicoterapias, da saúde (preferencialmente cuidados de saúde primários, psiquiatria, pedopsiquiatria, pediatria), protecção à infância, prevenção da delinquência, educação e desenvolvimento comunitário, entre outras.  









No dia 22 de Junho, no ISPA, irão ainda decorrer as Jornadas Clínicas da AP (apenas para associados).

Para mais informações sobre o Congresso e as Jornadas Clínicas:


- Website da AP: www.apppp.pt 


Votos de um bom congresso!

- A Psicronos -

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

A capacidade de estar só








Winnicott, no artigo intitulado A capacidade de estar só (1958), demonstra a importância da criança ser capaz de estar só, mesmo na presença da mãe. Esta conceptualização paradoxal, mostra-nos o quão importante é para a criança estar consigo mesma e desenvolver as suas actividades – enquanto a mãe desempenha outras funções, não focadas na criança. Isto acontece porque ambas – criança e mãe – estão unidas por uma confiança básica recíproca.

Segundo este autor, a capacidade de estar só traduz um grau de maturidade para o qual se tende.

Porém, antes de atingir esta capacidade, dá-se o tumultuoso percurso da própria existência – uma evolução que se expressa pela angústia de estar só, pela solidão do desencanto amoroso ou pelo medo da morte.

A solidão significa a presença omnipotente e ameaçadora de um objecto interno maligno, que contamina o espaço interno do sujeito.


A capacidade de estar só permite admitir dentro de cada um, um espaço interno, no qual somos, simultaneamente, espectadores e agentes, porque conservamos um bom objecto interno – ultrapassadas que foram as angústias primordiais. 

quarta-feira, janeiro 29, 2014

A Psicanálise é apenas uma das inúmeras riscas na pelagem do Tigre

Bion desenvolveu e concebeu uma visão muito particular da psicanálise. De uma forma ainda mais radical do que outros psicanalistas, a meu ver, Bion construiu aquilo a que eu designaria por uma nova psicanálise. Com rigor não se pode afirmar de forma categórica que a Psicanálise de Bion e a Psicanálise de Freud sejam uma e a mesma coisa. Bion apoiou-se, como todos sabemos, imenso em Freud, mas, a certa altura aquilo que saiu da pena de Bion ganhou vida própria, estou convencida que isso aconteceu até contra a sua própria vontade, mas aconteceu. 

psicanálise desenvolvida por Bion deixou de se poder identificar totalmente com a psicanálise Freudiana. Na minha opinião passou a ser uma outra psicanálise, ainda hoje difícil de diferenciar e definir. As ideais inovadoras de Bion e as suas repercussões ainda são difíceis de medir e avaliar.


O aparelho mental que Bion e Freud nos apresentam não é o mesmo. As regras e as leis que o gerem também não são exactamente as mesmas. Bion cria um outro mundo. Uma outra realidade. Uma perspectiva única e inovadora sobre a realidade psíquica.

Acompanhe o Salpicos e a nossa pagina do facebook e descubra com os meus posts esta nova psicanálise.


segunda-feira, dezembro 16, 2013

Novo membro titular do ramo de Psicanáliseda da AP: Prof.ª Dr.ª Clara Pracana


É com enorme orgulho que a Psicronos dá a conhecer aos leitores do Salpicos que a Prof.ª Dr.ª Clara Pracana é, a partir de hoje, membro titular do ramo de psicanálise da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica.
Muitos parabéns, Clara!

sexta-feira, novembro 15, 2013

EMDR e Psicanálise





A Estimulação bilateral é a ferramenta determinante na terapia EMDR. Após ter descoberto os efeitos da Estimulação bilateral, Francine Shapiro, desenvolveu o enquadramento da sua aplicação e estruturou-a predominantemente no quadro de referência da psicologia cognitiva.

O EMDR enquanto psicoterapia estruturada é, apesar de conter alguma rigidez, suscetível de ser compatibilizada com outras abordagens. Na esmagadora maioria das situações os terapeutas utilizam a abordagem EMDR conjugada com outras abordagens. 

Na PSICRONOS estamos interessados e empenhados em desenvolver uma abordagem que tenha por base a teoria psicanalítica, as suas premissas base, os seus pressupostos e métodos dominantes de trabalho e simultaneamente utilize os enormes benefícios da estimulação bilateral. A esta abordagem foi dado o nome Psicoterapia Psicanalítica Apoiada em Estimulação Bilateral. O nosso trabalho sobre esta abordagem está ainda no início, temos, ainda, um longo caminho pela frente. A ideia nuclear é a de que a Estimulação Bilateral promove, a partir de um mecanismo neurofisiológico desconhecido, a metabolização da experiência emocional promovendo a associação livre e seu o reprocessamento e progressiva reintegração pela reconstrução dos vínculos associativos conscientes e inconscientes. As ferramentas da intervenção em Psicoterapia Psicanalítica como a clarificação, a confrontação, a observação, a anotação da experiência, a interpretação e análise do funcionamento mental e da transferência são utilizadas de acordo com a Psicoterapia Psicanalítica, mas utiliza-se, simultaneamente, a Estimulação Bilateral para promover  a potenciação, transformação e assimilação dos insgths.  

Na minha experiência clínica pessoal tenho observado benefícios muito significativos com a utilização deste método. 

sábado, novembro 09, 2013

Contributo para a compreensão do funcionamento obsessivo: dinâmicas de controlo e o seu efeito sobre o narcisismo.



Faz hoje uma semana que apresentei e defendi perante a comissão de ensino da AP o meu trabalho: Contributo para a compreensão do funcionamento obsessivo: dinâmicas de controlo e o seu efeito sobre o narcisismo, no âmbito da passagem a membro titular no ramo de Psicanálise.

Todos aqueles que sentirem interesse ou curiosidade poderão lê-lo AQUI

Ana Almeida
Diretora da Psicronos

sexta-feira, novembro 08, 2013

Sigmund Freud – A Invenção da Psicanálise


Sigmund Freud foi um dos pensadores mais importantes para a humanidade no séc. XX. A sua importância ultrapassa o seu interesse para os psicanalistas e para todos os psicoterapeutas que de uma forma mais directa ou indirecta utilizam os seus conceitos na prática clínica. Conhecer Freud, as suas teorias e o impacto delas na cultura imprescindível.

Neste documentário tem-se uma noção muito clara da história da psicanálise que está naturalmente intimamente ligada à história do próprio Freud. 

O filme é comentado por Elisabeth Roudinesco e Peter Gay.


Rigorosamente a não perder :-).



quarta-feira, novembro 06, 2013

Saúde mental e psicanálise

Perguntaram-me recentemente se para a psicanálise a ideia de cura ou saúde mental está associado ao prazer e satisfação pessoal. Respondi com este excerto de um texto do António Coimbra de Matos, no seu livro: Vária, Existo porque fui amado.

"Desde sempre - e permanece - à psicanálise está ligada a ideia de libertação e liberdade. Libertação das peias da repressão, liberdade de expressão e de assunção do desejo. Liberdade, sobretudo, de pensar. Liberdade também de agir, tendo como limite a liberdade dos outros e a destruição.
Liberdade ainda de sentir: a dor como o prazer, o ódio como o amor."

Penso que a ideia de que a psicanálise defende o bem-estar como realização dos desejos e do princípio do prazer ainda é fruto da herança freudiana integrada no discurso do senso-comum. A saúde mental não depende da realização dos desejos e acesso ao prazer, mas antes da integração de todas as emoções.

Eu diria que o bem-estar pode advir, entre outras coisas, da capacidade de viver prazer sem culpa e dor sem drama.

Mas quero essencialmente reforçar o que me parece implícito neste excerto, embora talvez não suficientemente explícito: é hoje assumido em psicanálise que o bem-estar individual é indissociável da capacidade de estar e viver a relação com “o outro”, digamos os “vários outros” significativos e significantes na vida do próprio.

É na relação, e apenas na relação que se constrói o sentimento de existência e de identidade. É no “outro” e com o “outro” que ganham significado todas as coisas da vida de um ser humano.
A liberdade de que nos fala Coimbra de Matos não deve ser por isso confundida com individualidade, mas liberdade de Ser - em relação.


Eliana Vilaça
Psicoterapeuta psicanalítica na Psicronos

terça-feira, outubro 29, 2013

Pai e filha: Carlos Amaral Dias e Joana Amaral Dias. Uma entrevista publicada no publico com os 2 Psis


Leia a entrevista em http://www.publico.pt/temas/jornal/amar-e-natural-na-especie-humana-27266868?b332333

ANABELA MOTA RIBEIRO (TEXTO) NUNO FERREIRA SANTOS (FOTOGRAFIA)

Um pai é um pai, mesmo que não seja o tipo de pai que leva os filhos à escola. Uma filha é sempre objecto do cuidado de um pai, por mais emancipada e combativa que seja a sua atitude. Esta é a relação de um pai e de uma filha que não têm medo nem vergonha de dizer que se amam
Carlos Amaral Dias (1946) não soube ser o pai que vem nos livros. Era o pai que se portava pior do que os filhos e que se recusava a olhar para eles com óculos de psicanalista. Joana Amaral Dias (1975), a filha, discorda. O pai e a mãe, a psicanalista Teresa Nunes Vicente, liam o mundo - e os filhos - de acordo com Bion, Melanie Klein, Winnicott, Freud... Não resistiam.
Joana discorda muitas vezes. E di-lo sempre. Tem à-vontade para dizer tudo. O máximo que pode acontecer é discutirem um com o outro. Não se zangam. Estão mais próximos desde há um ano, quando Carlos teve um AVC e passou meses no hospital.
A entrevista foi na casa de Carlos e combinada com Joana. Joana e eu entrámos ao mesmo tempo no prédio, e connosco subiu Carlota, a irmã mais nova de Joana, de dez anos. Talvez por se sentir excluída da entrevista, Carlota fazia-se presente tocando flauta. Tocou um bom bocado. O pai estava a terminar uma sessão no consultório que fica dentro de casa, duas ou três salas depois daquela onde nos encontrávamos. Essa sala era a biblioteca.
Em duas horas tentou-se perceber que elementos foram marcantes na sua formação individual e na sua dinâmica relacional. Joana oscilou entre o registo combativo que se lhe conhece da televisão e da política e um cuidado terno com o pai. Carlos está ainda sob o maravilhamento dos que descobrem a beleza de um dia de sol depois de conhecer a linha fina que separa a vida da morte. Mas mantém a agudeza de um psicanalista que repete: somos todos filhos de um bando de assassinos!
Estou a falar com dois psis, pai e filha. Para compreender alguma coisa de quem são e da vossa relação, tenho de começar pelo complexo de Édipo da Joana?
Joana - Não tem nada a ver com ser psi. É assim com psis, jardineiros, astronautas.
Carlos - Acho que sim. O problema é quando as pessoas não organizam esse nível de contacto com a figura feminina ou masculina, não conseguem perceber o que há de sexual na mãe ou no pai. Uma perda dessas tem consequências muito grandes na vida psíquica de uma pessoa.
O Édipo forma-se à volta dos seis anos. Como é que olhava para o seu pai nessa altura? Ele não era o "Grande Amaral", como hoje lhe chama. Ou era?
Joana - Era quase. Olhávamos [o meu irmão Henrique e eu] com admiração, algum respeitinho (o respeitinho da noite, de quem chega a casa à noite depois de passar o dia a trabalhar), embora houvesse muitos momentos de descontracção. Uma das nossas brincadeiras favoritas era o "Bobby vai ao psicanalista". Lembras-te disso?
Carlos - Perfeitamente.
Joana - Sempre tivemos cães em casa. A brincadeira consistia nisto: um de nós fazia de cão, oBobby, e o outro era o psicanalista. Às vezes, o Henrique era o cão e eu a psicanalista, outras vezes o contrário. O que fazia de cão deitava-se de patas para o ar no divã do Amaral - quando o Amaral não estava, não é? Não sei se já reparou: os cães, quando estão a dormir, muitas vezes têm pesadelos e ganem, ladram, mexem-se. O Bobby só falava língua canídea. Mas o psicanalista, como qualquer bom psicanalista, mesmo que o cão só falasse canídeo, interpretava... "Estou a ver que se sente muito mal, que lhe roubaram o osso..." E o outro: caimmmmm. [riso] Tínhamos ataques de riso. Fazíamos interpretações mirabolantes. O psicanalista interpretava o complexo de Édipo do cão.
De onde é que vinha esse palavreado? Talvez seja bom dizer que a sua mulher de então, e mãe da Joana, é também psicanalista, e recebia os pacientes, como o Carlos, em casa.
Joana - Da mesa. Esta brincadeira era no consultório do meu pai, não era no da minha mãe. A minha mãe era mais territorial.
Carlos - O que já seria susceptível de uma interpretação psicanalítica...
Joana - E de uma contra-interpretação psicanalítica. E nunca mais saímos daqui.
Do que é que estão a falar?
Joana - Do espaço reservado da mãe por oposição ao espaço mais acessível do pai.
Carlos - Podemos dizer que se falavam duas línguas lá em casa. Português e psicanalês.
O que é falar psicanalês? E o que é que se pode dizer à mesa atendendo ao dever de reserva absoluta para com o paciente?
Carlos - Nem eu nem a Teresa [Nunes Vicente] nos calávamos quando nos vinha alguma coisa à cabeça a propósito de um filme, a propósito deles. Um episódio com o meu filho: uma vez começou a desaparecer dinheiro de uma caixa de trocos que havia na despensa e percebeu-se que era o Henrique [que tirava]. Era muito miúdo, tinha nem nove anos. Perguntei-lhe: "Porque é que fizeste isso?" Disse-me assim, na cara: "Uma vez estavas a falar com não sei quem e disseste que as crianças, quando roubam, é porque não estão a receber o amor que devem [ter] dos pais." Deixou-me estupefacto.
Como é que olhava para o "Bobby vai ao psicanalista"?
Carlos - É muito bom que os nossos filhos possam brincar a propósito da nossa profissão. Falando psicanalês, outra vez: quando somos pequeninos e brincamos que estamos a conduzir um carro ou a cozinhar, estamos a imitar os adultos. A brincadeira da criança tem essa função de identificação à figura do adulto. Resultou muito bem: os meus filhos têm todos a compreensão do que é que as coisas podem ser para além daquilo que mostram.
Como é que a Joana começou a olhar para o outro lado do espelho?
Joana - Acho que é uma coisa que se vai tecendo todos os dias. Marcou-me o humor do meu pai, da ordem do absurdo, o significado mutante das palavras. Um sentido de humor surrealista aliado a uma grande liberdade, que tive no meu crescimento, mais do que o meu irmão, e que resultou em estar muitas vezes do outro lado do espelho, ver as coisas de um modo escaganifobético. Essa abertura mental foi o que mais marcou. O meu pai acha que o que nos marcou mais foi a música, as idas ao teatro, o ter o Shakespeare ao lado...
Carlos - Como é que podes passar por cima disso? O teu irmão teve uma filha a quem chamou Bárbara por causa da canção do Chico Buarque, por causa das tardes, em miúdo, em que ouvia Chico Buarque comigo.
Joana - Obviamente tive uma educação privilegiada. Mas há muitas pessoas que têm acesso a essa educação privilegiada. O que foi uma marca de água distintiva não foi tanto isso. Foi esta grande liberdade de pensar.
Quando é que sentiu que era mais importante do que todos os livros, todos os filmes, todas as exposições? Pergunto quando é que teve o sentimento de que era escolhida pelos seus pais - esse sentimento tão precioso -, de que era o centro das suas vidas.
Joana - Não sei se alguma vez senti isso..., e não vejo isso como sendo mau. Quando vim ao mundo, já lá estava o meu irmão, que é 15 meses mais velho do que eu. Nasci para partilhar uns pais, um espaço. Não quer dizer que me tenha sentido preterida, mas o meu irmão era um miúdo bastante investido pelos meus pais. Há um frase do [escritor britânico] Julian Barnes que diz tudo sobre isso. Barnes está a descrever a relação com o irmão e com os pais; quando era miúdo, perguntavam ao irmão: "Que é que queres ser quando fores grande?"; o irmão respondia: "Quero ser especialista no império britânico." As pessoas ficavam impressionadas com o catraio. O Julian Barnes acrescentou: "Eu quero ser especialista em tudo o resto." Foi mais ou menos isto que aconteceu [comigo]. Havia um irmão mais velho que queria ser especialista no império britânico.
Ficou com tudo o resto. A política, a Psicologia, a comunicação social... O seu percurso não foi nada o de especialização num tema. Carlos, deve estar sempre a ouvir dos pacientes: "Eu não fui essencial na vida dos meus pais. O meu irmão é que era."
Joana - Não foi isso que eu disse. O meu irmão e eu temos personalidades diferentes. Não era bem não ser essencial para os meus pais... Eu usava a imensa liberdade de não ter de ser especialista no império britânico.
Carlos - Não temos a mesma visão sobre esta questão. Tu foste de facto especialista em tudo o resto. Sempre deixei as minhas mulheres serem os polícias. Eu tinha de fazer um esforço para ser um pai com as funções que se atribuem aos pais, para ser um pai como vem nos livros.
Como é o pai que vem nos livros?
Carlos - Esses pais... Nunca me revi. Revia-me muito mais no Conde de Lautréamont [poeta de origem uruguaia], que diz: "Vim ao mundo para espalhar o terror entre as famílias." [riso] Essa é a minha tarefa. A família é uma instituição horrível. Conservadora no pior sentido do termo. Herdamos dos nossos pais ou transmitimos aos nossos filhos os nossos genes, os nossos gostos, os gestos. Dou-me conta de que estou a cruzar as pernas como o meu pai... Quer coisa mais conservadora do que esta? Romper com isto é difícil. A minha profissão tem o sucesso que tem porque as famílias são feitas para criar problemas. Há terapeutas familiares que pensam o contrário. Tenho dificuldade em lidar com a ideia do Éden...
Ouvindo-o falar de Éden, ocorre-me o título de um programa que teve na rádio: O Inferno Somos Nós. Faz medo pensar no inferno e que ele não é uma coisa distante que está nos outros, como no título do Sartre, mas que está em nós.
Carlos - Sim. Mas o verdadeiro inferno é uma pessoa deixar de viver e deixar de viver quando se está a viver; ou seja, perder a sua individualidade, pôr-se num sítio onde estão outros corpos, onde se deixou de ter um nome. Digo isto pela experiência que tive. (Não sei se me explico. Quanto mais cresço, mais confuso fico em relação a mim próprio.
Joana - Isso é bom.)
Falemos já do AVC que teve há um ano. Para si, o mais perturbador foi perder a sua identidade, que resgatou de novo, e paulatinamente, mais à frente?
Carlos - Sim. Passos fantásticos: ter recuperado o andar. Ter podido tomar banho sozinho. Ver o sol. Quando se está meses dentro de um hospital só com luz artificial, o sol é uma coisa especial. O que ficou no fim disto tudo: as pessoas de quem gostava ganharam dentro de mim uma densidade própria, que já tinham, mas que foi [sublinhada].
Como se ficasse mais nítido o contorno dessas pessoas?
Carlos - Sim, sim. A Joana... não devia dizer isto, mas digo. Ela foi fantástica.
Joana - Bem podes dizer. Homessa! [riso]
Carlos - Esteve ao pé de mim nesses momentos. O meu filho também esteve, a minha [outra filha] também esteve. Mas a Joana não havia dia nenhum que não me visse, que não estivesse comigo. É uma dimensão que já não consigo retirar dela.
A de cuidadora?
Carlos - Cuidadora. Sobretudo, ela não teve vergonha nem medo nenhum de mostrar que me amava.
Vergonha e medo: parecem palavras difíceis de associar à outra, que é amor. Porque é que temos tanto medo e tanta vergonha de mostrar que amamos?
Carlos - Então não temos? A nossa vida é passar a vida a ter medo disso.
Ver o seu pai numa situação de fragilidade tornou-o mortal aos seus olhos? Isso desencadeou em si uma mudança?
Joana - Não. O meu pai ficou surpreendido. Ainda está um bocado surpreendido, porque fui todos os dias ao hospital, levar-lhe papinha, papinha mesmo boa [riso].
Levou papinha, realmente?
Carlos - Sim, sim.
Joana - Não foi uma coisa que me tivesse surpreendido em mim. Considero-me solidária e presente. Quando as pessoas precisam, precisam. Fiquei muito preocupada, ainda estou preocupada. Como é que se lida depois com as limitações, com as fragilidades? Como é que se reorganiza toda uma vida, interna e externa?
Então a vossa relação não mudou.
Joana - Não sinto que tenha havido uma diferença substancial na nossa relação. Passou a haver uma presença mais regular que era necessária tendo em conta as circunstâncias.
Insisto: ele pareceu mortal e frágil aos seus olhos? Até muito tarde, os nossos pais são figuras omnipotentes, omniscientes, omnipresentes.
Joana - Não senti isso.
Quando é que pela primeira vez sentiu o seu pai como uma pessoa frágil?
Joana - Sempre. Já o vi chorar várias vezes.
Isto é comum? Tenho ideia de que o pai é, deve ser, o herói auto-suficiente, que nos salva, a quem recorremos. Um AVC pode representar uma inversão de papéis.
Carlos - O que a Joana disse reflecte o que era a nossa relação. Com ela e com os meus outros filhos. Às vezes estávamos semanas sem trocar palavra. Eu ia a Coimbra todas as semanas, e não estava com o meu filho, que vive em Coimbra. O amor para mim não tem essa [obrigação]. Dá-me uma noção claustrofóbica aquilo a que se chama amor.
Claustrofóbica como?
Carlos - Talvez porque sou filho único. Os meus pais faziam questão que me sentisse claustrofóbico.
Quando, depois da doença, voltou a si - se posso usar esta expressão -, à sua identidade, pensou em si menino e na relação com o seu pai?
Carlos - O meu pai era muito interventivo na minha educação. O meu pai ia ver se eu faltava às explicações. Uma vez estavam dois cachopos da minha idade a dar-me porrada, e eu a eles, e o meu pai estava a ver de fora! Qual era a sensação que eu tinha? "Nem aqui este tipo me larga." O tempo que o meu pai tinha para estar comigo era pouquíssimo, mas o sentimento que transmitia era de uma pessoa que estava presente nas coisas.
O que é que ele fazia?
Carlos - Era enfermeiro.
O que é que ele queria que fosse? Esse dirigismo era para quê?
Carlos - Para ser médico. E eu fiz-lhe a vontade. Depois também fiz a vontade a mim próprio porque escapei da Medicina tanto quanto podia escapar-me quando escolhi o que sou.
Era claro para si que queria ser psicanalista?
Carlos - O curso foi muito difícil para mim. Se eu tivesse sido cirurgião - o meu pai era dono de uma clínica -, tinha ido trabalhar com ele. Fiz-lhe a vontade, mas não podia fazer-lhe toda a vontade, não é? Senão ficava com ele a mandar em mim até ao resto da vida.
Quando é que se emancipou em relação ao seu pai?
Carlos - Na minha educação, o meu pai é indissociável da figura do meu tio Zé Henrique, que era muito mais novo e que era uma espécie de irmão-pai. Vivia lá em casa e deu-me algumas luzes sobre por onde devia caminhar na Literatura ou na Filosofia. Se fiquei parecido com alguém, foi com o meu tio.
O seu filho chama-se Henrique.
Carlos - É. O meu avô chamava-se Henrique. É um nome comum na família.
A Joana chamaria a um filho Henrique?
Joana - Acho que não. Tenho um filho e não se chama Henrique.
Carlos - O nome dele é Vicente. É o nome da família da minha mulher. [Nunes Vicente] A Joana fez uma coisa bem feita: foi buscar um nome próprio para manter uma ligação simbólica à família.
Como é que olhava para o seu avô paterno?
Joana - Os meus avós paternos, quando fui para a primeira classe, mudaram-se para uma casa em frente à nossa. Era atravessar a rua e mais quatro passos. Tinha uma relação próxima com eles. Não tenho a experiência que o meu pai teve. O meu avô era meu avô, não era meu pai. Brincávamos ao "Ai se te apanho". Tinha um cabelo farto, despenteava-se, tirava a placa, andava atrás de nós pela casa a fazer de monstro. Para dizer que connosco foi mais relaxado, menos austero.
Carlos - Eram as brincadeiras que o meu tio me fazia.
Voltemos aos seis anos e ao pai herói.
Joana - O meu pai era um pai maluco. Era irregular. A maior parte das vezes queria fazer palhaçada. Tinha pouco tempo e queria comportar-se como nós ou pior. Outras vezes queria armar-se em pai que põe regras. Não era muito levado a sério e ficava chateado.
Carlos - Era a minha culpabilidade. "Tenho de fazer de pai."
Joana - Nunca tinha pensado nisto, mas, assim como o meu pai viu o tio Zé Henrique como uma figura entre irmão e pai, eu vi-o a ele assim.
Sendo um psicanalista, estava sempre a perguntar-se: "Como é que isto os vai marcar? O que é que dirão daqui a 30 anos quando estiverem deitados no divã do psicanalista?" Não o Bobby no divã, mas eles mesmos. "O que é que dirão desta infância, deste pai?"
Carlos - Perguntava-me de uma maneira talvez mais rebuscada do que outros pais: "Estou a ser um bom pai?" Não deixava de me preocupar com o tipo de influência que tinha nos meus filhos. Confesso que fui muito egoísta. Queria que os meus filhos se interessassem pelas coisas de que eu gostava. É um encanto para mim saber que eu não era [apenas] o pai com quem ouviam ópera e que era o pai da brincadeira. Deixa-me enternecido. E fascinado pela capacidade que os filhos podem ter de ser bons.
Tinha a noção de que ele estava lá se estivesse aflita, se precisasse?
Joana - Sim. Os meus avós desempenharam também esse papel. Estou a lembrar-me de um momento cómico... Os meus pais tinham consultório em casa. Embora trabalhassem muito, estavam sempre presentes. Qualquer coisa, bastava descer as escadas. Era uma vivenda. Um dia, sábado de manhã, eu devia ter uns 8, 9 anos, a minha mãe tinha saído e o meu pai estava a fazer grupanálise.
Carlos - Não. Era um grupo de esquizofrénicos que eu tinha aos sábados.
Joana - O meu irmão e eu decidimos fazer panquecas e incendiámos a cozinha. Estávamos de pijama, de meias e começou a arder o exaustor. Havia uma bilha de gás mesmo ao lado e entrámos em pânico. Assim como estávamos, descemos para o consultório, abrimos a porta e anunciámos com grande retumbância: "A casa está a arder." Imagine, com um grupo de esquizofrénicos.
Carlos - A primeira coisa que fiz foi resolver o problema da bilha. Disse aos doentes para saírem e esperarem. Atravessaram a rua e sentaram-se nas escadas da casa em frente, a casa do vosso pediatra. Os meus filhos também, de meias e pijama. Quando os bombeiros chegaram, já quase não havia fogo. Chamei os meus doentes e continuámos a sessão. Só passado um tempo, um deles me fez uma confissão: "A certa altura pensei: o meu psiquiatra é pior do que eu."
Podiam interromper as sessões em circunstâncias destas, apenas?
Joana - Apenas em circunstâncias excepcionais. O meu quarto tinha uma varanda que dava para a frente da casa, onde se viam os doentes a entrar e a sair. A vida toda convivemos, em grande harmonia, com a doença mental. Lembro-me de um paciente que achava que era Jesus Cristo e que descompensava à porta de casa. Um delírio maníaco clássico. Sabes de quem estou a falar?
Carlos - Sim.
Joana - Havia pessoas que faziam convulsões epilépticas à porta de casa. Coisas histéricas. Era muito animado [riso] e fazia parte. Como se fosse um ortopedista e os filhos vissem muitas pessoas de canadianas. Esta cena do incêndio: só muito mais tarde percebi o impacto que aquilo poderia ter tido nos doentes. Para mim [os seus comportamentos] eram bizarrias a que assistíamos da varanda.
Quando é que quis cortar com essa casa onde não estavam apenas o pai e a mãe, mas também os seus consultórios e as pessoas que os frequentavam, um mundo que não tinha nada que ver com o seu?
Joana - Mas tinha que ver com o meu. Aquilo fazia parte do meu mundo. Havia uma sensação de estranheza quando, na infância, ia a casa de amigos e percebia como era diferente. Já falei com muitas pessoas desta sensação; como é diferente a dinâmica, a comida sabe diferente. Isto para dizer que aquilo era o meu mundo.
Eu queria dizer: aquele era o mundo dos seus pais, sobretudo de um ponto de vista profissional. Na adolescência, houve rejeição?
Joana - Tive uma adolescência normal.
Carlos - Há um episódio hilariante na adolescência da Joana. Para sair sem que a mãe ou eu percebêssemos, primeiro mandava os sapatos para o jardim, e depois mandava-se ela.
Joana - Saltava do primeiro andar.
Carlos - Agarrava-se à parte superior de uma árvore - era uma mangueira? - e descia.
Joana - Macaca.
Carlos - Um doente meu estava virado para a janela e disse-me assim: "Acabei de ver uns sapatos a voar." Pensei: "Está a ter alucinações visuais. Mas isto não é próprio deste paciente." Continuou: "Agora há uma miúda que se atira contra a árvore. Acho que é a sua filha." [riso] Fiquei espantado. Do ponto de vista psicopatológico, aquele paciente não produziria aquele discurso. Tentei entrar em contacto com os afectos dele. "O que é que você está a sentir?"
As típicas perguntas ou comentários dos psicanalistas: "Hum hum" ou "O que é que você está a sentir?"
Carlos - Aquilo não fazia sentido na história do paciente nem na sua maneira de estar comigo. Até que vim a saber da história. Os sapatos e a miúda existiam mesmo.
Joana - Eu tinha 14, 15 anos. Dizia: "Vou-me deitar." Fechava a porta do meu quarto por dentro e mandava-me pela janela. O meu pai ficou desconfiado, comentou com a minha mãe. Nesse dia, quando cheguei às quatro ou cinco da manhã, tinha o meu pai à porta, à espera. Oops.
Quando é que se zangaram?
Carlos - Muitas vezes. A sério, uma vez.
Joana - Não sei de que vez estás a falar.
Carlos - Não tenho esse sentimento em relação a qualquer dos meus filhos - de estar zangado com eles. Eles estarem zangados comigo é diferente.
Joana - Os pais nunca são aquilo que os filhos querem que eles sejam. E vice-versa. Já tentei ensiná-lo a ser melhor pai. Evoluiu bastante, [tom ligeiramente trocista] graças a mim. Zanga, zanga? Não. Digo tudo o que penso ao meu pai.
Diz mesmo?
Joana - Digo. Tenho o maior à-vontade [para o fazer].
Sem medo de o ferir? Isso é porque são psis?
Joana - Acho que não. Acho que é a relação que temos, que desenvolvemos. Quando não gosto da maneira como ele é pai ou avô, digo-lhe. Ele também me diz a mim. E pegamo-nos! Não é uma relação "o mar está flat, não se passa nada". Temos opiniões divergentes, da política a outros assuntos.
Carlos - Zanga, zanga, em que há um afastamento emocional dentro de nós em relação ao outro, a um filho meu, nunca senti. Posso ter tido medo que eles sentissem isso.
Tinha medo de desapontá-los, mais do que tudo?
Carlos - Brinco com isto, mas há uma parte de mim crítica em relação à maneira como era pai. A Teresa era a figura tutelar sem a qual isto não teria funcionado. Como agora, com esta filha-neta, a Carlota [de dez anos]: não me emendo.
Joana - Acho que és diferente com a Carlota. Já te vi fazer os trabalhos de casa com ela. Jamais, em tempo algum, o meu pai se sentou ao meu lado a fazer os trabalhos de casa comigo.
Carlos - Eu já fiz os trabalhos de casa com a Carlota?!
Joana - Eu já te vi! Várias vezes. Estás com vergonha de admitir as tuas pequenas fraquezas... [riso] Não são diferenças substantivas. Muitas vezes observo o meu pai a ser pai da Carlota e tenho uma ideia bastante próxima do que a Carlota estará a sentir.
Carlos - Para a Carlota, quando estive doente, foi terrível. Foi e é. "De que é que tinhas saudades quando o papá estava internado?" "Das tuas histórias malucas."
Contava histórias ou contava sonhos? As histórias mais extravagantes normalmente aparecem nos sonhos.
Joana - Eram histórias absurdas, e lengalengas, que inventava. "Ia um homem todo vestido de vermelho, num carro vermelho, com o chapéu vermelho, os sapatos vermelhos, os olhos vermelhos, o volante vermelho, a estrada vermelha, e bum!, bateu num senhor que era todo azul, com olhos azuis..." A história evoluía para um hospital todo branco, um planeta verde...
Queria pedir que contassem um sonho. É talvez a coisa mais íntima que vos estou a pedir. Um sonho com o seu pai, lembra-se? Um sonho com a Joana?
CARLOS e Joana - Não me lembro.
Mentirosos.
Joana - A sério, não me lembro.
Se se lembrarem, digam. Mudemos de assunto. É impressão minha ou a pessoa com quem tinha uma relação de competição era o seu irmão? Era pela atenção dos pais? - o que é, aliás, muito comum entre irmãos. Fala muito dele. Também é certo que durante muito tempo foram só os dois. A sua irmã Leonor, do mesmo pai e da mesma mãe, nasceu 11 anos depois.
Joana - O meu irmão foi muito presente na minha vida. Não acho que competisse pela atenção dos pais. Entretinha-me sozinha, gostava de aprender a fazer as coisas sozinha. Escrevia, desenhava. Brincava muito com o meu irmão, também. Não na atenção, mas [no desejo] de ser melhor, competia, sem dúvida nenhuma. Rapidamente se transformou mais numa competição comigo própria. Isso sim, caracteriza-me muito e é parecido com características do meu pai.
Em que outros aspectos são parecidos?
Joana - Gosto do gozo de descobrir, como o meu pai. Gosto mais de ser aluna do que de ser professora. Não posso dizer que o meu pai tenha sido um self made man. Os meus avós viviam bem e a partir de certa altura passaram a viver muito bem - tudo com a força do seu trabalho, devo dizer. Mas de um ponto de vista intelectual, o meu pai foi um self made man. O meu avô deixa muitas saudades, e não era estúpido, de todo!, mas não era propriamente um homem orientado para a cultura, ao contrário do meu outro avô, do lado da minha mãe. Ainda hoje tenho um fraquinho por pessoas que são self made man ou woman.
As brincadeiras com o meu irmão eram ao sopapo e ao pontapé. Obrigava-me a crescer, a não ser mariquinhas.
Contudo, foi a Joana que foi para Psicologia. O seu irmão estudou Economia. Como é que o Carlos olhava para esta competição entre os irmãos?
Carlos - Somos todos descendentes de um bando de assassinos. De modo que não estava à espera que os meus filhos fossem os anjos que foram discutidos em Trento [concílio da Igreja Católica, no século XVI, no qual se discutiu, entre outras coisas, a função dos anjos].
Quem são os assassinos, já agora?
Carlos - Então, os que sobrevivemos, em termos de competição da espécie, somos filhos de assassinos. As pessoas de quem eu gosto, de uma forma geral, são pessoas que sabem isto. Somos bons e maus. Se os meus filhos não tivessem lá no meio - transformada, como é óbvio, não queria que se matassem um ao outro - essa rivalidade, ficaria muito preocupado.
Na adolescência, os seus filhos tinham aquários em casa. Como é que um psicanalista olha para isto?
Joana - Muuuuitos aquários.
Carlos - Achava graça. Os aquários estavam na sala do bilhar, que supostamente era para eu jogar bilhar. Nunca foi. Era a sala usada para fazerem tudo o que queriam.
A atitude era: "Estão a fazer aquários" - deixá-los estar. E não: "Que é que isto quer dizer?"
Carlos - Deixá-los estar. O "o que é que isto quer dizer?" não fazia parte da minha maneira de estar com eles. E nunca, mas nunca os via como um psicanalista.
Joana - Não era bem assim. Não estou a dizer que fosse permanente, mas os meus pais tinham umas vagas de entusiasmo por autores e não resistiam a ver o mundo todo daquela cor - como na história. A vaga Winnicott, a vaga Melanie Klein...
Pode contar qualquer coisa?
Joana - Não me lembro. Eram coisas do quotidiano. Nós rapidamente aprendíamos a falar essa linguagem e a fazer contra-interpretações. Dizíamos: "Vê lá. Só porque a tua mãe não te fez aquilo, tu agora..." É uma coisa que se aprende, o vocabulário e uma forma de pensar. Se cresço assim, também falo essa língua - como os miúdos bilingues. O próprio Bobby foi interpretado de acordo com várias escolas psicanalíticas, mais freudianas, mais bionianas.
Para arrumar a questão: até que idade fizeram a brincadeira do Bobby?
Joana - Até à puberdade, até aos 11. Depois passámos a fazer outra coisa que também incluía o consultório dos meus pais. Eles iam a muitos congressos no estrangeiro e nós, num ápice, enchíamos a casa com 50, 100 pessoas. No consultório, em todo o lado.
Interpretação barata: ocupar o divã do pai psicanalista é estar na cama dos pais?
Carlos - É. Mas quem é que não faz isso?
Joana - Neste caso, a cama dos pais era também o trabalho dos pais.
Carlos - Para os meus filhos, a minha profissão era uma espécie de amante a que dedicava muito tempo.
Tinha ciúme de alguma paciente em particular?
Joana - Não, não. Gostava muito de observar, mas ciúme, não. Os cães reagiam de maneira diferente às pessoas. Antes do boxer, tivemos um rafeiro muito esperto e completamente estroina que ladrava a uns em especial... O meu irmão e eu construíamos teorias sobre quadros psicopatológicos associados.
Para a Joana, havia o pai Amaral Dias e a mãe Nunes Vicente (e o avô Nunes Vicente, catedrático da Universidade de Coimbra). Tinha de encontrar espaço para ser a Joana, e não a filha de, a neta de...
Joana - Sim. A questão da autonomia sempre foi muito importante para mim. A todos os níveis. Resultou nisto [que agora sou], mas tem uma pré-história. Na altura em que atirava os sapatos pela janela, já tinha não sei quantos empregos. Traduções, babysitting... Arranjava maneira de fazer dinheiro. Era boa aluna, cumpridora. Os meus pais não tinham grande coisa a apontar-me. As duas coisas - não ter restrições em casa e ter dinheiro no bolso - fizeram com que rapidamente me emancipasse. Acabei por sair de casa aos 19 anos. O que não é assim tão comum em Portugal.
Depois teve um filho com 22. O que também não é comum, ainda mais no seu quadro social.
Joana - Foi muito importante ter saído de casa tão cedo, ter crescido sozinha. Lembro-me sempre de uma grande vontade de fazer por mim, ter as minhas ideias, a minha casa. Se resultou numa certa exposição pública e mediática, não foi deliberado. Em miúda queria ser muitas coisas diferentes. Não me lembro de ter tido a fantasia da fama. Tive outras - de ser filósofa.
Deu-se uma alteração de papéis. O Carlos passou a ser "o pai da Joana Amaral Dias". Como é que lidou com isso?
Carlos - É impossível não dizer o orgulho que sempre tive em qualquer dos meus filhos, por razões diferentes. Acho que a minha filha é uma miúda muito inteligente. Qualquer dos meus filhos: sempre achei que eram mais inteligentes do que eu. Para sobreviverem à minha pessoa... [riso]
Joana - Concordo.
Carlos - O que sinto quando me falam da Joana é orgulho. Não sou capaz de dizer isto de outra maneira.
Joana - Eu não tenho bem esta versão da história...
Então?
Joana - Fui deputada em 2003, a poeira vai assentando. Nos primeiros anos, ficaram sem perceber o que é que se estava a passar.
Carlos - Achas?
Joana - Sim, acho. Aliás, tenho a certeza. Em virtude desse meu processo [de emancipação, cedo], e porque temos este tipo de relação (não estamos sempre ao telefone), eles nem sabiam bem o que é que eu andava a fazer. Acho que ficaram surpreendidos e depois foram-se habituando à ideia. Mas não acho que fizesse parte das expectativas.
Carlos - Não foi esse o nível da pergunta. Não era sobre se eu esperava que tu ou o Henrique ou a Leonor ou a Carlota fossem isto ou aquilo. Não esperava. Tenho orgulho em que sejas quem és.
Joana - Deste a ideia de que para ti [a minha fama] era uma coisa natural. Acho que não foi natural.
Carlos - Na espécie humana, nada é natural. Havia um preservativo que tinha como slogan: "Amar é natural." Escrevi-lhes uma carta a dizer que amar não era natural. Era publicidade enganosa. [riso]
Os seus pais sempre a levaram a sério?
Joana - A minha mãe costuma brincar comigo e fala de uma insustentável leveza do ser. Porque eu sempre levei as coisas de uma forma mais relaxada, ligeira. O meu irmão era e é uma pessoa mais séria, circunspecta. Lembro-me de ser miúdo e dizer que queria ir para Wall Street [diz Wall Street num tom cinematográfico]. Eu ia andando, a vida ia acontecendo.
A questão das expectativas é fundamental na relação pais-filhos. Os filhos não querem desapontar os pais. O Carlos diz que tem orgulho na Joana, mas parece um comentário à superfície. Há mais camadas.
Carlos - Não há. Um jornalista perguntou à Marilyn Monroe, quando ela casou com o Arthur Miller, se ela tinha casado com o escritor ou com o homem; ela respondeu: "Acha que é possível distinguir uma coisa da outra?" É impossível distinguir. A Joana tem muitas camadas, como todas as pessoas. Esta camada - ela ser uma figura pública - está ligada em mim às outras.
Que defeito herdou do seu pai?
Joana - Passei a fazer uma piada (ele ainda não sabe, vai saber agora). Descobri porque é que os meus pais foram para Psiquiatria. O meu pai foi para Psiquiatria porque é hipocondríaco, a minha mãe foi para Psiquiatria porque é psicossomática. A Psiquiatria era uma excelente maneira de fugir ao horror que seria lidar todos os dias com órgãos... [riso] Eu sou as duas coisas: hipocondríaca e psicossomática.
Porque é que foi para Psicologia? Para já, é preciso músculo para seguir essa opção com a carga que tinha em casa.
Carlos - Claro que sim.
Joana - A maneira como resolvi isso foi, e que é sempre a minha maneira de resolver as coisas, transformar-me na melhor aluna. Era uma boa aluna no liceu, acabei com 18 vírgula qualquer coisa. Mas na faculdade tive 19 e 20. Para acabar com a suspeita [de favorecimento]. O meu pai foi meu professor. Em poucas aulas, porque tinha assistentes, mas sim, foi meu professor. Marrei muito. Nasceu o Vicente e continuei a marrar. Porque é que fui para Psicologia? Não sabia bem o que queria. Ainda hoje não sei, na verdade.
O resto do mundo é vasto...
Joana - É muito grande! Estou sempre a meter-me em coisas novas. Grande parte das vezes não posso dizer que tenha sido eu a procurar.
O sonho. Um sonho qualquer. Outro osso.
Joana - Oh pá, não me lembro.
Carlos - Vou contar um sonho que fiz quando comecei a sair do coma em que estava induzido. Nesse sonho ia num comboio. A enfermaria do Hospital de São José era a carruagem onde eu ia. Chegava a Coimbra e ia para um edifício resolver um problema que eu sabia que tinha. Um problema para o qual sabia a resposta cognitiva mas não sabia a resposta afectiva. Estava sentado na sala desse edifício e tinha uma caixa debaixo dos pés; abria-a e tinha lá a resposta afectiva.
Joana - E qual era?
Carlos - Não posso dizer. Posso dizer que era uma resposta que tinha que ver com um ódio profundo que nunca tinha percebido que tinha em relação a uma pessoa. Feitas as contas, somos todos descendentes de um bando de assassinos. [riso]
Porque é que esse sonho o marca?
Carlos - Era como se eu tivesse aquele problema para resolver e o sonho resolveu-mo. Foi um sonho feito entre a vida e a morte, violento e ao mesmo tempo libertador. Como é que um sonho nos agarra pelo fundo das calças e nos dá uma última oportunidade para pensar aquilo? Foi assim que o senti. Como se pudesse viver mais tranquilo. Como se pudesse morrer mais tranquilo.
Temos sempre tantos nós por resolver, mesmo quando achamos o contrário... É o que o sonho lhe diz.
Carlos - Repare que fiz duas análises, um psicodrama com o [Alfredo Correia] Soeiro, o brasileiro que vinha cá. Fui doente muito tempo, e digo como a Joana: ser doente é melhor do que ser psicanalista.
Joana - Muito melhor.
Carlos - Eu tinha visto já este problema por muitas janelas...
Como é que nunca tinha chegado lá, a esse âmago?
Carlos - Porque havia uma resistência minha em entrar em contacto com um afecto tão vasto como aquele.
É violento sentir ódio e reconhecer que sentimos ódio.
Joana - Mas sublimá-lo sempre é mais perigoso. Vou contar um sonho: estou numa casa que são várias casas, que se vão descobrindo. A casa tem bocados da casa dos meus avós e elementos [das construções impossíveis] do Escher: portas que se abrem e que há bocado não eram portas, varandas que há bocado não eram varandas e que se transformam em escadas... A casa tem sempre bocados da casa onde cresci e de outras casas importantes onde vivi. Às vezes, aparecem casas de outras pessoas. No sonho, vou andando. Não é desagradável, não é angustiante, nem claustrofóbico, mas não é completamente pacífico. Há quase a ansiedade da descoberta.
A casa é um labirinto?
Joana - Não, não é. Ela vai-se transformando e muitas vezes aparecem as pessoas daquelas casas. Há pouco tempo, lembro-me de ter aparecido numa dessas divisões, o escritório do avô, o avô. Habitualmente, no fim disso tudo, saio para uma praia. Nunca vivi ao pé do mar, não gostaria particularmente de viver ao pé do mar (embora goste de praia). Mas há uma sensação de respiração, de abertura, de continuar sozinha.
Têm intimidade suficiente para contar sonhos um ao outro?
Carlos - Os esquimós tinham esta prática: quando uma criança contava pela primeira vez um sonho, deixava de dormir na cama da mãe. Prefiro que não me contem sonhos para não sair imaginariamente da cama dos meus filhos nem eles da minha. Há um lado dos meus filhos que nunca quis saber.
Joana - Não tenho nada essa sensação. Ouvir-te contar um sonho, por mais camadas de leitura que eu possa ter, não acrescenta nada ao que eu conheço de ti.
Por mais que seja uma relação de iguais, estão numa situação desigual.
Carlos - Percebi que é pequeno o tempo em que somos maduros. A minha mãe morreu depois do meu pai. A morte da minha mãe foi para mim complicada. Ela estava na minha casa no Algarve e tinha ficado com a Carlota, que era muito pequenina, e uma empregada. Eu tinha ido jantar fora com a Susana, a minha actual mulher. Gosto muito dessa casa, que tem uma piscina aquecida. A Joana também gosta muito dessa piscina. À noite, tomar ali banho nu, é uma coisa fantástica! Nu e com um copo de champanhe, mais fantástico ainda.
Uma cena de um filme de Fellini...
Joana - No comments. [riso] Ele era capaz de dizer a mesma coisa se eu tivesse cinco anos.
Carlos - Não percebo...
Joana - Ele diz isto à Carlota.
Carlos - Não estou a dizer nada que não seja verdade.
Joana - Pronto.
Carlos - A minha mãe sentiu-se mal e morreu-me nos braços. Morreu-me mesmo nos braços, morreu-me. Foi uma coisa muito violenta. Depois que fiz o luto por ela, percebi que a morte dos nossos pais é o lugar onde a nossa infância termina. Aquele olhar é o lugar onde continuámos a ser crianças, onde alguém nos viu como crianças. Só percebi essa coisa de ser adulto quando a minha mãe desapareceu. A infância tinha-se ido embora.
Até quando foi a menina do papá? Não consigo imaginá-la bem criança.
Joana - Ah, mas já fui bem criança.
Carlos - Imagina-me mais facilmente a mim criança do que a ela, não?
Sim.
Carlos - Estás a ver? Não preciso dizer mais nada. Se quiseres pensar um bocado nisso...
É muito combativa. Parece que está sempre pronta a ir à tromba a alguém.
Joana - E estou. Ou bem que somos filhos de assassinos ou bem que não somos.
Essa atitude não se associa a uma criança. Talvez por isso tenha alguma dificuldade em imaginá-la criança.
Joana - Sempre fui assim. Na segunda ou terceira classe, pediram-me para escrever uma composição sobre pré-história. Escrevi que era horrível ser australopiteca porque a vida para a mulher era muito injusta; ela tinha de ficar fechada na caverna, eles é que se divertiam imenso; iam para a caça, para a aventura. Ainda por cima, elas eram arrastadas pelos cabelos (era uma figura que aparecia no livro de História). A minha mãe passou a chamar-me australopiteca. Era uma das minhas alcunhas.
Não tem medo de nada?
Joana - Tenho medo de imensas coisas. De morrer, de ficar incapaz. O meu maior medo: que aconteça alguma coisa ao meu filho. Mas não me vejo como uma pessoa medricas.
Os seus medos?
Carlos - Nunca me tinha visto como um hipocondríaco, como a Joana disse; mas pode ser. Tenho poucos medos. Aprendi a ter medo da morte agora. O medo da morte não era uma coisa que tomasse conta de mim. Agora, tenho medo que a morte me surja.
Joana - Agora é como nas Memórias de Adriano: vês o contorno da tua morte, o que é diferente de uma pessoa da minha idade, sem nenhum problema de saúde, ter uma angústia difusa de morte. É lixado.
Carlos - É, não é? Também acho.
Como é que terminam as vossas sessões?
Joana - Até para a semana.

Carlos - Hoje ficamos por aqui.